sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Gémeos, albinos e prisioneiros desaparecidos (4)

ALBINOS E PRISIONEIROS DESAPARECIDOS (II - Prisioneiros políticos)

Como eles, muitos prisioneiros políticos, quer antes quer depois da independência, desapareceram das suas comunidades e do olhar das pessoas que os conheciam.
A maioria realmente morreu, outros estabeleceram-se nas regiões onde foram encarcerados, quando a sua detenção chegou ao fim. Também vários guerrilheiros do movimento anti-colonial (Frelimo) foram mortos pelas tropas ou pela polícia política portuguesa (PIDE/DGS), após a sua captura e interrogatório.

Já mencionei uma história acerca do que aconteceu a alguns dos resistentes anti-coloniais desaparecidos: o seu enterro clandestino pela PIDE/DGS, junto à água do rio, perto do actual cemitério da Matola. Escrevi “história” porque, de facto, não há evidências de que tal tenha acontecido naquele local, que aliás seria uma estranha escolha para sepultar pessoas em segredo.
Dalila Mateus (A PIDE/DGS na Guerra Colonial 1961-1974) fornece-nos outra história acerca da ocultação dos cadáveres de resistentes em lugares molhados. Ouviu na praia do Tofinho, perto da cidade de Inhambane, que a PIDE/DGS costumava ali atirar ao mar os cadáveres das pessoas que matava, para que fossem comidos por tubarões. Esta informação popular parece ser, de novo, uma lenda significativa, pois não existem naquela área tubarões comedores de homens e, para além disso, a praia sofreu uma enorme erosão nas últimas décadas – pelo que aquilo que parece muito fácil actualmente teria sido muito difícil há 35 ou 45 anos atrás.

Ouvi contudo, na mesma praia, uma variante dessa história, indicando agora diversas furnas nas rochas que conduzem a cavernas subaquáticas. Nesta versão, a analogia com a sepultura de gémeos é ainda mais directa pois, embora os corpos fossem mandados à água, eram simultaneamente atirados para dentro da terra.

Há ainda outra história corrente acerca da morte e manipulação de cadáveres dos resistentes e guerrilheiros. Diz-se que, durante o transporte em helicóptero de prisioneiros políticos até Lourenço Marques, a PIDE/DGS e as tropas portuguesas costumavam atirá-los ao mar, longe da costa.

Se isto pode ter acontecido, relatos fidedignos de antigos membros das tropas portuguesas, também eles horrorosos, contam uma história significativamente diferente. Alguns comandantes militares e agentes da PIDE/DGS costumavam, de facto, atirar guerrilheiros de helicópteros, quando pensavam que não iriam obter mais informações deles; mas isto era feito em terra firme e os cadáveres das vítimas eram deixados insepultos. Um dos agentes costumava até gritar sarcasticamente, nessas ocasiões: «Dizes que a terra é tua, vai ter com ela!»[1]

Assim, naquilo que parece ser uma reinterpretação de práticas reais que não envolviam água, as narrativas populares acerca do destino dado aos cadáveres dos resistentes independentistas desaparecidos colocam-nos sistematicamente em ambientes molhados. Essas narrativas tanto podem seguir uma analogia directa com os enterros de gémeos ou ir ainda um pouco mais longe (colocando os corpos dentro de água, em vez de sob terra molhada), tal como os albinos “vão um pouco mais longe” que os gémeos na ameaça que representam e nos constrangimentos impostos às suas mortes.

No entanto, esta ligação simbólica entre prisioneiros desaparecidos, gémeos e albinos continua após a independência.
Cronologicamente, o primeiro caso que me foi mencionado refere-se a um motim de ex-guerrilheiros, pouco depois da independência. Conta-se que os rebeldes foram dominados e levados para a ilha da Xefina (situada perto da costa, na baía de Maputo, e local para onde, curiosamente, tinha fugido o Governador em 1833), onde foram fuzilados e lançados ao mar. Até ao momento dos fuzilamentos, trata-se de factos históricos bem conhecidos, mas não pude obter qualquer confirmação acerca do que aconteceu aos cadáveres.

A ilha tornou-se depois o local de um “Campo de Reeducação”, para pessoas que o regime considerava «comprometidas com o colonialismo», «reaccionárias» ou ideologicamente heterodoxas. Acerca daquilo que aconteceu nesta fase, é vox populi que os prisioneiros lá falecidos foram igualmente lançados à água. Contudo, um antigo prisioneiro desse campo negou a veracidade dessa história durante uma conversa comigo, chamando-lhe «um mito».

Vários outros campos de reeducação foram subsequentemente construídos, sobretudo no interior e longe de Maputo. Acerca destes, pude ouvir em várias histórias, contadas por pessoas que nunca lá estiveram, que as campas dos prisioneiros eram cavadas na margem dos rios. Embora muitos campos fossem de facto construídos junto de rios, devido às necessidades de abastecimento de água, nunca alguém que lá tenha realmente estado me confirmou esses procedimentos funerários. Pelo contrário, quatro antigos prisioneiros disseram-me que nunca viram tal acontecer e que, nos campos onde estiveram presos, as margens dos rios eram usadas para culturas agrícolas.

Também existem narrativas populares acerca de pessoas que tentaram fugir dos campos de reeducação e não conseguiram regressar a casa, desaparecendo pelo caminho. Pude ouvir seis dessas histórias e todas elas tinham um leid motiv similar: o fugitivo morreu ao tentar atravessar um rio, onde se afogou ou foi comido por crocodilos – o protótipo de predador aquático nas zonas de interior.

Portanto, no caso dos prisioneiros políticos desaparecidos no período pós-independência, as narrações populares colocam-nos sistematicamente – tal como acontece com os resistentes anti-coloniais desaparecidos – morrendo na água, sendo comidos por predadores aquáticos, ou sendo sepultados em solo molhado ou na própria água. E isto acontece, também, independentemente do conhecimento factual de eventos reais.
Esta última característica reforça a significância simbólica de tais histórias. Mas qual é o sentido das equivalências entre prisioneiros desaparecidos, gémeos e albinos que elas enfatizam?

Se tomássemos apenas em consideração estes dados, pareceria que as velhas crenças acerca de gémeos e albinos são usadas para mencionar prisioneiros politicos desaparecidos apenas para destacar o facto de eles terem desaparecido. No entanto, existe um outro grupo conspícuo de pessoas que também foram presas, levadas para longe das suas comunidades e famílias e detidas em terras distantes, de onde muitas delas nunca regressaram, e essas crenças não são usadas para falar delas.


[1] Comunicação pessoal de três ex-militares portugueses (dois deles conscritos) que testemunharam este procedimento e desejam manter o anonimato.

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