quarta-feira, 30 de abril de 2008

Malhar em ferro frio

O PCP anunciou que vai apresentar uma moção de censura ao Governo.

O que não falta ao governo são, certamente, razões para ser censurado.
Se outras não houvesse, bastaria um primeiro-ministro que reage a essa notícia dizendo que se trata de uma "moção de censura contra o diálogo na concertação social"...

Mas, realmente, o novo Código de Trabalho (pois há alterações que transformam as coisas em algo qualitativamente diferente) merece toda a censura e toda a oposição - tal como o tinha merecido, em Janeiro, a ratificação do Tratado de Lisboa sem referendo, contra o próprio programa eleitoral do governo.
Assim como na altura dessa moção de censura do BE, parece que para o nosso primeiro a política (nas grandes questões nacionais, e não apenas para ganhar a concelhia do partido lá na santa terrinha) se resolve e reduz a umas cambalhotas hermenêuticas e a umas bojardas bombásticas em que nem sequer acreditam o próprio e os acessores que as escreveram.

Por parte dos censurantes, ainda percebo que uma questão de Estado como a ratificação do Tratado possa levar à apresentação de uma moção que se sabe, à partida, ir ser derrotada.
Não dou menos importância à precarização do emprego. Mas fazer, agora, uma moção de censura para «transportar o descontentamento, a angústia e o protesto» para o parlamento soa-me a leviandade.

Porque há muitas outras formas de fazer esse transporte.
Porque se banaliza a figura da moção de censura.
Porque um gesto simbólico votado à derrota vai ser apresentado como um grande combate político.
Porque vai ser olhado pelas pessoas, mais do que como uma luta do PCP com o PS, como um "não ficar atrás" do BE («e, vejam, não nessas mariquices das Europas, mas nos problemas concretos dos trabalhadores!»).
Porque o pessoal, ao fim e ao cabo, se está nas tintas para que o assunto seja abordado numa moção de censura para perder.
Porque se vai dar oportunidade ao nosso primeiro para dizer, enquanto nos lixa a vida, que a "democracia falou" e que a legitimidade das "alterações" saiu reforçada.

Claro que, se estivesse lá sentado, votaria a favor da moção de censura - ingloriamente, como os outros que o vão fazer.
Claro que gosto de cantar «Glória a todas as lutas inglórias que através da nossa história não esquecemos jamais». Mas convém escolhê-las.
Claro que tenho plena consciência da importância política dos gestos simbólicos. Mas eles podem simbolizar impotência.
Ao fim e ao cabo, parecem-me demasiados "porques" para que alguém alce esta moção em bandeira. E fazê-lo levanta mais um:
Porque parece que não se sabe que raio mais fazer.

Vistas de longe, esta encenação e deixas (opositoras e primeirísticas) parecem um bocado ridículas e bastante confrangedoras.
Digam-me: vistas de Portugal perdem essas características?
Ou só quando são vistas de dentro dos aparelhos partidários?

terça-feira, 29 de abril de 2008

Não dá para acreditar! (2)


A propósito deste post e desta notícia, recebi de um leitor que se identifica como Miguel o seguinte comentário:


«Quem diz que a multa é pelo facto da junta não comprar gasóleo é o jornalista. A lei diz algo um pouco diferente:
Decreto-Lei 62/2006:
Artigo 7º
3 - Os pequenos produtores dedicados devem comunicar à Direcção-Geral de Geologia e Energia (DGGE) e à Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC), até ao final dos meses de Janeiro, Abril, Julho e Outubro, as quantidades de biocombustíveis e ou de outros combustíveis renováveis por si produzidas no trimestre anterior, bem como a identificação dos consumidores e das respectivas quantidades que lhes tenham sido entregues.
4 - O reconhecimento como pequeno produtor dedicado está sujeito a despacho conjunto do director-geral de Geologia e Energia e do director-geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo.
Artigo 14.º
1 - Constitui contra-ordenação punível com coima de (euro) 500 a (euro) 3740, no caso de pessoas singulares, e de (euro) 2500 a (euro) 44891, no caso de pessoas colectivas:
a) A violação das quotas mínimas previstas no n.º 2 do artigo 5.º;
b) A violação do disposto nos n.os 1, 3 e 4 do artigo 6.º;
c) A violação do disposto no n.º 4 do artigo 7.º e no artigo 11.º;
d) A violação do disposto no n.º 1 do artigo 9.º;
e) A violação do disposto no n.º 1 do artigo 10.º
2 - A negligência e a tentativa são puníveis.
Artigo 15.º
A instrução dos processos de contra-ordenação, instaurados no âmbito do presente decreto-lei, compete à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica e a aplicação das correspondentes coimas e sanções acessórias compete à Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e Publicidade, sem prejuízo das competências próprias de outras entidades.»

Cumpre-me comentar o seguinte:

Eh, homem! Isso é que é militância profissional!
Diria que o senhor ainda chega a chefe da tasca, se não corresse o risco de o ter a inspeccionar-me a salubridade da cozinha lá de casa, quando voltar a Portugal.

Confesso que prefiro o novo estilo "Incorruptíveis contra a Droga" do que o mais batido "Ó Abreu dá cá o meu e fica tudo na mesma".
Mas confesso também que deve ser necessária uma personalidade e uma visão do mundo que escapam àquilo que conheço, compreendo e considero saudável, para alguém se devotar à protecção e fiscalização de regulamentações e leis absurdas (a não ser que sejam feitas para proteger os interesses de grandes empresas), só porque existem.
Desculpar-me-á, mas só consigo compreender isso à luz de mentalidades de há mais de 34 anos e 4 dias, ou à luz da consciência de quem é que se está a defender - e, neste último caso, deveriam ser pagos pelas tais empresas e não pelos meus impostos.

Quanto ao sumo da sua objecção, não me irei obviamente dar ao trabalho de pesquisar os outros artigos todos para ver a que é que se referem aqueles que envia.

Em termos legais, a primeira estranheza que se me levanta é como é que uma Junta de Freguesia pode ser considerada um "produtor dedicado" de produtos materiais.
Não sou jurista, mas sei qual é o significado jurídico dessa expressão - e, neste caso, a sua aplicação a uma instituição como essa é uma contradição de termos e um abuso grosseiro.

Acresce que o Presidente da Junta diz no artigo (e ninguém nega) que pediu várias vezes as autorizações, que certamente terão tempo limite para despacho, e estas não tiveram seguimento.
Onde foi recolhida a informação que levou à coima? Nos serviços dos Directores-Gerais que não cumpriram a sua obrigação?

Mas, desculpar-me-á, o cerne da coisa não está para mim em definições de figuras jurídicas e duplicidades de critérios, mas nas próprias regulamentações que vão sendo importadas em catadupas, aparentemente tão irrelevantes que ninguém se dá ao trabalho de as estudar, e no empenho de mostrar serviço inspeccionando o seu cumprimento à letra (ou, neste caso, contra a letra), por absurdo, impossível ou socialmente indesejável que seja.

Mantenho, por isso, as interrogações do post que comentou:
O bom senso meteu férias?
A inteligência ausentou-se para parte incerta?

E, por favor, não me diga que quem tem que inspeccionar o cumprimento legal não tem que reflectir sobre o contexto concreto que inspecciona, tem apenas que aplicar o que está escrito.
Porque isso não é uma atitude de objectividade e independência. É uma tomada de posição e uma ideologia.

Brown mushrooms

Há um petisco que nenhum apreciador de comida saborosa deverá perder na África austral.
Não sei o nome da espécie, só que são vendidos nos supermercados de Maputo, vindos da África do Sul, como "Brown Mushrooms".
Já tentei muitas formas de os cozinhar, nenhuma delas merecedora de desprezo, mas acabei por me fixar nesta:

Tiram-se os pés aos cogumelos e cortam-se aos pedaços (às metades, se foram dos mais pequenos, às fatias se foram grandes).
Metem-se numa panela com um pouco de manteiga derretida, só o suficiente para fazer uma camada no fundo, e deixam-se em lume brando, cerificando que não se pegam ao fundo no início da operação.
Quando já largaram os sucos e fervem num molho quase preto, deita-se um pouco de limão e de molho de soja. Tudo só um bocadinho, coisa ligeira, apenas para lhes realçar o sabor.
E continuam em lume brando até estarem totalmente cozinhados.

Podem ser servidos como entrada, ou junto com o prato.
Nesse caso, aconselho uma carne que se saiba tornar discreta e arroz branco ou, melhor ainda, uma maçaroca de milho cozida. Um branquinho seco e fresco cairá a matar.

PS: deu-me para este post agora porque fiz isto ao almoço e a minha senhora me lançou um olhar daqueles que juram amar-nos para sempre. Será que as mulheres se prendem pelo estômago?

Como prever tempestades africanas

Como prever uma tempestade africana iminente? Dois métodos infalíveis:

1 - Consultar o termómetro e o higrómetro (que sobem) e o barómetro (que desce).
2 - Perguntar a este vosso criado se ficou subitamente com dor de cabeça e uma graaaanda preguiça.

Como saber se a tempestade é forte? Também dois métodos:

1 - Pesquisar na internet (a informação chega com atraso, mas dá).
2 - Contar o número de cabeças no meu quarto. Se são duas, é fraca. Se são quatro (incluindo uma de cão), é forte.

(foto roubada aqui)

segunda-feira, 28 de abril de 2008

O vencedor fica com tudo?

Há quem defenda que os imbróglios na aplicação em África de modelos universalizantes de democracia não têm sobretudo a ver com tribalismos, com hábitos históricos de submissão ou com particularismos culturais, mas com uma visão predominandte do que é o poder: o vencedor fica com tudo.
E o vencedor poderá sê-lo por eleições, por herança (colonial, libertadora ou genealógica) ou pela força.

Não é uma visão "tradicional". Há sistematicamente, na história da África sub-sahariana, mecanismos de controlo colectivo do poder, seja ele uma pequena chefatura ou um enorme Estado, aparentemente autocrático.
Essa quase inovação também não é uma fatalidade. Basta ver o funcionamento da democracia interna do ANC (África do Sul), muito mais profunda e substancial do que na maioria dos partidos "ocidentais".

Não obstante, ouvi essa ideia ser várias vezes repetida por vozes populares em Moçambique, até em relação às eleições autárquicas. «Como é que pode o filho mandar no pai?», perguntava-me por exemplo um senhor, perante a perspectiva de passar a haver municípios geridos por opositores do Presidente da República, fosse ele quem fosse.
A adesão popular a esta visão poderá ter a ver com os regimes "musculados", com a retórica da legitimidade libertadora anti-colonial e com o facto, também ele histórico, de os tais mecanismos de controlo do poder se fazerem sob uma aparência e ritualização de submissão ao chefe.

Tudo isto será muito interessante para aprofundarmos o assunto, mas confesso que me chocaram as afirmações de Morgan Tsvangirai em conferência de imprensa, suponho que hoje: «Mugabe deve compreender que não pode ser Presidente sem controlar o Parlamento.»
É verdade que a situação é difícil e os abusos, ameaças e atropelos mais que muitos. Muito mais, talvez, do que possamos imaginar.
Mas esta tentativa de convencer Mugabe (ou os concidadãos?) usando a mais mugabiana das lógicas é preocupante. Declara, afinal, a impossibilidade de coexistências e de partilhas de poderes, mesmo que todos eles legitimados pelo voto.

Está muito claro, hoje em dia, quem foram ou roubados e violentados - não só nas eleições, mas nos últimos anos.
Mas será que, chegados ao poder que legitimamente já lhes pertence, os novos vencedores vão olhar para o seu exercício desta forma?
Será que só podem conceber que o vencedor fique com tudo?

Diplomacia silenciosa - the output

(clique para aumentar)

Coisas de que não me importo

O Zé Paulo, que não tenho ainda o prazer de conhecer excepto pelas visitas ao seu blog, “mimou-me” ao incluir-me na corrente do «Não me importo…»

Cá vão, então, 6 das coisas de que não me importo, junto com uma foto que me importa muito:

- Não me importo de sofrer as consequências de dizer o que penso, desde que elas recaiam apenas sobre mim.
- Não me importo que a minha filha desafie a minha suposta autoridade paternal, de preferência com um bom argumento.
- Não me importo de cantar «Solo Le Pido a Dios», mesmo sendo ateu, agnóstico ou coisa que o valha.
- Não me importo de suportar o SPM da minha senhora, pois mesmo nessa altura é com ela que eu quero viver.
- Não me importo de ir aturando umas sacanices académicas, pelo privilégio de trabalhar naquilo que mais gosto.
- Não me importo que me elogiem, desde que sejam também capazes de me criticar.

De acordo com as regras abaixo indicadas, venham mais 6 (em vez de 5): a Marta, o Miguel Portas, o Carlos Serra, a Isabela, o Segundo Remador e o Pedro Penilo.


Regras:
- Dizer 6 coisas que não se importe de fazer ou de ter.
- Colocar o link da pessoa que o "mimou".
- Colocar as regras no blog.
- Desafiar 6 pessoas, deixando um comentário nos seus blogs.

Gosto do homem, o que é que se há de fazer?


Temo que alguns visitantes regulares se zanguem comigo, mas é verdade: gosto do Pedro Passos Coelho e fico satisfeito por ele estar a recolher apoios.
A coisa começou na minha juventude serôdia, quando presidia a um proto-sindicato de soldados de que quase ninguém se deve lembrar - a CASMO.
À conta disso, ia contactando com os líderes das juventudes partidárias (também eles rapazes para a minha idade) que, à excepção do da JCP, se tornaram conhecidos. Eram, na altura, o Tózé Seguro, o Monteiro e o Pedro Passos Coelho.

Acerca dos dois primeiros, permitam-me que guarde para mim próprio a minha opinião e impressões.
Mas o Pedro Passos Coelho destacava-se claramente do lote, pela inteligência, a lucidez, um intrínseco espírito democrático e respeito pela cidadania, e por subordinar as partidarices aos princípios, tanto quanto podia.

Só o voltei a ver, via TV, num daqueles congressos do PSD que antecederam, como espectáculo, as transmissões de wrestling. Peguntavam-lhe acerca da hipótese de o Pedro Santana Lopes virar presidente lá do clube deles e a sua resposta ficou-me no ouvido: «Isso seria a catástrofe completa!»
Também o vi a cantar ópera, mas enfim, nem todos podem gostar de Jazz...

Um velho amigo meu dizia, do alto dos seus cabelos brancos, que a idade acanalha os homens. Talvez. E não posso saber se o Pedro Passos Coelho de hoje é aquele que conheci.
Mas lá que me sentiria mais seguro, enquanto cidadão que mais tarde ou mais cedo lhes sofrerá a acção, se os líderes dos partidos da "alternância" tivessem as características que conheci a este homem, lá isso é verdade.

Pela minha parte, nunca irei votar no PSD, com Pedro Passos Coelho ou sem ele. Para isso, tenho gente politicamente mais próxima de mim, mesmo que não me despertem a simpatia que sinto por ele.
Mas o nosso primeiro que se cuide. Centro-esquerda por centro-esquerda, o pessoal do "centrão" acabará por preferir the real thing.

domingo, 27 de abril de 2008

Não dá para acreditar!

Ok.
É verdade que este título daria para comentar algumas 27 notícias cada dia.
É verdade que sou totalmente crítico da transformação de países de terceiro-mundo (que existem, mesmo se o segundo já não) em plantadores de matéria-prima dos bio-diesels que cantam, à custa de segurança alimentar da população.

Mas se uma Junta de Freguesia monta uma estrutura de recolha e reciclagem de óleos alimentares,
alimenta com isso os carros do lixo,
e depois é multada pelo "Estado" (a que pertence) por o lesar nos impostos, devido a não comprar gasóleo, só dá para perguntar:

O bom senso meteu férias?
A inteligência ausentou-se para parte incerta?

Sinto vontade de inverter a frase final de um outro post:
Ou o mundo está a ficar parvo, ou eu estou a ficar mais novo.

Moçambique na «Análise Social»

O próximo número da Análise Social, a mais antiga revista portuguesa de ciências sociais, será um temático dedicado a Moçambique Actual - Continuidades e Mudanças.
Após a Apresentação do volume pela pena do seu editor (este vosso criado), poderão descobrir os seguintes artigos:

Paulo Granjo: Dragões, Régulos e Fábricas - espíritos e racionalidade tecnológica na indústria moçambicana
Brigitte Bagnol: Lobolo e espíritos no sul de Moçambique
Sofia Aboim: Masculinidades na Encruzilhada - hegemonia, dominação e hibridismo em Maputo
Emídio Gune: Momentos Liminares - dinâmica e significados no uso do preservativo
Jason Sumich: Construir uma Nação - ideologias de modernidade da elite moçambicana
Fernando Florêncio: Autoridades tradicionais vaNdau de Moçambique - o regresso do indirect rule ou uma espécie de neo-indirect rule?
Harry West: «Governem-se a Vocês Próprios!» - democracia e carnificina no norte de Moçambique
Albert Farré: Vínculos de Sangue e Estruturas de Papel - ritos e território na história de Quême, Inhambane
João Pereira: «Antes o “diabo” conhecido do que um “anjo” deconhecido» - as limitações do voto económico na reeleição do Partido FRELIMO

Disponibilizarei em breve os resumos dos artigos, para vos aguçar o apetite.

sábado, 26 de abril de 2008

Liberdade, coisa natural

Ao contrário da maioria dos democratas da minha geração, não me desagrada que o pessoal 20 ou 30 anos mais novo se esteja nas tintas para as comemorações do 25 de Abril.
Não me desagrada, porque isso quer dizer que, para eles, a liberdade é uma coisa natural, um dado adquirido que sempre conheceram e que, por isso, nem sequer justifica celebração.

É claro que não é assim, que a liberdade só é “natural” nas abstracções de alguma filosofia política e que nunca é um dado adquirido.
É claro que a liberdade que conhecem é resultado de milénios de lutas, expressão de um equilíbrio mutável de poderes e um bem permanentemente ameaçado.

Mas estará menos apetrechado para defender a sua liberdade (e para se aperceber quando ela é posta em causa) quem a sinta como natural?
Duvido muito. Não se aperceberão de como é fácil perdê-la; mas, mais do que quem se habituou a conhecer a sua ausência, encararão essa perda como inaceitável.

A aparente indiferença dessas pessoas mais novas é, afinal, a maior das comemorações, o mais forte hino à liberdade – e, saibam-no elas ou não, àqueles que contribuíram para que ela se tornasse normal.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Sonhos e ressacas


Quando a corja topa da janela
O que faz falta
Quando o pão que comes sabe a merda
O que faz falta

O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta

Quando nunca a noite foi dormida
O que faz falta
Quando a raiva nunca foi vencida
O que faz falta

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é acordar a malta
O que faz falta

Quando nunca a infância teve infância
O que faz falta
Quando sabes que vai haver dança
O que faz falta

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta

Quando um cão te morde a canela
O que faz falta
Quando a esquina há sempre uma cabeça
O que faz falta

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta

Quando um homem dorme na valeta
O que faz falta
Quando dizem que isto é tudo treta
O que faz falta

O que faz falta é agitar a malta
O que faz falta
O que faz falta é libertar a malta
O que faz falta

Se o patrão não vai com duas loas
O que faz falta
Se o fascista conspira na sombra
O que faz falta

O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é dar poder a malta
O que faz falta




Tinha uma sala mal iluminada
Perguntavas pelo amigo e estava a monte
A fuga era a última cartada
A pide estava ali mesmo defronte

Às vezes uma dúvida rondava
Valia ou não a pena o que fazias?
Se alguém caía um outro alevantava
O tronco que tombava e renascias

A velha história ainda mal começa
Agora está voltando ao que era dantes
Mas se há um camarada à tua espera
Não faltes ao encontro sê constante

Há sempre quem se prante à tua mesa
Armado em conselheiro ou penitente
A luta agora está de novo acesa
E o caminho é só um é sempre em frente

Perdeste a treino falta-te a paciência
Ouviste antes do tempo mil fanfarras
Já os soldados fazem continência
Ao som do choradinho e das guitarras

A velha história ainda mal começa
Agora esta voltando ao que era dantes
Mas se há um camarada à tua espera
Não faltes ao encontro sê constante

Aquele dia em Abril

Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade

Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Amigos, venham sempre mais


Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também

Em terras
Em todas as fronteiras
Seja benvindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também

Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também



Venham mais cinco, duma assentada que eu pago já
Do branco ou tinto, se o velho estica eu fico por cá
Se tem má pinta, dá-lhe um apito e põe-no a andar
De espada à cinta, já crê que é rei d’aquém e além-mar

Não me obriguem a vir para a rua gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa e zarpar

A gente ajuda, havemos de ser mais eu bem sei
Mas há quem queira, deitar abaixo o que eu levantei
A bucha é dura, mais dura é a razão que a sustém
Só nesta rusga não há lugar prós filhos da mãe

Não me obriguem a vir para a rua gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa e zarpar

Bem me diziam, bem me avisavam como era a lei
Na minha terra, quem trepa no coqueiro é o rei
A bucha é dura, mais dura é a razão que a sustém
Só nesta rusga não há lugar prós filhos da mãe

Não me obriguem a vir para a rua gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa e zarpar

Amigos de Moçambique


Diga amigo Miguel como está você?
Em todo o Xipamanine já ninguém o vê
Vou dar-lhe a minha viola
Para tocar outra vez

O seu valor um dia você mostrou
Todo o mainato o ouvia e até dançou
Miguel só você sabia
Tocar como já tocou

Vinha maningue gente para aprender
Moda lá da sua terra bonita a valer
O Jaime e o Etekinse
Amigos não volt'haver

Quando a noite se ouvia Miguel tocar
Também havia a marimba para acompanhar
A noite na Ponta Geia
Amigos hei-de recordar

O barco foi andando e a Nanga vi
Foi a saudade aumentando longe daí
A gente na minha terra
Não canta assim como eu ouvi

Eunucos e Mortes


Os eunucos devoram-se a si mesmos
Não mudam de uniforme, são venais
E quando os mais são feitos em torresmos
Defendem os tiranos contra os pais

Em tudo são verdugos mais ou menos
No jardim dos haréns os principais
E quando os pais são feitos em torresmos
Não matam os tiranos pedem mais

Suportam toda a dor na calmaria
Da olímpica visão dos samurais
Havia um dono a mais na satrapia
Mas foi lançado à cova dos chacais

Em vénias malabares à luz do dia
Lambuzam de saliva os maiorais
E quando os mais são feitos em fatias
Não matam os tiranos pedem mais



A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome para qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue de um peito aberto sai
O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o Pintor morreu

Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina, à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou
Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas de uma nação

A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome para qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue de um peito aberto sai
O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o Pintor morreu
O Pintor morreu...
O Pintor morreu...

Cozinhados zimbabweanos

No Zimbabwe, torna-se cada vez mais provável que a regional "solidariedade entre libertadores" (que avilta esse merecido epíteto e esquece os libertadores que se distanciam ou opõem a esse cozinhado, de que Zuma e a COSATU são apenas os mais evidentes) permita e estimule uma "saída airosa" para Mugabe: A partilha de poder com os vencedores e a transformação de vencido em vencedor, para que possa depois sair pelo seu próprio pé, vencido ou não pela idade, o caruncho e a morte.
É esquecer que o poder no Zimbabwe não é apenas Mugabe, mas uma oligarquia politico-militar, mas adiante.

Nessa visão implícita de que poder obtido é poder vitalício (independentemente daquilo que queiram os "libertados"), o cozinhado passará quase certamente por uma segunda volta das presidenciais, depois das necessárias recontagens à porta fechada. Um segunda volta que se deverá parecer bastante com este cartoon, retirado daqui.

Não sei se é por ser 24 de Abril, mas estas visões do poder e da política soam-me a dejà vu.
Substitua-se "libertadores" por "salvadores da pátria", ou juntem-se as duas, como nesta outra imagem e... Lembram-se?

28/4: Quatro dias depois, tudo como dantes, quartel-general em Abrantes.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

O mundo ouve-nos

Passou hoje por aqui mais um visitante de um país bem improvável.
O meu espanto pelos sítios onde chega um blog modesto como este, e pela importância que instrumentos como ele acabam por ter na divulgação de análises antropológicas e da forma de pensar das ciências sociais, foi ficando dito aqui e aqui.
Desta vez, deixo apenas um sentido obrigado aos leitores na África do Sul, Alemanha, Brasil, Canadá, Dinamarca, Estados Unidos da América, França, Ghana, Grã-Bretanha, Holanda, Itália, Luxemburgo, Macau, Moçambique, Namíbia, Noruega, Portugal, Quénia, República Checa, Tailândia e Tanzânia.

27/4: um Olá! também para a Austrália.
28/4: e para a Finlândia, a Bélgica, a Espanha e Angola. Já agora: a bandeira oficial ainda é esta, ou já é a do sol? E quem vem identificado como "União Europeia"? Liga lá da Comissão?
5/5: Um abraço, também, para a Suécia, Grécia, Eslováquia, Áustria, Haiti, Venezuela e Suiça. Mais outro pra a Martinica e o Yemen (6/5). Bem-vindos, Chile e Argentina (8/5). E o Perú, Israel, Índia e Roménia (13/5). Olá, Uruguai (14/5). Bem-vindos, México, Eslovénia, Brunei, Irão e Hong Kong (18/5).

Poder, Morte e Linchamentos - 4 e final

Tanto quanto sei, nunca a metáfora de «o povo saiu da garrafa» foi utilizada para designar linchamentos.
Seria de facto estranha a sua utilização popular, pois um linchamento – por muito que possa parecer um motivo de orgulho a quem o executa – tem uma carga negativa que desaconselha que dele se vanglorie para o exterior. Não obstante, sugiro, uma utilização dessa metáfora seria pertinente.

Isto porque, bem ou mal e independentemente do nosso julgamento moral e sentimentos acerca do assunto, os linchamentos são encarados como uma tomada nas próprias mãos do poder de controlo sobre a vida e a comunidade e, simultaneamente, como uma afirmação desse poder – perante as figuras que se considera ameaçarem-no, perante a comunidade e perante as autoridades externas a ela.
Neste caso, o poder que foi ilicitamente alienado, numa situação que cria uma submissão indevida e amorfa (colocando a comunidade «na garrafa»), é a capacidade de controlo sobre a tranquilidade, a ameaça, a incerteza, o futuro. Essa ausência de controlo – a ameaça e a incerteza, afinal – é projectada sobre a figura do criminoso, real ou suposto; é ele o ‘feiticeiro’ que, na ausência de ‘contra-feiticeiros’ reconhecidos como eficazes (policiais ou judiciais), “obriga” o grupo a assumir o ‘contra-feitiço’ que quebra a sua submissão.

Independentemente da metáfora da garrafa, o linchamento é assim, na sua vertente de performance de poder, uma afirmação, para o grupo e para o exterior, de que se tem esse poder que se considera não ter. É, ao mesmo tempo, uma tentativa de reivindicar e de assumir esse poder que, mais do que sobre os indivíduos socialmente ameaçadores e disruptores, se quer exercerr sobre o futuro colectivo.

A serem correctas estas pistas de leitura, o 5 de Fevereiro e os linchamentos são fenómenos isomorfos. Justifica-se então colocar, pelo menos como hipótese, que estejam relacionados entre si, ou sejam mesmo duas expressões de um mesmo desconforto social.

Encarando os linchamentos na sua vertente de discurso, afirmação e performance de poder, o que está em causa não é apenas (e talvez nem sobretudo) a pobreza, a criminalidade e uma imagem de inoperância policial e judicial.
Todos estes aspectos são importantes, tal como é fulcral a sensação de abandono social, ou a percepção de crescentes assimetrias socio-económicas e de indiferença, por parte dos que possuem e do poder político, para com a situação da esmagadora maioria de desfavorecidos.
Mas, seguindo as pistas complementares de leitura que sugiro, os linchamentos são também (por muito que tal nos custe enquanto observadores de um fenómeno chocante) uma assunção do domínio sobre as próprias vidas, uma reclamação da cidadania e do poder de decisão – ou, no mínimo, de ser tido em conta.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Lobisomem da semana

Esta semana, aqui, a fascinante história peri-urbana do cão assassino que afinal não era cão mas uma feiticeira, como na telenovela brasileira, e afinal era cão e não era assassino, mas mesmo assim morreu assassinado.

Interessados?

segunda-feira, 21 de abril de 2008

O trauma dos 40

Festa de 40º aniversário no Xipamanine. Na foto, a secção masculina, como dantes se dizia nas escolas primárias.
De todos nós, o aniversariante parecia ser a pessoa menos feliz com a efeméride.
Senti-me solidário. A minha própria festa dos 40 não foi assim há tanto tempo. Ainda me lembro de quanto esse número me impressionou, como se tivesse deixado parte de mim para trás, perdida por aí.
Qual "ternura dos 40"?!
É mas é o trauma dos 40!

domingo, 20 de abril de 2008

Cónego Melo kaput


Morreu, com 80 anos, o tristemente célebre Cónego Melo, da contra-revolução musculada e bombista bracarense dos tempos do PREC.

Soube aqui, e faço meu o comentário que por lá está.

Gémeos, albinos e desaparecidos - um apelo

Antes de afixar o último post da série Poder, Morte e Linchamentos (que ainda precisa de umas "limadelas"), deixem-me fazer um apelo aos leitores e bloguistas:

Estou a escrever um artigo para um livro colectivo, acerca da relação simbólica que existe em Moçambique entre os gémeos, os albinos e os presos políticos desaparecidos - no período colonial, ou depois disso.
Disponho de materiais para analisar, de terreno ou bibliográficos, que parecem ser mais do que suficientes. Mas diz-me a minha experiência que, nestas coisas, quanto mais melhor; um pequeno pormenor, numa história aparentemente inócua ou redundante, pode sempre abrir mais uma porta para interpretar de forma mais completa um determinado tema.
É por isso que apelo a que, manejando nós esta tecnologia dos blogs e internet, experimentemos uma nova forma de trabalho antropológico:

Peço a quem conheça histórias envolvendo gémeos, albinos, ou pessoas desaparecidas que foram presas pela PIDE, mandadas para o Niassa ou raptadas durante a guerra (e, sobretudo, sobre o que aconteceu aos seus corpos, sobre como eram tratadas as suas mães e sobre trovoadas que tenham acontecido), que as conte.

Não têm que ser histórias provadamente verdadeiras. Podem ser "diz-que-disse" ou "as pessoas acreditam que" pois, para o estudo de representações sociais, o seu valor é igual ao de verdades documentadas.
Seria bom que, ao fazê-lo, dessem o vosso contacto, para podermos esclarecer depois pormenores que sejam necessários. Mas peço que, se não o quiserem fornecer, indiquem pelo menos o vosso nome, mesmo que seja um pseudónimo - para poder agradecer-vos no artigo.

Afinal, as ciências sociais são sempre um produto colectivo.
Mesmo aqueles autores que se acham tão geniais que pensam nada deverem aos que os antecederam têm que reconhecer uma coisa: aquilo que sabem e as análises que fazem, por extraordinárias que sejam, têm como base o conhecimento, as interpretações e a inteligência de muitas outras pessoas - mesmo que se tenha a arrogância de chamar a essas pessoas "objectos de estudo".
Por isso me atrevo a fazer-vos este pedido.

Peço também aos bloguistas de/sobre Moçambique que divulguem este apelo, para que ele possa chegar a mais pessoas.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Poder, Morte e Linchamentos - intermezzo 3/4

No seminário que hoje ocorreu na UEM, o meu querido colega Alexandre Mate colocou aquela que será, parece-me, a pergunta fulcral quando olhamos para o actual surto de linchamentos peri-urbanos em Moçambique, que já vai em 28 casos consumados em 2008:

Nos anos posteriores à independência, quando um ladrão era detectado num bairro peri-urbano de Maputo, era perseguido, detido e espancado colectivamente. Isto era feito com intuitos claramente punitivos, mas sem qualquer intenção de matar; depois disso, a pessoa era entregue à polícia, sendo esta atitude considerada "tradicional".
Porquê e como é que se passou deste modelo de comportamento punitivo para o linchamento?

Na linha de raciocínio da minha comunicação no seminário (que aqui tenho vindo a afixar e cujo último post divulgarei em breve), sugiro duas pistas, talvez complementares, para procurarmos a resposta a esta pergunta essencial:

1. A dominação colonial, embora utilizasse extensivamente a punição corporal como pena contra actos considerados inaceitáveis e a aliasse à prisão, baniu as execuções capitais - excepto, claro, sob a forma de secreto homicídio de resistentes nacionalistas. Era esse o quadro de referências punitivas após a independência.
Os referentes militaristas (também eles ligados à história e luta do movimento de libertação nacional chegado ao poder) re-introduziram então a pena capital, incluindo sob a forma de fuzilamentos públicos - e a posterior guerra civil veio ainda reforçar isso, conforme indico no post anterior. As referências punitivas alteraram-se.

2. Os anos posteriores à independência foram marcados, sobretudo em meio urbano e peri-urbano, por um nível excepcional (e frequentemente abusivo e quase totalitário) de controle social, exercido a partir de consignas estatais/partidárias mas executado por estruturas políticas comunitárias. A isso aliava-se a sensação popular de que, concordasse-se ou não com cada uma das decisões do poder instituído, este se preocupava com a população e a ouvia.
Se é que os linchamentos correspondem, conforme sugiro, a uma afirmação e reivindicação de poder sobre a protecção e o futuro da comunidade, uma tal afirmação e reivindicação é socialmente pertinente no momento presente, mas não na altura.

Neste quadro, é claro que se pode sempre repetir que o linchamento, particularmente com pneu a arder, foi importado do Soweto, na África do Sul. Isso será factualmente correcto. Mas darmo-nos por satisfeitos com essa alegação é esquecer que só se importam (e, sobretudo, se espalham) as inovações culturais que façam sentido, face às condições sociais existentes. É necessário procurar para além das explicações que nada explicam.

Adenda a 21/4: com o linchamento de duas mulheres (caso muito raro, fora das zonas rurais) o número de linchamentos consumados este ano subiu para 30.

Adenda a 22/4: a contabilidade macabra aumentou hoje para 31.

Adenda a 29/4: 32...

Poder, Morte e Linchamentos - 3

Um linchamento não se reduz ao acto colectivo de matar, ou sequer ao aparente consenso (entre os que matam e/ou assistem) acerca da justeza e necessidade dessa morte.
Ele implica tipologias de procedimentos que, podendo variar bastante no espaço e em pouco tempo, têm algo em comum: são reconhecíveis pelos presentes (a partir de referências culturais que dominem) como indicadoras de que se está a linchar e não apenas a matar, e de que o acto que se está a executar é excepcional e não rotineiro.
Por outras palavras, o linchamento é um acto ritualizado, em que, como em qualquer ritual, a forma da acção (e do discurso) afirma e reitera o sentido daquilo que está a ser feito. Como em qualquer ritual, também, é expresso o carácter excepcional daquilo que está a acontecer e a suspensão da vida normal que aquele acto representa. Como em qualquer ritual, por fim, o linchamento é também uma performance, que permite transmitir esses sentidos e não apenas provocar a morte.

Assim sendo, penso que não será certamente irrelevante para este fenómeno o facto de existir, em Moçambique, uma familiaridade histórica com os castigos corporais (e a morte) públicos, ou mesmo, por estranho que isto soe, uma reafirmada estética performativa desses castigos e mortes.

Há muitas referências que nos permitem fazer recuar essa familiaridade e imaginário a tempos anteriores à ocupação colonial efectiva do território.
Basta pensarmos nas formas de execução pública dos invasores vaNguni de origem Zulu, no séc. XIX, que aliás levantam um perturbante paralelo com um acontecimento recente, que mereceria um estudo aprofundado: uma mulher linchada durante o recente motim de Chimoio, acusada de dar guarida aos criminosos e de ser feiticeira, foi empalada pela vagina, tal como nessas antigas execuções por adultério. Tratar-se-á de uma mera reapropriação de uma forma ultrajante de morrer, de que alguém tinha um vago conhecimento, ou será que diz algo mais acerca das razões por que essa mulher foi morta e do seu papel na comunidade, quando viva?

Também em tempos coloniais o castigo corporal, embora não a execução pública, era uma punição normal, decretada por autoridades administrativas ou mesmo por patrões.
Estão bem presentes no imaginário popular tanto as palmadoadas com a “menina-de-cinco-olhos” (com a dupla humilhação de este ser também um castigo escolar e que, portanto, infantilizava os adultos que lhe era submetidos), como o chicoteamento com chamboco – em ambos os casos predominantemente públicos, para que fossem não apenas punições, mas também formas de intimidação.

Na fase revolucionário pós-independência, a estética da morte e do castigo corporal públicos parece ter-se tornado ainda mais espectacular e ritualizada. São inúmeras as referências ao chambocamento público nos Campos de Reeducação (foto acima) ou até por parte de Grupos Dinamizadores, tendo mesmo sido integrados na legislação penal em 1983. Também se realizaram fuzilamentos públicos, com o grau de encenação e de compulsão para se assistir que estão habitualmente associados a essa prática.

Por fim, a guerra civil ficou marcada por relatos quer de fuzilamentos públicos sumários e selectivos – de autoridades administrativas, professores, enfermeiros – durante raides a zonas adversas, quer de crianças e jovens forçados a matar familiares ou vizinhos, quando não a comer pedaços deles, com o intuito de evitar que, uma vez levados pelos guerrilheiros, tivessem para onde desertar.

Não quero, ao enunciar estes sucessivos horrores, sugerir de forma alguma que a familiaridade com a morte e a punição corporal que deles resulta tenha banalizado o acto de matar e/ou torturar publicamente, ou tenha tornado irrelevante a vida humana.
Pelo contrário, proponho, é exactamente o valor atribuído à vida humana e o carácter excepcional da morte pública (e provocada pelo colectivo ou supostamente em seu nome) que permite e justifica o linchamento.
O que essa familiaridade histórica fornece é o conhecimento corrente de uma estrutura performativa de castigo e de afirmação do poder, que assim se encontra disponível para ser utilizada. Não é o matar pública e colectivamente que se banaliza, mas o conhecimento de que essa é uma forma reconhecível e culturalmente pertinente de punir, e de expressar ao mesmo tempo o carácter extraordinário e os sentidos associados a essa punição.

Que sentidos serão esses?
É adequado encarar os antecedentes históricos que referi à luz da proposta de Michel Foucault, que encara as execuções na Europa medieval como rituais públicos de dominação pelo terror, em que o objecto da pena é o corpo do condenado, mas o seu objectivo é fazer o povo testemunhar a vitória do poder instituído sobre o criminoso que o desafiou.
Mas, encarando os linchamentos como uma questão de poder, parece-me evidente que, no caso deste fenómeno, a leitura pertinente não é essa – quanto mais não seja, porque os actores são outros, com posições diferentes nas estruturas de relações de poder e os sentidos expressos pelo acto terão que o ser também.

Constituindo uma suspensão da normalidade em que as regras sociais correntes são consciente e colectivamente subvertidas, o linchamento é uma situação de liminaridade.
Ou seja, seguindo a sugestão de Victor Turner, o linchamento peri-urbano é uma subversão da ordem corrente que apresenta as condições privilegiadas para produzir nova ordem, com base na construção de novos consensos sociais.

A “nova ordem” procurada (sugiro-o e irei argumentá-lo no próximo post) é um “sair da garrafa”; é o assumir de um poder que se considera alienado e que, mais do que sobre os elementos socialmente disruptores, se pretende exercer sobre o próprio futuro colectivo.
O linchamento é, também, uma afirmação desse poder.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Edward Lorenz - 1917/2008

Faleceu o "pai" da teoria do caos.

Edward Lorenz, matemático e meteorologista, era bem menos conhecido do que a sua popular imagem acerca dos efeitos devastadores que o bater de asas de uma borboleta na China poderia ter sobre o lado oposto do globo.
É uma imagem que, tal como a expressão «cortina de ferro» inventada por Churchill, captou o imaginário de muitos milhões de indivíduos e alterou a sua visão do mundo.

Mas, a partir do seu trabalho Deterministic Nonperiodic Flow e da sua noção de caos determinístico (que tão útil pode também ser para analisar alguns fenómenos sociais), mudou a concepção que a ciência tinha da natureza, de uma forma talvez tão radical como Newton e Einstein haviam feito. Foi toda a noção de determinação (já anterior ao positivismo) que teve de ser repensada e, com ela, a forma como é encarada a causalidade material.
Uma lição que, conforme pude verificar em diversas ocasiões, ainda está por aprender em muitas comunidades científicas e disciplinares.

Poder, Morte e Linchamentos - 2


O que aqui fica escrito deverá chocar a maioria dos leitores, pois habituámo-nos a pensar o acto de matar em situação de guerra segundo a lógica de vitimação do agressor que, afinal, serve de base à noção de stress pós-traumático de guerra (SPTG).

As conversas que fui mantendo com ex-soldados portugueses das «guerras coloniais» pintam, no entanto, um quadro bem diferente. Eles referem dificuldades de adaptação à “vida normal” e dominam a retórica de vitimação do SPTG mas, depois de algumas cervejas, não é dos pesadelos, do medo de morrer ou da repugnância moral de matar que falam quando mencionam o choque do regresso (embora tenham sentido tudo isso, pelo menos nalgum momento), mas do violento contraste entre a liberdade e poder sentidos na guerra e a subalternidade e insignificância sentidas na paz.
É uma história recorrente o jovem que sai de um lugar repressor e reprimido, dá consigo num sítio onde experimenta coisas novas e tem poder de vida e morte sobre outros seres humanos, regressando a um sítio onde tudo parece igual e é esperado que se submeta a qualquer patrãozito, polícia ou notável local. Figuras de autoridade que considera insignificantes, pois não experienciaram a sua abertura de horizontes nem o seu poder de infringir as mais graves interdições sociais, sendo louvado por isso e podendo decidir quando o fazer. Relações de submissão que, pelo esvaziamento da sua anterior legitimidade e pelo seu contraste com o poder antes sentido, são agressoras e suscitam reacções agressivas, «anti-sociais».
Esta sensação agressiva de se passar, abruptamente, de um ser poderoso e determinante para outro socialmente subalterno e irrelevante radica, afinal, num dado que tendemos a procurar esquecer: que matar sob aplauso público, por muito emocionalmente violento que possa ser para o indivíduo que o faz (antes, durante e/ou depois do acto), é uma situação de poder praticamente sem paralelo na vida de quase todos os indivíduos. E que, para muitos (atrever-me-ia a dizer que para quase todos), a percepção desse poder suscita prazer, mesmo que o próprio acto de matar o não faça.

A guerra é uma situação liminar e de excepção, mas também o linchamento o é.
E também no linchamento é assumido (particularmente pelos indivíduos que nele assumem papeis mais activos, mas em última instância por todos) o poder extremo de decidir da vida ou da morte e de executar essa decisão, sendo esse acto socialmente proibido, agora, caucionado de forma aparentemente unânime pela comunidade que, no momento, parece ser a única que importa: a que é abrangida pelo acontecimento.
Por seu lado, o orgulho no acto realizado, evidente nas descrições de pessoas que até podem apressadamente alegar que não participaram nele de forma directa, justifica que (pelo menos como hipótese) se conclua o círculo de similitudes: mais do que como um «mal necessário», o linchamento parece ser vivido como uma afirmação pela positiva, como um assumir de poder – não tanto sobre a vida do suposto criminoso, mas sobretudo sobre a vida de quem o mata e da comunidade que considera sua.
Assim, ao prazer do poder em abstracto junta-se (tal como na “adivinhação”, na “previsão” e na acção “mágica” ou “técnica” sobre o futuro e a incerteza) o prazer de superar a humilhação de se ser um joguete do acaso e de forças que nos transcendem.
Em certa medida, então, podemos dizer que o linchamento constitui uma extensão das vertentes agradáveis da experiência traumática de guerra. Mas com a agravante de a consciência daquilo que está em causa nesta situação de excepção em tempo de paz ser bem mais imediata para os que nela participam do que costuma ser para os membros de uma força beligerante.

Os paralelos entre os dois fenómenos e a recente experiência de guerra em Moçambique poderiam levar-nos a perguntar: será que nas áreas onde os linchamentos ocorrem existe uma elevada concentração de veteranos de guerra?
Essa eventual correlação poderia ser estudada, confirmada ou infirmada. Mas, para complicar as coisas, nem a sua provável existência chegaria para confirmar o argumento, nem a sua inexistência o infirmaria.
De facto, se tanto a guerra como o linchamento criam o excepcional poder de matar sob aprovação social, não temos que pressupor que a experiência de guerra predisponha ao linchamento ou lhe seja necessária – a dinâmica deste último é suficiente para criar efeitos semelhantes aos da morte guerreira.
Por outro lado, matar em situação de guerra não é o único referente para a sensação de poder transmitida pela morte sob aplauso público. Existe também em Moçambique uma reafirmada estética da morte e do castigo físico públicos, que será o objecto do próximo post.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

6a feira há antropologia

Na próxima 6º feira, haverá mais um Seminário de Antropologia na UEM, onde apresentarei a comunicação «Poder, Prazer e Garrafas - pistas para a leitura do 5 de Fevereiro e dos linchamentos», dando-me o sociólogo Carlos Serra a honra e o prazer de ser o comentador.
Será das 9 às 11 horas, na sala 206 do edifício da Faculdade de Letras e Ciências Sociais, no campus universitário.

Deixo-vos em baixo o resumo. Poderão encontrar neste blog alguns textos mais desenvolvidos acerca do "povo na garrafa" e do "5 de Fevereiro". Quanto aos linchamentos, o essencial da minha proposta complementar de leitura do fenómeno irá sendo afixado hoje e amanhã, na série de posts que aqui se iniciou.

Poder, Prazer e Garrafas
pistas para a leitura do 5 de Fevereiro e dos linchamentos

A frase «o povo saiu da garrafa», depressa adoptada para designar os acontecimentos de 5 de Fevereiro de 2008 em Maputo, constitui (sob uma linguagem que manipula metaforicamente a feitiçaria) uma interpretação popular quer acerca do significado desse dia como ponto de viragem nas relações de poder, quer acerca daquilo que essas relações de poder eram e do que a população deseja que passem a ser.

Também seria pertinente ler a sucessão de linchamentos ocorridos em 2008 à luz dessa frase e metáfora, embora ela não tenha sido utilizada neste caso. Às várias pistas de leitura apontadas para a compreensão deste segundo fenómeno, sugiro que se acrescente uma outra, baseada na afirmação e performance do poder por parte da população. Parto, para tal, do poder assumido no acto de matar sob aplauso público (como em guerra), e da estética da morte e castigo físico público que encontramos em Moçambique desde tempos pré-coloniais, reemergindo no colonialismo, na revolução e na guerra civil.

terça-feira, 15 de abril de 2008

já não se fazem Finanças como antigamente!

Há poucas décadas atrás, quando alguém se sentia mal atendido num banco, perguntava se afinal estava nas Finanças.
Falar das Finanças era falar de pesadelo. De grandes esperas, gente tratando rudemente os utentes, com mais vontade de complicar do que de esclarecer e ajudar.

Hoje, estava a tentar preencher a minha declaração electrónica de IRS e vi que o meu password não entrava. Pânico! Que fazer, a partir de Maputo?
O número de telefone de apoio que eu tinha, lá de Portugal, estava desactualizado. Procurei e liguei para o serviço que, pelo nome, parecia ter mais a ver com o assunto. Atendeu uma senhora que disse que aquele problema não se tratava ali, mas ia ligar para o número correcto. Esclareceu que ia fazer uma transferência para um telefone externo, pelo que a chamada podia cair - e deu-me o número para onde iria transferir a chamada, just in case.
Olhava eu de boca aberta para a minha senhora, espantado com tanta solicitude e profissionalismo, quando me atenderam do tal número e me canalisaram de imediato para a pessoa indicada.
Pedindo desculpa por não ter acesso à password para a poder verificar, essa senhora deu-me todas as informações de que dispunha, que me permitiram detectar onde estava o problema. Mais do que isso, fê-lo primeiro comigo e depois com a minha santa sogra, pois o dinheiro do meu telefone em roaming foi-se a meio da chamada e teve que ser ela a completar a recolha de informações.
Lá pude fazer a minha declaração de IRS e não pensar mais no assunto até para o ano.

Eu já andava a desconfiar.
Também na Repartição de Finanças lá da minha zona tenho sempre sido bem atendido e nunca de lá saí com um problema por resolver, ou sem que me dissessem exactamente o que fazer para o resolver.
Já não se fazem Finanças como antigamente!

domingo, 13 de abril de 2008

Junta militar no Zimbabwe?

Diz o jornal The Zimbabwean desta semana que, desde o dia 30, o poder é ocupado no país de forma colegial, por Mugabe e pelo Estado-Maior das forças armadas e de segurança - o Joint Operations Command.
Essas altas patentes militares (apontadas como riquíssimas, corruptas e desesperadas por garantirem a continuidade do seu estatuto de excepção) teriam assumido parte dos poderes presidenciais, com base na constituição mas sem a necessária declaração de estado de emergência. O politburo da ZANU-PF teria entretanto, na sua reunião da semana passada, aceite essa situação.
Ainda de acordo com o jornal, seriam esses generais quem colocou sob apertada vigilância os membros séniores da comissão eleitoral (escolhida pela ZANU-PF) e pressionou os tribunais para não aceitarem tomar posição acerca da rápida divulgação dos resultados das eleições presidenciais.

À luz desta informação, compreendem-se melhor algumas coisas que não fariam muito sentido apenas com base na caturrice geriátrica de um tirano ex-libertador. Inclusive, a sua ausência da reunião de emergência da União Africana para tratar da situação no Zimbabwe.
Mas, confesso, não a vi em mais lado nenhum. Por isso, se alguém tem informações que confirmem ou infirmem esta, não se acanhem. A caixa de comentários está aí para isso.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Autismo em Portugal


Passado mais de um mês sobre este arrasador acontecimento, parece que, para esta senhora, nada de relevante se passou então.

Levanta-se-me a dúvida: será que ela é uma irmã desconhecida ou esquecida do senhor do post anterior?

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Mugabe, o perigoso autista do Zimbabwe

SURVIVOR ZIMBABWE - brevemente na e-tv


- A tribo tomou a sua decisão! A pessoa que abandonará a ilha é... Robert Mugabe!
- Quem, eu?!
- Lamento Bob, mas a tribo falou. Foste votado para sair.
- Não fui, não.
-Lamento muito, Bob. Mas todos queremos que deixes esta ilha.
- Não querem, não.
- Bob... vê por ti próprio! Olha para os resultados da votação! Passaste à história!!
- Não passei, não.
- Estás fora, Bob! É praticamente unânime!!
- Não é, não.
-Rai's partam, Bob!! Tens que encarar a realidade!!
- Não tenho,não.

(clique na imagem para aumentar)

Mendicidade empresarial

Foi-me dada a conhecer, aqui, esta pérola do empreendorismo e espírito empresarial de que alguns portugueses são capazes, com crises ou sem elas.
Como vêem, há sempre um nicho de mercado a explorar, de forma menos amadorística do que estender a mão - que, com "plano de formação adequado", "evolução na carreira", salário-base e comissões, isto é outra loiça.

Julgam os moçambicanos que os negócios de futuro são "moer milho com as nádegas" e "escrever cartas com o nariz" (foto roubada aqui)? Desenganem-se! Com um sentido do negócio como o do primeiro exemplo é que os países vão para a frente!
Ou será que alguns já sabem?

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Fernando Ganhão - 1937/2008


Foi hoje a sepultar Fernando Ganhão.

Participante na luta de libertação nacional moçambicana e seu representante no exterior durante alguns períodos, foi o primeiro reitor da Universidade Eduardo Mondlane (cuja criação liderou, com base nos poucos recursos humanos que sobraram da anterior Universidade de Lourenço Marques) e era actualmente reitor da Universidade Técnica de Moçambique.
Homem de muitos instrumentos, foi também, para além de durante vários anos parlamentar e membro do Comité Central da Frelimo, fundador e presidente do Comité Olímpico Moçambicano.

Pessoa frontal, de princípios e de convicções, defensor da autonomia universitária e do espírito crítico, isso reservou-lhe por vezes dissabores.
Mas conta a "pequena história" que os conseguiu evitar a vários outros, nos tempos em que o então Ministro da Segurança se lembrou de rescindir os contratos de professores universitários para, no mesmo dia, os mandar para os Campos de Reeducação, por serem agora desempregados e, portanto, «improdutivos».
Num dos casos, o reitor não chegou a tempo; em alguns outros, poupou à Universidade anos de cárcere e talvez a vida de docentes seus.

Para muitos (em que se inclui o taxista que me levou às cerimónias fúnebres, que leu da sua pena a primeira História de Moçambique após a independência), o seu lugar seria na Cripta dos Heróis, e não no cemitério de Languene.
É uma questão que me ultrapassa. Mas uma coisa sei:

A comunidade académica ficou mais pobre.
E Moçambique também.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Ciências sociais e downloads

Fiquei hoje a saber que uma 50ª pessoa se deu ao trabalho de fazer download de textos aqui linkados nos "Artigos XXL", que disponibilizei no 4shared há cerca de 1 mês atrás (sobre os que estão arquivados noutros sítios, como o ICS ou a Scielo, não sei).
Desses 10 artigos de que tenho números, os mais populares foram o «Tecnologia Industrial e Curandeiros: partilhando pseudo-determinismos» e o «Antropologia à porta de casa», com 12 downloads, logo seguidos do «Determinismo e Caos, segundo a adivinhação Moçambicana». Até o Posfácio analítico do futuro livro «Um Amor Colonial» encontrou 2 interessados, apesar do seu nome intimidante. Algumas pessoas levaram para o computador vários artigos.

Não sei onde essas pessoas vivem, o que fazem ou se leram os textos que descarregaram. Se forem como eu, que estou longe de ser um leitor compulsivo, lerão uns 9 em cada 10 downloads que fazem.
Por isso, mesmo se estes números estão bem distantes dos Paulos Coelhos desta vida, creio que valeram bem o esforço de meter lá os artigos.

Porque não escrevemos para ser publicados, mas para ser lidos.
E porque desconfio que a grande maioria destas pessoas nunca iria, de outra forma, ler o que tanto trabalho me deu a investigar e a escrever - quanto mais não seja, porque talvez nunca viessem a saber da sua existência.
Uma óptima razão para lhes dizer Obrigado pelo seu interesse, e para desejar que também tenham achado que valeu a pena.

Actualização a 22/4: o número de "downloadistas" aproxima-se dos 75 e as suas prioridades alteraram-se um pouco. Agora, é «Determinismo e Caos» que suscita mais interesse, seguido da «Antropologia à Porta de Casa» e da «Tecnologia Industrial e Curandeiros» (links acima). Também a «Saúde, Doença e Cura em Moçambique» se está a chegar ao pelotão da frente. Pela minha parte, confesso que gosto de acompanhar o que se está a passar.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Vitamina A e cheias maiores para o ano

É verdade que estamos é todos em pulgas para saber o que se vai passar no Zimbabwe.
Mas o telejornal de ontem (STV, em Moçambique) deixou-me tão abananado que só agora o consigo comentar.

Primeiro, ficaram os tele-espectadores a saber de uma campanha de vacinas (sic) de Vitamina A, numa zona onde as doenças derivadas da sua falta são mais frequentes que no resto do país.
Na minha infância, eram as infectas colheradas de óleo de fígado de bacalhau.
Nesta nova opção técnica, injectam-se as crianças, o que sempre lhes dá para umas semanas (ou, se a dose for demasiada, para doenças hepáticas durante o resto da vida), em vez da trabalheira de explicar ao pessoal que partes dos bichos e que plantas, mesmo bravias e endémicas, estão cheias da tal de vitamina. Ou de tentar criar condições para que as pessoas se possam dar ao "luxo" de aceder a uma alimentação que não engane apenas a fome, quando tal é possível.
Mas, realmente, uma campanha de "vacinação" com vitaminas sempre enche mais o olho.

Depois, veio o ministro que ainda não foi remodelado anunciar um aumento de 1/3 no fornecimento de energia de Cahora Bassa à Electricidade de Moçambique.
É bom, não é? E, conforme o patriótico governante anunciou, somente possível porque agora não é preciso andar a arrastar negociações com ex-potências coloniais, é só decidir.
É também um motivo de esperança para quem nunca teve luz eléctrica e um encorajador sinal de desenvolvimento do país - mesmo se a Mozal, sozinha, consome o dobro da electricidade que o resto do país, embora a re-importe da África do Sul.
A minha dúvida é só uma: estando a actual produção de Cahora Bassa contratualmente vendida, nas próximas décadas, à Àfrica do Sul (sobretudo), ao Zimbabwe, à EDM e ao Malawi, como é que se vai fazer? "Fechar a torneira" ao Zimbabwe (que agora até voltou a pagar) ou aumentar a produção?
Cheira-me que a via seguida será a segunda. Até por causa desta outra notícia, de maior fornecimento à África do Sul, que implica aumentos de produção ainda mais acentuados.

A ser assim, tendo em conta isto e isto, posso desde já anunciar aos eventuais interessados que as cheias do Zambeze serão, no ano que vem, muito piores do que as deste ano e as do anterior.
Vão já preparando os dólares, os helicópteros, as máquinas fotográficas e os caixões.

Aditamento, pouco depois: só agora reparei na data. Não, estas não são notícias de 1º da Abril. São reais e passaram ontem, 31 de Março, na televisão.