terça-feira, 9 de setembro de 2008

Gémeos, albinos e prisioneiros desaparecidos (2)

GÉMEOS E ORDEM CÓSMICA

Segundo os dados proporcionados por Henry Junod (Usos e costumes dos Bantu, tomo 2: 266-272) acerca do sul de Moçambique, a relação entre os gémeos, a chuva e os enterros em solo molhado já era vista como consensual e antiga em finais do Séc. XIX, sendo objecto de complexos rituais caso a seca ameaçasse uma determinada região.
Quando tal acontecia, a razão era sobretudo atribuída ao anterior enterro em solo seco de gémeos, abortos ou de bebés falecidos antes da sua apresentação à lua (que marca a sua existência social e integração na comunidade), sendo o primeiro passo para obter chuva descobrir as suas campas e corrigir a situação. A par de rituais de purificação das suas mães (caso elas tivessem escondido esses enterros incorrectos), os seus ossos eram exumados para um local húmido ou lamacento e as suas campas anteriores eram molhadas com água. Este acção era desempenhada por todas as mulheres, caminhando atrás de uma mãe de gémeos.

Nesse tempo, diz Junod (op cit: 371-378), o infanticídio do gémeo mais débil já não era praticado, como nos “tempos antigos”, mas tanto os gémeos como as suas mães eram objecto de especiais restrições e controlo social.
No dia seguinte ao seu nascimento, ninguém podia trabalhar, ou as colheitas secariam. Todas as mulheres da aldeia deviam partir em direcção aos quarto pontos cardeais, cantando “que a chuva caia” e regressando com água que era despejada sobre a mãe e os gémeos. A sua cabana era queimada e passavam a viver numa outra, fora da aldeia, usando objectos em que mais ninguém podia tocar e recolhendo a água de um local exclusive. Os gémeos não eram apresentados à lua e começavam a ser alimentados com leite de cabra mal a sua mãe voltasse a ter menstruação. Só voltariam à aldeia quando a mulher desse à luz um bebé “normal”, após provocar a morte consecutiva de quarto homens, por lhes passar a sua impureza através da prática sexual. Mesmo nessa altura, os gémeos eram proibidos de brincar com outras crianças, eram apontados como exemplos de mau carácter e, tal como as suas mães, eram objecto de especiais protecções rituais quando assistiam a cerimónias funerárias.
De acordo com o autor, muitas destas restrições tinham semelhanças com as impostas às viúvas.
Eram mais exigentes, duras e longas porque, se o nascimento de gémeos era identificado com a morte, tinha também uma significância cósmica – os gémeos eram chamados «filhos do céu» e a sua mãe era referida como a pessoa que fez, carregou ou subiu ao céu. Contudo, os aspectos ameaçadores que derivavam dessa familiaridade cósmica podiam ser socialmente úteis em momentos de crise: nos mais fortes rituais contra a seca, era necessário sentar uma mãe de gémeos numa cova e cobri-la de água até ao peito e, se relâmpagos assustadores se aproximassem da aldeia, só um gémeo conseguiria pedir à tempestade para se afastar.

Como seria de esperar, Junod interpreta essas práticas e crenças, que ouviu de forma fragmentar, de acordo com as ferramentas teóricas à sua disposição – utilizando a tipologia de princípios mágicos elaborada por Frazer (The Golden Bough).
No entanto, Feliciano (Antropologia económica dos thonga do sul de Moçambique) pôde fornecer-nos mais detalhes e uma interpretação global da posição ocupada pelos gémeos no sul de Moçambique.

Para além dos dados fornecidos pelo seu predecessor, aponta outras práticas dos finais da década de 1970 que, conforme pude verificar, ainda estão em uso actualmente. Quando um gémeo adoece, é proibido chorar, dar-lhe remédios ou perguntar-lhe se está melhor; pelo contrário, deverá ser insultado com frases como «Quando é que morre?», ou «De qualquer maneira, vai ser comido pelos peixes.» Nos funerais, os gémeos devem manter-se à distância das outras pessoas. Quando um deles morre, é proibido chorar e deverão ser colocadas cinzas na fontanela do sobrevivente, para evitar que desmaie. O gémeo sobrevivente não pode tomar medicamentos, ou morrerá, e não pode ir ao funeral, ou desmaiará e cairá dentro da campa (op cit: 334-336).

Pude também ouvir e observar que o gémeo sobrevivente não pode verbalizar a morte do irmão ou irmã. Pelo contrário, deve agir como se o falecido estivesse nalgum lugar longínquo e, se alguém que não saiba da morte lhe pedir notícias do defunto, deverá mentir, inventando alguma viagem ou dizendo que o finado se mudou para outro país ou província. Tal como muitas vezes acontece, várias pessoas foram incapazes de me apresentar uma razão clara para este comportamento, limitando-se a dizer que seria perigoso agir de outra forma; outras pessoas, contudo, explicaram-me que falar acerca da morte do outro gémeo traria a morte ao sobrevivente. Na atitude e nas palavras deste, então, o gémeo morto limitou-se a desaparecer.

A característica dos gémeos que aqui mais nos interessa, no entanto, é o facto de eles terem que ser enterrados em solo molhado ou, tal como acontece com outras pessoas e nascimentos anormais (op cit: 326-352), secarão a terra.
A razão desta prática e das restantes restrições impostas aos gémeos no sul de Moçambique torna-se mais clara se atentarmos na análise de Feliciano acerca do sistema simbólico que é localmente dominante (op cit: 305-308).
Em síntese, o autor sustenta que todos os fenómenos pertinentes de natureza social ou cósmica são “tradicionalmente” concebidos de acordo com um conjunto de diferentes códigos, com particular relevância para o sexual, o térmico e o culinário. No entanto, esses códigos são isomorfos e cada um deles pode ser usado para representar analogicamente (ou mesmo para dirigir a representação de) fenómenos que pertencem ao âmbito de outro código, o que aliás acontece de forma regular.
Neste quadro, a reprodução humana é análoga à interacção de um par incubador fogo/água e seu resultado bem sucedido, o bebé vivo, é representado como sendo água (que pode ou não resultar de uma tempestade) e, tal como a água, os bebés normais propiciam a fertilidade global. Só provisoriamente, até à cicatrização do umbigo e ao fim do sangramento da parturiente, o bebé e a sua mãe são considerados «quentes». No entanto, de um aborto ou de um bebé que morre enquanto está quente, resulta um desequilíbrio térmico global que exige o enterro do cadáver num local húmido, ou a terra secará.

As analogias e substituições mútuas entre diferentes códigos vão, contudo, ainda mais longe: «se o raio, fogo que seca a terra, é como o aborto, sangue expulso que queima o bebé, e o aborto seca a terra, como se fosse um raio; então o raio queima os bebés como se fosse um aborto.» (op cit: 310)
Este ponto é crucial porque, embora também existam outras hipóteses populares hoje em dia 1, o nascimento de gémeos é correntemente atribuído, tal como o nascimento de albinos, a um acidente cósmico. Ambos foram atingidos por raios dentro do útero materno, com consequências um pouco diferentes: os gémeos foram partidos em dois e os albinos foram queimados. É por isso que os gémeos são chamados «filhos do céu» e são eficientes interlocutores com as tempestades, e que os albinos eram chamados em ronga qhlandlati («carvão de raio»), uma palavra que muitos falantes adultos conhecem mas evitam utilizar, devido à sua carga pejorativa.
Entretanto, a interação entre os códigos sexual e térmico clarifica um outro aspecto: devido à sua origem, os gémeos são (tal como os albinos) raios sem chuva; ao contrário dos outros bebés, nunca deixam de ser quentes, com as respectivas consequências. Para além dos perigos para si próprios que derivam dessa condição, propiciam a secura e infertilidade, a desarmonia social e mesmo a doença – que é nalguns casos, normalmente relacionados com a sexualidade, atribuída a uma situação de calor interior chamada kuhisa. Em suma, são ameaças socio-cósmicas.

É este o quadro geral de referências relativamente aos gémeos no sul de Moçambique. Para além delas, contudo, Junod (op cit: 272) menciona en passant um detalhe revelador de que, já há mais de um século atrás, as características atribuídas aos gémeos e outros “secadores de terra” podiam ser extrapoladas para outros grupos de pessoas ameaçadoras, e ser ligadas ao destino que era dado aos seus cadáveres. De facto, dizia-se que chovia tempestuosamente sempre que as pessoas se juntavam para apanhar os barbos nalgumas lagoas, que a estação seca tinha transformado em lamaçais. Isto acontecia porque, no passado, tinham ali ocorrido batalhas e os cadáveres dos inimigos tinham sido atirados para a água.

Mas porque razão se parte do princípio, tantos anos depois, que também os prisioneiros políticos que desapareceram foram atirados para a água, ou sepultados em terra molhada?


[1] Pude ouvir duas delas em contexto urbano, de pessoas com níveis de escolaridade elevados: (1) uma mulher terá gémeos se a sua xará (a pessoa de quem herdou o nome) teve gémeos; (2) tornar-se mãe de gémeos é hereditário. Contudo, não só estas novas hipóteses populares torneiam a razão da própria existência de gémeos, como se verifica que os casos reais de nascimentos de gémeos em gerações sucessivas são, pelo contrário, encarados correntemente como um acontecimento estranho e muito excepcional.

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