segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Perguntas, dúvidas e possibilidades



A principal pergunta sociológica suscitada pelos resultados eleitorais deste domingo é, afinal, também uma perplexidades de grande parte dos cidadãos:

Como é que, após 4 anos de incompetência governativa e holocausto social, o PSD e o CDS, tendo embora perdido tantos votos, ainda tiveram tanta gente disposta a votar neles?

As perdas do governo nada tiveram de irrelevante.
Perderam mais de 745.000 votos (26,5% do seu eleitorado em 2011) e quase 12% dos votantes, passando de uma maioria absoluta de votos para uns meros 38,5%.
O governo teve, assim, o segundo pior resultado da direita desde sempre, só acima dos miseráveis 36% obtidos pela soma de Santana Lopes e de Paulo Portas há 10 anos atrás.
Não obstante esta hecatombe, como é que ainda houve mais de dois milhões de portugueses dispostos a votar neles?

Vemos surgir inúmeras tentativas de explicação, que vão das teorias da conspiração ao Sindroma de Estocolmo.

Claro que houve, desde há muito, mentiras sistemáticas, estatísticas e deliberadas acerca do estado do país. Mas, apesar de serem contrapostas e desmontadas, elas passaram como verdades para muita gente. Fazendo crer que "o pior já passou" e que esta gente sabe o que faz.

Claro que houve o anúncio de medidas populistas de última hora. Mas a verdade é que, apesar do seu ridículo que parecia evidente, elas parecem ter sido tomadas por muitos como provas de uma melhoria futura.

Claro que houve um forte empenhamento editorial dos mais poderosos mass media. Mas a manipulação da opinião de cada um de nós (pois não existe tal coisa como "opinião pública") não é possível sem algum grau de plausibilidade e credibilidade. 

Podemos até supor que, após 4 anos de imprevisibilidade individual e de medo de um futuro tão próximo como amanhã, se tenha criado um caldo de cultura para que muitos possam pensar (como João Pereira aponta em Moçambique) que «Antes o 'diabo' conhecido do que um 'anjo' desconhecido». Mas quais os componentes da receita desse caldo, a quem faz ele efeito, quem poderá ser-lhe imune?

Claro está que a principal alternativa governativa, o PS, enfrentou uns escândalos desagradáveis (que coincidiram com alturas particularmente inconvenientes) e, julgando há tempos ter a vitória assegurada, não conseguiu ser convincente nem como alternativa governativa, nem como fundamentalmente diferente do governo que existia. É até verdade que, tendo feito pela primeira vez os "trabalhos de casa" e tendo brandindo a pastinha mágica com que brincou Ricardo Araújo Pereira, dela só acabaram por chegar ao público as desnecessárias medidas em que mais se assemelhava à direita. Mas, que diabo! Porque é que, desta vez, houve tanta gente que não sentiu (ao contrário do que aconteceu em várias eleições anteriores) que qualquer coisa seria melhor do que esta gente, talvez a mais odiada de qualquer governo constitucional?

Afinal, nenhuma destas coisas, separadas, nem todas elas juntas permitem uma resposta satisfatória à pergunta que inicialmente formulei.
Para a encontrar, teremos que a procurar mais e melhor - e estará certamente na interacção de muitos factores, muitos deles simples coisas que nos pareçam tão normais que nem as notamos.

No entanto, há um factor que teve uma influência evidente e relevante nos resultados eleitorais e que, neste dia seguinte, se torna fulcral para o nosso futuro colectivo.

Trata-se de um factor que está, afinal, ligado a uma outra pergunta:

É aceitável (para já não dizer "desejável") que, na sequência do seu segundo pior resultado eleitoral de sempre, e perante uma folgadíssima maioria de esquerda nas urnas e no parlamento, a direita continue a governar?
É aceitável (para não dizer "concebível") que os partidos de esquerda não façam absolutamente tudo o que possam para, dentro da sua diversidade e diferenças, o impedir e para procurarem alcançar uma alternativa governativa?

De facto, esse factor significativo para que o PS só tivesse agora conseguido menos de 1/3 dos votos e, talvez, para que bastantes indecisos tivessem votado no governo, é ainda mais fulcral nos próximos dias.

Lembremo-nos: Durante a campanha eleitoral, não havia credibilidade possível nos apelos do PS a uma maioria que lhe permitisse governar sozinho. (Nem, verdade seja dita, surgia nenhuma razão para que, fora do mundo dos seus mais ferrenhos apoiantes, alguém sentisse vontade de lha dar.)

Não obstante, António Costa recusou-se sempre a fazer qualquer alusão à possibilidade, por muito remota que fosse, de negociar à sua esquerda a viabilização de um seu governo, com ou sem a presença dos outros partidos. Recusou-se mesmo quando, inesperadamente, Catarina Martins o interpelou com essa possibilidade, apontando condições muito modestas para encetar um diálogo.
Dado que ninguém acreditava em maiorias absolutas do PS, Costa assumiu a imagem de quem se recusava a ter condições para ser governo, não só perdendo votos à esquerda, como com isso não os ganhando (e provavelmente perdendo) à sua direita.

Jerónimo de Sousa, por seu lado, limitou-se a reproduzir o discurso do «Governar para quê? Com que políticas? Não com políticas de direita.», sem explicitar quais seriam as garantias e condições mínimas, em termos de conteúdos políticos, para se sentar a discutir e negociar políticas que pudesse apoiar - ou, mesmo, participar na sua implementação.

Não será por acaso, nem apenas por causa dos excelentes desempenhos de Catarina Martins nos debates, que foi o BE quem mais subiu entre todos os partidos, numas eleições em que a maior preocupação da generalidade dos eleitores à esquerda era pôr ponto final na governação PSD/CDS e criar uma alternativa viável. 
O BE, afinal, capitalizou em votos o facto de ter sido o único a declarar sem dubiedades que pretendia negociações para viabilizar uma solução de governo de esquerda, e a dizer o que é que exigia para começar a conversar.

Passadas as eleições, também o PCP declara a sua disponibilidade, não só para inviabilizar um novo governo PSD/CDS, como para procurar alternativas governativas.

Não me lembro de alguma altura em que tenha havido uma tão clara abertura da esquerda à esquerda do PS para um diálogo viabilizador de soluções governativas. 
Por óptimas razões. Porque o governo anterior teve um efeito arrasador no país e nos mais básicos instrumentos de justiça social e de protecção elementar dos cidadãos. Porque os seus objectivos e práticas não foram de equilíbrio financeiro, mas de subversão e substituição das bases fundamentais do contrato social que construímos ao longo destes 40 anos. Porque a sua acção foi insuportável e agravou os problemas financeiros que reclamava como bases da sua legitimidade. Porque a maioria das pessoas consideram (e mostraram-no votando) imprescindível e urgente a ruptura com essas políticas.

Face a isso, é uma obrigação básica do PS deixar que o deixem ser governo (se com coligações governativas ou com acordos políticos e parlamentares, só se saberá discutindo e negociando). E contribuir para que o PSD e o CDS não o sejam.

No meio disto tudo, o futuro político do líder do PS é o menos importante, e aquilo que menos me interessa. Mas uma coisa é certa: se a cabeça de António Costa não rolou ontem à noite, só não rolará a curto prazo se ele tiver a coragem de assumir as suas responsabilidades para com o país e as expectativas dos cidadãos que votaram à esquerda; se ele tiver a coragem de governar, e de governar com a maioria de esquerda.

Até porque, afinal, se for para deixar o PSD/CDS continuar a governar e a destruir o país e as nossas vidas, para que serve e que falta faz António Costa? Que falta faz o PS?

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Como fazer com que o nosso voto conte



Uma boa parte (embora minoritária) dos eleitores vota sempre num mesmo partido. Porque, seja qual for o partido em que votam, o consideram “o seu”, façam ou não formalmente parte dele.
Para as pessoas com este legítimo padrão de voto, não se coloca a questão de em quem votar, nem de que o seu voto conte. O seu voto conta sempre, porque é contabilizado no apoio ao “seu” partido, independentemente de outras consequências políticas. E, face à sua avaliação e opção que sentem como permanente e definitiva, torna-se-lhes em muitos casos difícil conceber como é que os outros não vêem aquilo que é, para si, tão evidente.

Mas são os restantes votantes (e, de forma indirecta, os não-votantes) quem decide os resultados das eleições, a partir desse quadro relativamente estável. E decidem, muitas vezes involuntariamente e a contra-gosto, os resultados governativos que delas acabam por sair.
Para esta maioria, particularmente na situação social e económica que vivemos, a preocupação e busca é que o seu voto conte. Ou então, o desinteresse vem da sensação de que o seu voto não contará para nada.

Isto porque, se é verdade que elegemos deputados e não primeiros-ministros, votamos tendo em vista as soluções governativas e políticas públicas que mais nos agradem ou, para muitos, que menos nos desagradem. Ou abstemos-nos por acharmos que o nosso voto nada contaria para decidir isso.

Não obstante, poucas vezes um voto (ou uma abstenção) terão contado tanto como no próximo domingo. E poderão contar para coisas muito diferentes.

Paradoxalmente, é de certa forma pouco relevante quem fique em primeiro lugar nestas eleições. Seja o PS ou seja (como incrivelmente parece vir a tornar-se possível) a coligação PSD/CDS, nunca poderão governar apenas de acordo com a sua vontade. E poderão mesmo não vir a governar, ficando em primeiro lugar.
Mas paradoxalmente, também, isso é uma razão suplementar que dá importância a cada voto e ao próprio facto de se escolher votar ou não .

Imaginemos que fica em primeiro lugar a coligação PSD/CDS. Só poderá ser governo se os partidos de esquerda (que certamente ficarão em maioria, no seu conjunto) deixarem. No mínimo, o PS teria que se abster na votação do Orçamento de Estado e do Programa de Governo apresentados pela direita. É fácil que isso não aconteça (sobretudo se existirem perspectivas de diálogo governativo à esquerda, mas já lá vamos) se a coligação de direita ganhasse com uns 35 ou 37%. Mas se conseguissem uns 40%, dificilmente o PS teria coragem para inviabilizar à partida um governo de direita.
Por isso, ir votar (seja em quem for) não é irrelevante para qualquer pessoa que não queira continuar a ter Passos Coelho como primeiro-ministro. Quanto mais pessoas fartas de Pedro & Paulo ficarem em casa, maior será a percentagem que estes obterão com o mesmo número de votos, e maiores serão as suas condições para serem governo, mesmo que minoritário.

Imaginemos agora que, conforme toda a gente dava por garantido há um mês atrás, o PS fica em primeiro lugar. Tão pouco ele poderá governar sozinho. Ou terá que se encostar à direita, ou terá que procurar e conseguir formar um governo com pelo menos parte da esquerda, ou terá que negociar um acordo parlamentar à sua esquerda para suportar um governo minoritário, seja ele monocolor ou de coligação. (Opções que, aliás, também se colocam caso fiquem em segundo lugar, mas com uma confortável maioria de esquerda no parlamento).

Costa declarou que não faria governo com Passos Coelho. Mas «a leitura da vontade do eleitorado, expressa nos resultados eleitorais», «a defesa do interesse nacional», e coisa e tal, podem facilmente voltar a saltar para o discurso político, para justificar uma solução de mais do mesmo.
No entanto, essa possibilidade bem real será tanto menos provável - e terá tanto menos espaço para ocorrer - quanto maior for a votação obtida pelos partidos à esquerda do PS. (E, claro está, quanto maior for a capacidade destes para terem abertura de diálogo e para obterem dele os melhores resultados negociais - mas isso já são condições que transcendem o nosso acto de votar, embora sejam por ele influenciadas.)

Por outro lado, o peso da votação à esquerda do PS não contribui apenas para evitar um regresso à continuidade do mesmo, sob formas ligeiramente diferentes. Potencia também (por via da necessidade de dialogar e negociar, e com participações governativas ou sem elas) o compromisso, mesmo que parcial, com as políticas e soluções que são consensuais ao longo da esquerda. Políticas que, sendo para uns o mínimo dos mínimos e constituindo para outros esquerdismos a que prefeririam fugir, são o essencial da ruptura com o actual e calamitoso estado das coisas.

Quero com isto dizer que, para quem esteja insatisfeito com aquilo que vivemos nos últimos 4 anos, há duas hipóteses racionais, em função da forma como se situe a si própri@ relativamente ao espectro politico-partidário:

a) se tem concordância e satisfação com as propostas avançadas pelo PS e/ou tem nesse partido uma confiança muito superior à média, entre os cidadãos portugueses, deverá votar PS;

b) se quer assegurar que o seu voto conte - para além da sua mera contabilização no partido em que vote - para maximizar as possibilidades de uma política governativa de ruptura com a lógica austeritária e de destruição do nosso contrato social, deverá votar no partido que, à esquerda do PS, mais lhe agrade ou menos lhe desagrade, de entre aqueles que parecem ter condições para atingir representação parlamentar. Por ordem de antiguidade, CDU, BE ou Livre.

Não votar não é uma terceira hipótese. Neste quadro, é uma mera irracionalidade.


(A menos que não se reconheça legitimidade à democracia representativa. O que é legítimo. Mas é também, no quadro presente, um mero demissionismo.)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

€urobimbos


Para usar uma expressão em português supostamente rural, «a minha alma está parva» com a arrogância, irresponsabilidade e imbecilidade dos ministros das finanças do €urogrupo.

Para darem «um puxão de orelhas» a um governo democraticamente eleito com o mandato de acabar com a austeridade das mais gravosas medidas do programa assinado, por outros e sob coação, com a troika, sentam-se a "negociar" com a proposta de manter tudo como antes - o que é sabidamente impossível.

Mas, para além do ridículo da situação e da declaração de se estarem nas tintas para a democracia (desde que os seus resultados não sejam os que gostam) que ela constitui, e para além da cobardia de terem embarcado nisto os que foram eleitos a dizer que "há vida para além da austeridade" e os que disseram que as propostas gregas são sensatas e razoáveis, fico parvo com o facto de não parecerem perceber que a Grécia tem alternativas fora da UE, e que elas são terríveis para o futuro da União.
Está bem que são ministros das finanças/contabilistas,não têm obrigação de perceber dessas coisas,  mas seria de esperar que os seus primeiros-ministros lhes tivessem posto a trela, ou percebessem eles próprios um bocadinho de política internacional.

Para a China, os Estados Unidos ou mesmo a Rússia em crise, os milhares de milhões de Euros de que a Grécia precisa para estabilizar a sua situação são trocos.
Para a China, aplicá-los a juro baixo na Grécia seria um excelente investimento a prazo, não saindo esta da UE.
Para a Rússia, poderia facilmente significar o fim das sansões da União Europeia, pois basta que um país membro as vete para que elas deixem de existir enquanto tal.
Para os Estados Unidos, para além de porem a Europa de cócoras e assegurarem ascendente sobre um parceiro fulcral na NATO, intervir seria ainda a melhor forma de assegurar a continuidade das sansões.

Para estes toininhos (de que as declarações contentinhas de Maria Luís são uma patética disclosure) nada disto existe e o mundo acaba no BCE.

Mas outra disclosure aconteceu: o lamentável documento entregue ao ministro grego das finanças, com a indicação de "confidencial", foi por este disponibilizado publicamente logo após o precipitado fim da reunião, tornando visível a todos a cagada do €urogrupo.
Parece que os senhores ficaram muito agastados com esse facto.
O que é uma razão para esperança. Talvez, afinal, sejam menos imbecis do que o seu comportamento.



sábado, 11 de outubro de 2014

O coveiro do regime democrático


Aníbal Cavaco Silva apelou, nas comemorações do 5 de Outubro, a uma cultura de compromisso e ao estabelecimento de consensos essenciais entre os partidos políticos.

Tanto quanto conheço o sistema político e a sociedade do meu país, esse consenso e compromisso não apenas existem de uma forma muito mais alargada, perene e estruturante do que os partidos, as flutuações das maiorias partidárias e as conjunturas económicas, como estão disponíveis por escrito.
O nome do documento em causa é Constituição da República Portuguesa. Após sucessivas revisões, aquilo que nela existia de imposições militares do PREC, ou de espelho das correlações de forças da altura, há muito desapareceu. Melhorada para uns, pior para outros, sempre com qualquer coisa que desagrada a alguém (porque ainda lá está, ou porque lá deveria estar), o que restou na Constituição foi precisamente um compromisso acerca do mais essencial, um consenso que transcende as diferentes posições políticas e ideológicas que por aqui são relevantes.
Não apenas entre as diferentes forças partidárias e as diferentes visões, ou ausência delas, que tenham para o país. Mesmo para o cidadão que não faça ideia do conteúdo preciso do texto constitucional, os seus princípios essenciais (os tais mais estruturantes, objeto de consenso e de compromisso e, no outro sentido da palavra, afirmações do compromisso do Estado para com os cidadãos que governa) tornaram-se dados adquiridos, partes integrantes das suas noções de justeza, dignidade, decência, justiça social, legitimidade.

Um dos problemas do apelo de Cavaco Silva ao compromisso e consenso é que ele não se centra nesses princípios essenciais e nas formas de os salvaguardar nas conjunturais condições presentes, mas antes num acordo sobre um modelo de sociedade e de relações económicas e sociais que, em nome de uma leitura particular acerca dos particularismos atuais, subverte esses princípios e o consenso e compromisso em torno deles.

Um segundo problema, que daí decorre de forma imediata, é que isso corresponderia a destruir a política e a democracia, naquilo em que elas ultrapassam a mera possibilidade de optar entre quem irá gerir, acompanhado por que clientelas, um mesmo modelo societal e conjunto de políticas, no essencial pré-definidos.
Ou seja, destruí-las naquilo que elas têm de importante, de diverso e de possibilidade de efetiva opção substancial por parte dos cidadãos – substituindo a política democrática, enquanto construção e opção de alternativas, pela alternância numa mesma lógica austeritária e em que tudo, a começar pela vida das pessoas, se submete aos ditames da dívida chamada pública.
Ou seja, ainda, afirmar a irrelevância da diversidade democrática e da vida política, dando ainda mais razões para um fenómeno com que Cavaco Silva disse, na mesma ocasião, preocupar-se: a descrença na “classe política” e a desconfiança nas instituições, criando riscos de implosão do sistema partidário.

Um terceiro e mais relevante problema é, contudo, que o próprio exercício das funções presidenciais por parte de Cavaco Silva já contribuiu em muito quer para esse fenómeno, quer para a consciência pública de que existe um problema fundamental de regime e de democraticidade, que antes dele passara despercebido.

O ponto de viragem é o mês de Julho de 2013, com a demissão de Paulo Portas e a ruptura da coligação governativa.
Até então, era claro para todos (à exceção dos indefetíveis das receitas austeritárias) o larguíssimo e socialmente abrangente repúdio por políticas governativas calamitosas que não tinham sido sequer referendadas nas eleições. Tal como era clara a sucessiva viabilização das mesmas por Cavaco Silva, simulando inanição e em nome de supremos interesses conjunturais que justificariam um estado de exceção constitucional e social.

A partir do momento em que Cavaco Silva se empenhou ativamente em colar os cacos governamentais, em tentar forçar o “consenso” partidário acerca da austeridade e em impedir a queda do governo, foi outra coisa que os cidadãos descobriram: a existência de uma grave falha na democraticidade do regime.
Descobriram que pode não importar se um governo é eleito com base num compromisso eleitoral e, depois, executa políticas contrárias às que prometeu (com isso perdendo a sua legitimidade democrática) e que suscitem uma generalizada oposição popular - com isso se tornando políticas democraticamente ilegítimas. Pode não importar porque, por muito que os cidadãos demonstrem o seu massivo repúdio, e por muito que essa situação constitua uma antidemocrática manipulação do formalismo da democracia, se tornou claro que não existem mecanismos no nosso regime democrático para apear um tal governo e uma tal subversão democrática, desde que ele não imploda, não o deixem implodir e conte com o apoio ativo do Presidente da República. Algo que nunca tinha acontecido.
Curiosamente, a consciência dessa falha e bloqueio de regime tornou-se muito evidente nas conversas públicas entre cidadãos, ao longo do ano passado, mas não parecem ter sido apercebidas pelos partidos políticos (talvez pelos microclimas em que vivem e se relacionam) nem a sua importância, nem as suas potenciais consequências.

Usando do imediatismo e tacticismo de que voltou a acusar (e quanto a isso, bem) os partidos, Cavaco Silva conseguiu há mais de um ano salvar o governo e o modelo austeritário que queria. Conseguiu até neutralizar o ascenso de protestos populares - tradicionais e inorgânicos - através da consciência que criou acerca desse bloqueio institucional e acerca da inconsequência dos mecanismos de protesto disponíveis dentro do quadro do regime.
Mas generalizou também o sentimento de que as eleições democráticas não são um contrato mas um cheque em branco (no qual há que ter fé de que não o passamos a aldrabões que amanhã façam o contrário daquilo a que se comprometeram) e de que as regras democráticas podem ser manipuladas para negar às pessoas a democracia, sem que estas possam fazer o que quer que seja, a não ser que subvertam os limites do regime democrático vigente.
Dessa forma, e a um nível muito mais profundo do que a sua “conversa de café” acerca de promessas eleitorais no 5 de Outubro, Cavaco Silva desferiu uma enorme machadada na confiança popular na democracia e no regime democrático, correndo o risco de se tornar o seu coveiro.

Neste quadro, talvez a única revisão urgente de que a nossa constituição necessita seja a criação de um mecanismo que permitisse, aos cidadãos que elegeram forças políticas que governam contra a Constituição e contra os seus compromissos eleitorais, exigir e votar a demissão do Governo e a dissolução da Assembleia da República, independentemente da vontade de quem seja Presidente.


Não se trata apenas do colmatar de uma falha de regime, que a atuação de Cavaco Silva tornou visível. Não se trata apenas de uma salvaguarda democrática e de uma possibilidade excecional de devolução da soberania a quem em última instância a detém. Poderá bem tratar-se da salvação da credibilidade do regime democrático.

domingo, 6 de abril de 2014

Vacinas e polémicas


Na sequência de um post do Daniel Oliveira, instalou-se uma polémica facebookiana e blogosférica, acerca dos pais que se recusam a vacinar os filhos e sobre o que fazer acerca disso.

Neste assunto, a minha posição é tão marcada por conhecimentos factuais e racionalizáveis, como por emoções e afectos. 
Na verdade, um acontecimento une ambas essas coisas de forma inseparável:

Nunca vi uma criança a morrer de tosse convulsa. Mas apenas porque não fiquei lá, para ver.
Vi uma uma vez uma, perto do seu aflitivo e doloroso fim, na palhota de espíritos de uma curandeira.
O hospital tinha diagnosticado a doença e dado-lhe alta, deixando bem claro perante os pais que o resultado seria em breve a morte e que nada podiam fazer. Não sei (nem nunca tive forças para procurar apurar) se a mandaram embora para não partilharem intramuros aquela cena lancinante, para evitarem complicações burocráticas, ou por sensibilidade cultural.
Isto porque os pais foram então procurar ajuda, não para a curarem (o que sabiam ser impossível), mas para tentar minimizar a tortura que o menino atravessava e, sobretudo, para que alguém qualificado chamasse os espíritos dos defuntos da família, para o acompanharem a ele e aos vivos naquele terrível momento e, depois, protegerem e tomarem conta do seu espírito.

Mesmo estando presente apenas alguns minutos, não saberia descrever o horror daquilo que vi e, se soubesse, não o conseguiria fazer agora. Mas tudo o que de racional diga acerca do assunto será inevitavelmente marcado por essa imagem e experiência.
E no entanto...

Não é factualmente verdade que uma criança por vacinar seja um perigo para todos, ou sequer para quem decida não a vacinar.
É, sim, um perigo para ela, que não foi tida nem achada no assunto ou que, se o foi, meramente seguiu a confiança que tem nos seus pais e as informações que estes lhe transmitiram.
Não é um perigo para nós e para os nossos filhos, porque estamos protegidos do contágio dessas doenças a que ela se torna evitavelmente vulnerável. 
Torna-se um duplo perigo para ela porque, para além da sua vulnerabilidade ao contágio, o sistema de saúde já não está preparado para responder a doenças consideradas erradicadas.

Ora esta é uma outra ideia factualmente errada.
Poucas doenças infecciosas, se é que existe alguma, foram de facto erradicadas.
As consideradas erradicadas estão-no apenas nos países que contam e interessam, para quem declara a sua erradicação: nos países ricos do hemisfério norte. Mesmo nestes, entretanto, a "erradicação" não quer dizer que os micro-organismos que provocam a doença não existam, mas apenas que (geralmente, em resultado da vacinação universal) não se registam casos de doença por eles provocada e, dessa forma, não é detectada a sua existência.

Por exemplo, na última década do século passado surgiu, entre as classes altas de Manhattan, um surto de uma imunodeficiência letal que era desconhecida e nada tinha a ver com a SIDA. Veio a descobrir-se que se tratava de uma doença há muito considerada erradicada, mas que era endémica em várias áreas das Antilhas, de onde eram oriundas as empregadas domésticas que essas pessoas ricas contratavam por tuta-e-meia, por serem imigrantes ilegais.

A história pode ter o seu quê de justiça poética, mas aquilo que dela nos interessa, para este assunto, é outra coisa.
É que a escolha de não vacinar crianças "porque a doença está erradicada" se baseia num pressuposto errado.
Claro está que o facto de a quase totalidade das pessoas com que a criança contacta terem sido vacinadas é um factor de segurança para ela. Mas, por um lado, muitas dessas pessoas podem pontualmente transportar a bactéria da doença sem nunca adoecerem (exactamente por terem sido imunizadas contra ela), podendo transmiti-la. Por outro, num mundo com elevada rapidez de transporte à distância, o contacto com uma pessoa infectada e doente, vinda de outras paragens, é impossível de excluir.

Face a isso, o que pode fazer quem decida não vacinar os filhos, para não estar apenas a jogar na roleta a sua saúde, vida e morte?
Estabelecer um cordão sanitário entre eles e todas as pessoas vindas de outras paragens, na sua maioria (mas nem sempre) com tons de pele diferentes? Os efeitos de uma tal xenofobia seriam socialmente arrasadores, mas nem por isso eficazes. Para que o fossem, seria necessário impedir também o contacto das crianças por vacinar com quem tivesse contactado com essas pessoas, mais com quem tivesse contactado com este último grupo, e ainda com tivesse contactado com mais estes, e por aí fora.
A única forma de tomar essa decisão sem jogar com a doença e morte dos próprios filhos seria, afinal, enfiá-los numa redoma que os afastasse de todo o contacto humano, incluindo com os pais - que, em princípio vacinados, podem também eles ser transmissores da tal bactéria a que, com isso, ficaram imunes.
Há, claro está, também a possibilidade de acreditar sem vacilações na sorte, no destino ou na vontade divina. O aborrecido é que, segundo parece, isso não é lá muito eficaz.
Portanto, «fêtes vos jeux!»

Assim sendo, impõe-se uma pergunta:
O poder de vida e morte, dos pais sobre os seus filhos, é e deve ser total?
Parece-me evidente que não. Ou, então, a violência doméstica, a violação de menores pelos progenitores ou a venda de crianças pelos pais deveriam ser discriminalizadas. 
E não o é nem deve ser, antes de mais, porque as crianças são pessoas, socialmente detentoras de direitos inalienáveis, e não propriedade. 
Sendo particularmente vulneráveis e dependentes, a responsabilidade da sua protecção é atribuída (por defeito e na ausência de factos graves que a ponham em causa) aos seus pais. Mas sem que o conjunto da sociedade se possa ou deva demitir (no nosso quadro social, cultural e legal) dessa responsabilidade, quando necessário.

Mas uma outra pergunta se justifica também:
E esse direito de vida e morte é e deve ser atribuído a mais alguém, por ser reconhecido (por diferentes instâncias de poder) como uma autoridade ou como um especialista?
Parece-me também evidente que não. Pelas mesmas razões e por uma outra, também ela comum: porque esse direito, por muito que tais figuras de autoridade e/ou de expertise possam ter razão e estar convictas de a ter, se basearia e legitimaria, em última instância, no nu e cru poder.
A isto acresce, claro está, o recorrente historial de abusos, incompetências, leviandade e efeitos contraproducentes que vai sendo detectado no meio das muitas decisões de autoridades acerca de crianças, mesmo que quase sempre tomadas (ou omitidas) com as melhores intenções.

Como desembaraçar, então, este nó górdio?
Não vejo soluções milagrosas, mas apenas uma aproximação paliativa, capaz de minimizar os meros abusos e o tratamento de uma das partes como completos imbecis - o que em nenhum dos casos são.

Qualquer pessoa tem o direito de, dentro do quadro de limitações que a rodeiam, decidir da sua vida e da sua morte como quiser, por muito que o faça na ausência de informação, com base em valores mais ou menos partilhados ou numa pessoalíssima idiossincrasia, ou apenas porque lhe apetece.

No entanto, quando se trata de decidir da vida, saúde ou morte de outros, as idiossincrasias, fés (religiosas ou não) e vontades não chegam. Porque, precisamente, é de outros que se trata e serão outros a sofrer as eventuais consequências da decisão que se tome.
E é exactamente porque as pessoas não podem nem devem ser menorizadas e anuladas (na decisão de cumprir ou não a largamente consensual vacinação obrigatória dos seus filhos) por autoridades políticas, administrativas ou científicas, que não o podem nem devem fazer levianamente, sem equacionarem informação contrária que possa beliscar as suas idiossincrasias e convicções - ou sem que os verdadeiros interessados (as crianças) sejam, desde que possível ao seu entendimento, também elas informados das possíveis consequências que terão para si as decisões dos seus pais e se pronunciem acerca delas.

Em suma, da mesma forma que um paciente deve ser clara e completamente informado dos perigos e possíveis consequências de um acto médico que tenha que autorizar (e dos perigos e consequências que derivam de este não ser realizado), também a decisão de não cumprir uma vacinação obrigatória dos filhos só deverá poder ser tomada depois de se ser clara e completamente informado (através dos meios considerados mais eficazes) dos factores que referi e das possíveis consequências dessa decisão.
Acresce a isso que, sendo as crianças quem poderá sofrer essas consequências, também elas devem ser informadas e participar na decisão, se o seu discernimento já o permitir.

Depois, está bem de ver, no caso de essas consequências acabarem por se concretizar, vindo a criança ou já adulto a contrair a doença evitável ou mesmo a morrer dela, a decisão livre e informada que foi antes tomada pelos pais (certamente com as melhores intenções) terá que ter consequências.
Plausivelmente, do foro criminal.

domingo, 30 de março de 2014

Fés, cartadas e crises


Com a chegada da crise, uma semi-cave perto de mim tornou-se uma micro-igreja evangélica, daquelas que nos garantem a riqueza e felicidade na terra. Acabou por fechar, ao que dizem porque a diminuição de movimento fez com que deixasse de dar para o gasto.
Foi substituida por uma casa de batota clandestina, que após um sucesso inicial acabou por ter o mesmo triste fim, ao que parece pelos mesmos motivos.
Voltou agora a ser uma nova micro-igreja, com o mesmo potencial e garantias de sucesso pessoal.

Parece que, entre a fé que move carteiras e as carteiras movidas pela fé na sorte, o pessoal se move - sem grande fé em mais nada.

domingo, 23 de março de 2014

Coisas de que a gente se lembra, quando está de baixa - 1



Estávamos de visita ao tio de um amigo, filho do último régulo do Xipamanine.
Depois de me mostrar Taninga e a sua pequena propriedade, disse:

- Quero oferecer-lhe aquele cabrito. É seu.

Quando já me imaginava a regressar de chapa a Maputo com um cabrito pela trela (nada que, na verdade, nunca tivesse visto), percebi com um ambíguo alívio que o animal ia ser morto ali.

Sentámo-nos e conversámos longamente, naquele ritmo que a paisagem de savana pede. Alguns vizinhos foram-se juntando, depois de respeitosos pedidos de licença ao dono da casa e, estranhamente, a mim.
Acabou por vir para a mesa uma enorme travessa de cabrito grelhado e muito cheiroso. Salivei. Estávamos há mais de uma hora a beberricar o vinho que eu tinha trazido e já tinha sido aberto um garrafão, mandado vir da cantina mais próxima.

- Coma, doutor.

Servi-me e mais ninguém o fez. Insisti para que o fizessem.

- Coma, doutor. Coma...

Comi. A conversa continuava boa, o vinho ia baixando no garrafão, mas só eu comia. Os outros olhavam e sorriam, com prazer no meu avantajado apetite. Claro, estava confuso. Mas nada no ambiente indicava que estivesse a fazer algo de errado.
Quando me dei por vencido, chegou à mesa uma grande panela com cabrito guisado.

- Prove deste. É diferente. Sei que gosta de chima. Quer um pouco, para ajudar?

Sentia-me transbordar. A última coisa que queria, agora, era a minha apreciada pasta de milho. Recusei, traduzindo literalmente a fórmula de boa educação que conhecia. Afinal, toda a gente estava a esforçar-se para falar apenas em português.
Mas servi-me, de novo confuso. O sabor era tão bom e os sorrisos de prazer tão evidentes que repeti.
Por fim, tive que dizer:

- Estava tudo muito bom, mas já não consigo mais. Estou cheio, mesmo!

Num ápice, toda a gente se serviu. Longamente, repetiram e repetiram enquanto conversávamos, até nada mais sobrar. Agora, era eu quem apenas beberricava vinho "Amália" e sorria de prazer.

Finalmente, tinha percebido.
Aquele era o meu cabrito. Para eu comer até não poder mais. Só depois disso os meus amigos, e os amigos deles, deviam partilhar a boa fortuna que me tinham proporcionado.
Gente bela, estes meus patrícios de coração.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Direitos e opiniões


Enquanto pessoa e cidadão, aquilo que mais me irrita na recente farsa acerca da co-adopção por parte de casais do mesmo sexo não é sequer a hipocrisia demonstrada por muitos representantes eleitos do país e a falta de espinha dorsal de vários outros.
É, antes, o facto de de a co-adopção (tal como , aliás, a adopção tout court) não dever sequer ser uma questão, em termos legais e políticos, nem matéria de opinião e de consciência individual.
Isto porque o que está em causa não são opiniões, sentimentos e valores morais acerca do estilo de vida de cada um, mas a discriminação no acesso a direitos e, dessa forma, a salvaguarda ou o desrespeito por um dos mais fulcrais princípios do contrato social que serve de base às sociedades em que nos reconhecemos - aqui e agora, mas também da matriz cultural que partilhamos e desde há mais de dois séculos.

Sou heterossexual. Não por opção nem por pressão social, mas porque sou assim. É por mulheres que sinto atracção sexual e sempre foi por mulheres que me apaixonei. Simplesmente. 
Também sou pai. E, porque o meu trabalho é frequentemente arriscado, eu e a minha mulher escrevemos um documento legal que atribui a tutoria da minha filha, em caso de morte de ambos, a duas pessoas.
Uma delas partilha, desde há décadas, a sua vida com alguém do mesmo sexo. Esse detalhe não foi deliberado, nem muito menos uma tomada de posição política. Nunca faríamos política com a vida e o futuro da nossa filha. Simplesmente, escolhemos as duas pessoas com quem mais nos identificávamos e confiávamos para essa tarefa de a educar e acompanhar, se morrêssemos. Do tal detalhe só nos lembrámos depois de fazer a escolha, e reparámos nele como numa mera curiosidade.

Assim sendo, a minha opinião acerca da adopção por parte de homossexuais, sejam indivíduos ou famílias, não levantará dúvidas a ninguém. Também é fácil imaginar que não acredito que a homossexualidade "se pegue" por convívio ou educação, nem que (mesmo que fosse esse o caso) as crianças devam ser "protegidas" da orientação sexual que descubram como sua.
Menos dúvidas ainda levantará a minha opinião acerca de uma coisa tão simples como um membro de um casal poder adoptar os filhos do outro cônjuge. Ou sobre as vantagens disso para as crianças e para o casal, no presente e no futuro.
Aliás, criado numa família onde eu era o único filho de ambos e em que os meus irmãos eram tratados de forma diferente por cada um dos meus progenitores, conforme eram ou não seus filhos (experiência que muito terá a ver com a minha intolerância visceral para com qualquer injustiça que veja ou sofra), antes diria "abençoadas as crianças que se sabem filhos de facto e de coração do outro pai, ou da outra mãe!".

Mas a minha opinião acerca destes assuntos é irrelevante.
Tal como é irrelevante a opinião de quem tema pelo futuro e bem-estar de tais crianças, de quem se sinta desconfortável ou enojado/a com pessoas que amem e façam amor com outras do mesmo sexo, ou de quem simplesmente ache que não, "porque sim".

Todas essas opiniões são irrelevantes, em casos como este, porque é de igualdade de direitos e de discriminação no acesso a eles que se trata.
O "país" (e aquilo que cada um de nós acha ou deixa de achar) não tem que "estar preparado" para que as mulheres votem, para que pessoas de pele escura sejam chefes de outras mais claras, para que muçulmanos e comunistas trabalhem nos serviços secretos, ou para que homossexuais se casem e adoptem crianças.
A partir do momento em que o contrato social que rege a nossa vida colectiva e a própria legitimidade do exercício do poder assume que são inaceitáveis discriminações com base no género, na 'raça', na idade, nas convicções políticas e religiosas, na orientação sexualand so on, elas tornam-se ilegítimas. A partir do momento em que esse contrato social plasma a proibição de tais discriminações na Constituição, elas tornam-se ilegais - mesmo que sejam lei e por muito que sejam costume.

Poderia ser discutível (embora não na minha opinião) se a proibição do casamento de pessoas do mesmo sexo era inconstitucional ou não. Mas é indiscutivelmente inconstitucional que, sendo esse casamento reconhecido, os casais que dele resultem não possam adoptar - não pelas restrições a que todos os outros têm que se submeter, mas por serem homossexuais.
Aliás, compreendendo embora a hipocrisia política e a cobardia partidária que estão na base da inclusão de uma tal proibição na lei, nunca consegui perceber porque é que ainda ninguém suscitou a apreciação formal da sua tão clara inconstitucionalidade. Afinal, mesmo se vivemos tempos em que a resolução de tantas e tão graves coisas é tão importante e urgente para todos, é-me sempre difícil apontar algo que possa ser politicamente mais importante e urgente do que a salvaguarda, por todos, dos direitos de cada um de nós.

Isto não é, claro está, assunto para referendos. A discriminação no acesso a direitos não se referenda; elimina-se.
Tão pouco deveria ser matéria dependente dos humores parlamentares. Ou sequer objecto das opiniões e estados de espírito dos deputados e respectivos partidos.
Qualquer discriminação inconstitucional no acesso a direitos que fosse detectada nas leis existentes deveria ser obrigatória e automaticamente corrigida. Pela Assembleia da República, está bem de ver, quanto à sua formulação e "promulgação"; mas, repito, obrigatória e automaticamente.
Para este tema, como para muitas outras questões sociais, laborais e políticas em que o princípio da não-discriminação, ou outros fundamentais, fossem violados.

Junto com outra questão candente (essa coisa de não existirem formas institucionais de apear um governo que aplique políticas indesejadas e contrárias ao programa que o fez ser eleito, caso não impluda e conte com o apoio do Presidente da República), se há clarificação que falta e urge na Constituição, é essa.
Através de que exactos mecanismos, assegurados de que forma, já são pormenores.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

BAYETE, VÔVÔ!


Nkosi sikelele Madiba!

sábado, 23 de novembro de 2013

Será que os políticos andam a dar ouvidos aos cientistas sociais?

Não é habitual que os políticos (e os poderosos em geral) dêem ouvidos a cientistas sociais.

Isto excepto, claro está, quando um modismo tenha metamorfoseado o estatuto de um deles no de augure, de quem qualquer opinião trivial, enquanto cidadão e acerca de algo que nunca estudou, deverá suscitar a reverência devida à omnisciência da palavra revelada.

Menos habitual é, ainda, quando os cientistas sociais dêem em dizer coisas que saiam dos caminhos traçados e, sobretudo, daquilo que querem ouvir.

Não obstante, ao ouvir ontem Mário Soares alertar para o perigo de violência pública e para o carácter perigoso do medo, não pude deixar de notar que o conteúdo das suas declarações, que tanto brado estão a dar, me era muito familiar, em coisas que foram ditas e escritas há mais de um ano, sem aparentes consequências.

Claro que os cientistas sociais (quando não sejam apontados como augures, que se espera digam "eu cá acho que...") têm que ser um bocado mais complicados e enfadonhos.
Por exemplo, não podem limitar-se a dizer "Vem aí porrada!". Têm que argumentar e demonstrar porquê, como, através de que mecanismos, a partir de que factores e combinações entre eles.
Tal como aconteceu na curta comunicação que é visível a partir da 1 hora e 1 minuto deste vídeo.



Por ser verdade, os pobres dos cientistas sociais podem até ter que explicar, chatos que são, que a existência dos principais factores para que a porrada ocorra não significa que ela inevitavelmente aí venha.
Que mais importante do que a existência desses factores é a forma complexa e dinâmica como eles interajam entre si e com muitos outros factores (entre os quais o medo, mas já lá vamos), mas que, resultando eles das actuais políticas, a única forma de garantir a segurança pública é reverter essas políticas.

O que, claro está, se não os livra de eventuais admostações dos seus "mais velhos" pela divulgação pública do atrevimento das suas conclusões, diminui um bom bocado o nível de sound bit da coisa.

É isso que faz com que os seus alertas tenham quase sempre um impacto muito reduzido?
Não creio. Terá mais a ver com quem os faz - tanto no que diz respeito à notoriedade pública, quanto por ser cientista social acabar por constituir uma desvantagem, quando se sustenta algo de novo e indesejado.

Também os resultados potencialmente perigosos da instigação do medo, ontem aflorados en passant por Mário Soares, me trouxeram de imediato à memória uma outra xaropada, daquelas com argumentos em vez de opiniões, publicada há quase 2 anos. Chamava-se a coisa "O medo, suicídio e eutanásia da cidadania", imaginem.

Será coincidência, a integração dessas questões, ontem, numa passagem central do violento e badalado discurso de um dos mais conhecidos políticos?
É, claro está, muito possível. Pode chegar-se à mesma conclusão por muitos caminhos, em muitas cabeças sem contacto entre si. E o agravamento das situações pode tornar quase evidente o que tempos antes só era dedutível.

Mas... e se isso quer dizer que os políticos andam a dar ouvidos, mesmo que com mais de um ano de atraso, aos cientistas sociais?

Ou, assim sendo, serão só os que já estão reformados, e se sentem livres para dizer o que querem?

Ou será  que o que manda são os timings da utilidade para o discurso político, e não a relevância social desse discurso científico, já antes desse timing chegar?

Curiosidades que me ficam. Porque têm implicações que vão muito para além deste caso.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Maputo surpreende

 

Os resultados eleitorais em Maputo que vão sendo divulgados são muitíssimo surpreendentes.
A votação na Frelimo surge muito abaixo dos níveis habituais, com o candidato do MDM (Venâncio Mondlane*) a receber votações muito próximas das do actual presidente do município (David Simango**), vencendo-o mesmo em várias mesas.
Se os candidatos e os seus estilos de campanha são sempre relevantes em eleições autárquicas, mesmo numa cidade capital, esta brusca mudança de tendência de voto, a confirmar-se nos resultados finais, adquire necessariamente um sentido muito mais vasto.
Representará um veemente cartão vermelho à recente deriva belicista do estado e da Frelimo, no mais importante dos seus baluartes urbanos.
Tal como as indicações de elevada ida às urnas por todo o país constituirão, a confirmarem-se nos resultados finais, um também veemente cartão vermelho à postura belicista e ameaçadora que tem vindo a ser mantida pela Renamo (que boicotou estas eleições).
Que assim seja, e que esses partidos entendam a mensagem popular.
autárquicas 2013 Maputo 2
* Embora familiar, não confundir com o fundador e primeiro presidente da Frelimo.
** Embora familiar, não confundir com Daviz Simango, presidente do MDM e do município da Beira.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Moçambique a votos, até ver sem tiros


Estão a decorrer, aparentemente menos longe da normalidade do que se esperaria, as eleições autárquicas em Moçambique.

A principal excepção parecem ser os relatos de votantes que se passeiam na Ilha de Moçambique com colecções de cartões de eleitor e, miraculosamente, nunca têm que pôr o dedo na tal tinta indelével (de que eleitores em Quelimane se queixam de sair muito depressa) e, por isso, podem ir saltando de mesa de voto em mesa de voto.

Outras, são a ausência da candidata do pequeno Partido Humanista nos boletins de voto de Nampula, várias ilegais proibições de que jornalistas tenham acesso às Assembleias de Voto e assistam às contagens, ou ainda a detenção na esquadra de Mocuba, durante 4 horas, do director do jornal Savana e de um jornalista do Diário da Zambézia.
Estes, deslocavam-se em reportagem ao Gurué, quando foram mandados prender por um candidato da Frelimo (!), sob a acusação de quererem fazer campanha elitoral em dia de votação (!!), por terem consigo alguns exemplares dos jornais onde trabalham (!!!).

Não há, no entanto, notícia de ataques por parte da Renamo para intimidar as pessoas que pretendem votar - uma hipótese que não era de descartar, apesar desse partido ter declarado que não o faria, por considerar que, tendo eles boicotado as eleições, estas não eram válidas.
Uma curiosa e preocupante declaração, por demonstrar que esta força política continua a considerar, 21 anos depois da guerra civil, que mesmo não detndo nenhuma presidência de município (ao contrário de outro partido da oposição) e apesar de todas as restantes forças políticas e vários grupos de cidadãos terem concorrido, nenhuma eleição é válida se eles se recusarem a participar.

E, sem desvalorizar a importância das autarquias para a vida das pessoas e mesmo para a evolução das atitudes políticas (veja-se o caso da Beira, Deviz Simango e a emergência do MDM), aquilo que afinal acaba por suscitar mais curiosidade neste processo eleitoral é o efeito prático desse boicote, e a forma como as forças políticas poderão reagir, quer a um aumento realmente significativo da abstenção, quer a um seu aumento pouco significativo, ou mesmo redução.

De facto, não sendo de esperar mudanças de vencedores na Beira e Quelimane (MDM) e na grande maioria dos municípios presididos pela Frelimo, as poucas disputas incertas são, claro está, alvo de interesse; mas ainda mais interessante do que a capacidade ou não (já demonstrada nas duas cidades que referi) de o MDM ir buscar votos à Frelimo, será verificar se aquele partido é capaz de capitalizar ou não uma parte muito significativa dos habituais votantes da ausente Renamo, em detrimento da abstenção.

Á actual situação de tensão (para usar um eufemismo), a repulsa das pessoas perante a hipótese de uma guerra e o discurso desde início anti-belicista do MDM fazem suspeitar que, muito provavelmente, conseguirá fazer essa capitaliazação.

Mas (de novo sem desvalorizar as próprias autarquias e as eleições autárquicas) a importância da relevância ou irrelevância numérica do boicote da Renamo não se esgotam, naquilo que mais interessará para o futuro próximo e para a resolução da situação actual, com o fecho das urnas.

Um pouco provável aumento dramático da abstenção teria um resultado político razoavelmente expectável: uma legitimação do peso político e opções da Renamo e um arrefecer dos ânimos que, para os lados frelimistas, mais entusiasmados estejam numa solução castrense para as contradições políticas existentes.

No caso de uma alteração pouco relevante da abstenção, com previsível capitalização por parte do MDM, contudo, as consequências políticas são mais imprevisíveis.
A Renamo tanto pode assumir esse facto como uma demonstração de falta de apoio às suas tácticas do último ano, questionando-se e questionando a sua liderança (ou, pelo menos, o estilo da mesma), como pode, à imagem do que aconteceu em cada mau resultado eleitoral anterior, reduzi-lo a uma aldrabice eleitoral, radicalizando ainda mais a atitude.
Por sua vez, a Frelimo tanto poderá capitalizar essa vantagem enquanto trunfo para uma solução negocial da actual crise politico-militar, como poderá ver nela um sinal de irrelevância e ilegitimidade do oponente, e ser tentada a uma "solução final" pela força - com dinâmica imprevisível, mas com previsíveis consequências desastrosas para a população e para a "musculação" da frágil vivência democrática.
O MDM sairá sempre bem deste cenário. Quanto ao povo moçambicano, isso já não é certo.

(foto de António Zefanias, retirada daqui)


Mais uma informação de relevante "excepção à normalidade", aqui

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Rankings de exames e o exercício do pensamento


A propósito dos recentes rankings de resultados médios de exames no ensino secundário, foi muito (e bem) dito que as escolas particulares que ficam na dianteira têm (ao contrário das escolas públicas) praticamente só alunos sócio-economicamente privilegiados e que, mesmo dentre esses, só aceitam os que se lhes candidatam com melhores resultados anteriores.

Foi também exibida uma notável reportagem televisiva, acerca das negociatas do ensino privado que ( conforme é também comum noutras áreas) verdejam à custa das benesses de dinheiros públicos, de legislação desrespeitada ou refeita à medida e do esvaziamento, por parte do estado, das condições básicas nas suas próprias instituições.

Pelo meio, foram sendo caladas (por desconhecimento ou até porque anarcamente beliscam crenças consensualizadas, acerca da justeza e benignidade intrínsecas dos sistemas de ensino) duas questõezinhas básicas, há muito salientadas pela antropologia/sociologia da educação:

1) que, para além de aquilo que a escola estimula, exige e avalia ser a capacidade quantitativa de reproduzir afirmações consideráveis como as únicas certas, tanto o privilegiar dessa competência (em detrimento de outras) quanto o objecto a que ela se aplica privegiam e impõem, enquanto critério universal de hierarquização de capacidades individuais, aquelas que são valorizadas e auto-atribuídas a grupos sociais específicos, socialmente dominantes;

2) que, mesmo com a massificação da escolaridade e o enorme alargamento do espectro social que nela investe enquanto instrumento de "mobilidade social" para os seus filhos, tanto o grau de valorização, quanto aquilo que valorizam e esperam da escola é significativamente diferente para grupos sociais diversos - e, por estensão não automática, para os indivíduos inseridos em cada um deles que são submetidos à escolarização.

Mas, para lá dessas picuinhices que nos podem pôr a reflectir acerca do que não devemos,  vale também a pena saber deste estudo da Universidade do Porto, que conclui algo de contra-intuitivo, mas que de que muitíssimos professores universitários se apercebem: os alunos de colégios privados tendem a ter piores resultados no ensino superior do que aqueles que são oriundos da escola pública.

A julgar pelas áreas que me são mais próximas, aliás, os topos dos rankings são ainda mais eloquentes.
Por exemplo, os melhores alunos de sempre em antropologia e sociologia andaram na escola pública. Pelo menos um, era trabalhador-estudante. Há casos em que não poderiam pagar as propinas actuais, nem teriam legalmente direito a bolsa.

Estes dados tornam-se menos contra-intuitivos se tivermos consciência de um outro aspecto.
É que, embora também existam professores que pareçam não o ter ainda descoberto (e que, por exemplo, podem achar adequado ao seu trabalho e ao dos alunos avaliarem através de testes de cruzinha certo/errado), a Universidade não é propriamente, ou não é suposto ser, um campo de maiores dimensões, onde se joga o mesmo jogo que no Secundário.
O objectivo do jogo deixa de ser sabermos o maior número possível de afirmações proposicionais "certas" (e que só estão certas se foram aquelas), para passar a ser conseguirmos utilizar a miríade de afirmações e interpretações com que ali contactamos (muitas vezes contraditórias), na interpretação e análise de outros casos, que não aqueles que ouvimos e lemos.

Isso trás dois problemazitos:

Por um lado, é necessário desenvolvermos ou refinarmos a capacidade de analisar e criticar as afirmações e interpretações que nos são "ensinadas". E isso exige outras competências, para além das que são privilegiadas no ensino anterior - incluindo algumas que tendem a ser reprimidas, na sala de aula e na sociabilidade, naqueles espaços de lógicas educativas fadados ao sucesso nos rankings.

Por outro, se qualquer pessoa que tenha sido suficientemente bem treinada para memorizar e reproduzir afirmações proposicionais "certas" consegue terminar um curso, a excelência e treino dessa capacidade não lhe garante, por si só, mais do que resultados medianos. E quanto mais essa capacidade tenha sido a base quase exclusiva de anteriores classificações excelentes, mais difícil e traumático será compreender que as exigências são agora outras e, mais ainda, alterar a forma de trabalhar.

Justiça poética?
Não, certamente, para com os próprios alunos.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Ricardo Machaqueiro (1958/2013)


Faleceu esta noite, com a idade de 55 anos e após uma longa e encarniçada luta contra sucessivas doenças oncológicas, Ricardo Machaqueiro.

Entre outras coisas, era antropólogo. Mas foi, ao longo da vida, deixando a sua marca e granjeando respeito e amizade em áreas como o ativismo social, a gestão de carreira de grupos musicais, a edição livreira ou o associativismo local – campo onde foi dirigente e estudioso de diversas coletividades lisboetas.

Nos últimos anos, era doutorando de antropologia no Instituto de Ciências Sociais da U Lisboa, focando os seus esforços no estudo de uma sua referência de juventude: a União dos Estudantes Comunistas (1972-1979), a sua história, as formas de ser vivida e o seu impacto no percurso dos seus militantes que, conforme gostava de salientar, se espalham hoje por todo o espetro político-partidário e por surpreendentes postos do aparelho de Estado.

O agravamento da sua situação de saúde não lhe permitiu terminar este trabalho antropológico, já bastante adiantado quanto à recolha empírica. É de esperar que a instituição que o acolheu como doutorando queira honrar os seus esforços e perseverança, em condições tão difíceis, e venha a assegurar o tratamento e divulgação dos materiais por si recolhidos.

O corpo de Ricardo Machaqueiro será velado amanhã, das 16 às 23 horas, na Casa Mortuária do Hospital de Santa Maria, de onde sairá às 9 horas de quinta-feira para o cemitério do Alto de São João, onde será cremado.