ESTAVA ESCRITO
in Savana, 1/2/2008
Não seria preciso ser profeta ou adivinho para dizer aquilo que ficou escrito, 5 dias antes dos acontecimentos, no penúltimo parágrafo do Editorial do jornal Savana.
A única surpresa possível será que os tumultos fossem tão virulentos e generalizados e que, numa população que já aguentou tanta coisa e continua a aguentar tanta mais, rebentassem logo no dia de entrada em vigor das novas tarifas dos "chapas".
Que é isso de "chapas" (oficialmente, "transportes semi-colectivos")? São velhas carrinhas de 9 lugares (ver foto no próximo post), recondicionadas para amontoarem 19 pessoas sentadas, para além daquelas que tenham suficiente pressa para seguir meias de pé, meias dobradas, com o rabo virado para a cara de outros passageiros ou saindo alegremente pela janela.
Porque é que as pessoas os usam? Porque a companhia pública de transportes tem 40 machimbombos (autocarros) a cair de podres para toda a cidade de Maputo, que ultrapassa largamente o milhão de habitantes.
Um percurso de chapa custa, na cidade, 5 ou 7,5 Meticais (cerca de 15 ou 22 cêntimos de Euro), conforme a distância. Para complicar a questão, algumas pessoas têm que usar dois percursos de chapa para o seu destino e, desde há uns tempos, os "chapeiros" descobriram um novo truque: fazem apenas parte do seu percurso e os passageiros são obrigados a transbordos e a pagar em cada um dos chapas.
Podemos contudo dizer que alguém com a sorte de usar apenas um chapa para o trabalho ou a escola gastará 210 ou 315 Meticais (6 ou 9 Euros). Não parece muito, mas o salário mínimo são 1.400 Meticais (40 Euros), há muito boa gente que só ganha 1.000 ou 800, e um saco de arroz custa mais de 500 Meticais.Os aumentos decididos pelo governo (lógicos, numa perspectiva economicista, dado o aumento dos combustíveis) são de 50% para os percursos mais curtos e de 33,3% para os mais longos.
Should I say more?
Talvez "I should", mas seria muito longo. Porque, temo bem, o problema não são apenas os chapas, mas uma vida que se torna cada vez mais insustentável, uma ausência de alternativas futuras e um sentimento de que, por parte de quem manda e de quem possui (alguma coisa, ou escandalosamente muito), apenas se é objecto de desprezo e de indiferença pela situação em que se vive.
Noticias, 2/2/2008
Quanto às causas da fúria popular, não será, talvez, preciso cavar muito fundo.
É o custo de vida que sobe, os salários que não aumentam ou descem, a necessidade de mobilizar a criatividade de toda a família - trabalhando os que conseguem, biscatando outros, vendendo qualquer coisa uns terceiros, numa cidade em que meio mundo anda a vender coisas ao outro meio, em porções cada vez menores - para chegar a um mínimo de subsistência que qualquer aumento como este põe em causa.
É o obsceno grau de diferença no acesso à riqueza e a sua ostentação.
É - pondo por outras palavras aquelas que o editorialista deixou escritas - o sentimento de um Estado padrasto que abandonou os seus filhos ao desenrasca perante as leis de um mercado que não existe, numa economia que tão pouco existe fora do "informal", do comércio e dos bons (ou óptimos) empregos a que não têm acesso, e em que os decisores políticos são os maiores patrões e fortunas, tendo aí chegado por já serem políticos quando decidiram privatizações e o dinheiro começou a chover do exterior.
Isto explica tudo? Uma grande parte.
Isto justifica o que aconteceu? Em grande parte.
Savana, 1/2/2008
Que fique claro: não gosto mesmo nada de levar pedradas e não sei que reacções teria, caso a minha filha tivesse sido ferida com gravidade.
É também evidente que, para parar o trânsito na cidade, os manifestantes poderiam fazer barricadas intransponíveis, em vez de alguns pneus a arder, por onde os carros podiam tentar fugir e ser atacados. O seu objectivo (parar a cidade) não tornava necessário o ataque às viaturas e aos seus ocupantes.
Aqui, há uma outra vertente, nada simpática ou aceitável, mas compreensível: a raiva e vingança para com quem tem muito mais, parece achar natural tê-lo e os outros não, e não põe a hipótese de o perder.
Mas o tumulto que parasse a cidade, esse, temo bem que fosse, infelizmente, a única forma de as suas queixas serem seriamente ouvidas.
Alguém me disse em Moçambique, no ano passado: «Com isto da democracia, podemos dizer o que queremos. Mas ninguém liga ao que dizemos.»
É uma frase que poderíamos bem ouvir em Portugal e que, em parte, se pode aplicar à maioria dos países onde há, pelo menos, um mínimo de liberdade de expressão. Mas há por cá algumas particularidades que tornam a situação diferente em natureza/qualidade e não apenas em grau/quantidade.
Não me saem da cabeça, acerca disso, 3 artigos de um número da Análise Social acerca de Moçambique, que tenho vindo a editar e sairá em meados do ano.
Num deles, João Pereira mostra como as vitórias eleitorais do partido que está no poder desde a independência nada têm a ver com um bom desempenho económico da governação (que só o presidente do Banco Mundial parece ver, conforme reafirmou na véspera dos tumultos) mas, fundamentalmente, com a incerteza e medo daquilo que poderia ser a acção governativa da única força política que - infelizmente, digo eu - poderia constituir uma alternativa: a mesma Renamo que foi o brutal inimigo do governo durante a guerra civil.
Ou seja, governa-se pressupondo que, faça-se o que se faça, o medo e a memória dos eleitores tradicionais garantirão que o poder seja mantido.
Noutro artigo, Jason Sumich cita uma sua amiga, filha das actuais elites politico-economico-sociais, num discurso que parece saído da boca de um(a) qualquer herdeiro(a) de grandes colonos de outros tempos: «Há aqui uma grande diferença que não creio que compreendas. Passas o teu tempo com pessoas como nós, que somos educados e ocidentalizados. Aqueles de entre nós que são privilegiados têm gostos e desejos que são muito diferentes dos restantes. É realmente uma questão de interesses. A maioria das pessoas neste país são camponeses, têm uma machamba e ficam satisfeitos com isso. Não precisam realmente de educação ou de mais e, de facto, não o querem. Muitas pessoas deste país não estão interessadas. Querem que as deixem em paz para cultivarem as suas machambas. Somos nós, os privilegiados, que queremos e precisamos das outras coisas.»
Ou seja, as grandes elites económicas e políticas, que em geral são uma mesma e única coisa, parecem achar que os "pretos atrasados" não querem nem precisam de grande coisa, apenas que os deixem fazer a sua vidinha como puderem - e que, portanto, nada lhes é em última instância devido.
No terceiro artigo que não me sai da cabeça, Harry West mostra como, numa zona do país mítica para a Frelimo e para a luta de Libertação Nacional, o facto de os dirigentes políticos não se limitarem a «comer mais» (direito que lhes é popularmente reconhecido), mas «comerem sozinhos» à custa da fome de todos os outros, é traduzido em acusações de feitiçaria maléfica e canibal - ao contrário da feitiçaria em benefício e protecção de todos, que é sua obrigação e legitimaria a sua posição de poder.
Em suma, as pessoas têm boas razões para pensar, com base na sua experiência empírica, que o "pai" não protege os "filhos" nem sente responsabilidades relativamente a eles, e que meras queixas e lamúrias não seriam mais ouvidas do que todas as anteriores.
As pessoas fartam-se.
E, quando outros meios lhes são negados para, dizendo o que querem, ser ouvido o que dizem, só lhes restam estas tristes soluções - por muito que tal nos possa doer no espírito, no corpo ou na propriedade.
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