quinta-feira, 20 de março de 2008

Poder, morte e linchamentos - 1

Fui confrontado pela primeira vez com os linchamentos de putativos ladrões através da cobertura quase integral de um deles, em pleno telejornal de um dos canais moçambicanos.

A essa impressão chocante, seguiu-se a surpresa de verificar que a larga maioria das pessoas - de diferentes camadas sociais - com quem comentava o acontecimento o encaravam com neutralidade ou simpatia, fosse porque considerassem os linchamentos dissuasores da criminalidade («como da última vez que isso aconteceu», esclareciam), fosse porque, simplesmente, consideravam que a morte era a punição mais adequada para os ladrões e para a protecção da sociedade.

Talvez numa tentativa de auto-preservação emocional, acabei por encaixar o ancontecido na vaga categoria das tentativas de purificação e catarse social, suspeitando mesmo de uma ligação entre ele e uma onda de criminalidade aparentemente atípica (onde se incluia um estranho assalto à mansão do ex-Presidente da República), que se seguiu à exoneração de figuras de topo da polícia. Mas, se essa ligação alguma vez existiu, nunca poderá explicar as mais de duas dezenas de linchamentos peri-urbanos que se vêm sucedendo em 2008. É um fenómeno que, pela sua quantidade, ritmo e banalização, nos obriga a suspeitar tratar-se de algo qualitativamente diferente - mesmo se é semelhante, na forma, aos pontuais linchamentos passados.

É normal que, perante fenómenos chocantes, queiramos encontrar A razão que lhes subjaz. Sendo ela única, poderíamos com alguma facilidade modificá-la e superar o problema. Infelizmente, pela minha parte, a experiência leva-me a desconfiar que os factores explicativos são quase sempre vários e interagindo entre si.

Carlos Serra tem acompanhado atentamente esta situação e reflectido bastante acerca dos factores que a permitam compreender; eu sou, relativamente a essa reflexão, apenas um observador interessado. Porém, relendo há dias velhas notas de conversas com ex-soldados portugueses nas guerras de libertação travadas nas então colónias, pareceu-me encontrar alguma coisa de pertinente para a compreensão dos actuais linchamentos. Que me levou a outras.

Pergunto-me hoje se será irrelevante, para a compreensão do que se passa, que o acto de matar sob aplauso público (em vez de sob reprovação) seja frequentemente sentido como um exercício de poder, excepcional na sua força e ocasião, que produz prazer e, a posteriori, saudade. Se será irrelevante o conhecimento em Moçambique de uma estética da morte e do castigo físico públicos - desde tempos pré-coloniais, bem presente nestes e também presente, ou mesmo reforçada, nos tempos revolucionários e nos da guerra civil. Se será irrelevante que estes linchamentos também pudessem corresponder (embora nada indique que sejam assim verbalizados) à metáfora do «povo que sai da garrafa».

Mais do que hipóteses, serão intuições que, a terem validade empírica, poderão constituir mais uma vertente a ter em conta na compreensão da actual vaga de linchamentos. Mas falta ver se têm ou não essa validade. Apresento-os aqui, nos próximos 3 posts, por eventualmente poderem ser de alguma utilidade para quem esteja a estudar o fenómeno. Isto porque, infelizmente, não é possível a cada um de nós pesquisar aprofundadamente todos os temas que lhe interessam e que o merecem.

1 comentário:

samya disse...

venho de uma cidade fronteiriça onde a violência é o pão cotidiano e o mais absurdo é a sua banalização. Quando digo que apesar dos pesares prefiro morar na Europa porque me sinto mais segura as pessoas me olham como se a segurança fosse um privilégio e não um direito do cidadão. Sera que acostumamos com a violência de tal forma que esquecemos de resolver os problemas com as palavras? Sera que uma morte é so mais uma morte, um fato banal entre tantos outros? E ja nos tornamos juizes e carrascos que punem com a morte porque estamos cansados de esperar na justiça que deveria vir do estado mas que não chega por mais que esperemos?
Desculpe pelo comentario tão longo.
Um abraço e fim de semana de paz ainda que seja a paz uma quimera.