Parámos hoje, a família e eu, numa dessas nobres e úteis inovações que são os cafés dentro de livrarias.
Íamos à procura de um livro chamado "A toupeira que queria saber quem lhe fizera aquilo na cabeça" pelo que, como imaginam, este não era um daqueles dias dedicados ao que os nossos pais e avós decidiram chamar, entre petulância e reverência, alta cultura.
Mas estávamos nós face às bicas, ao leitinho com chocolate e às torradas quando se iniciou, uns metros ao lado, a enésima (segundo percebi) divulgação de um livro de contos lançado há meses atrás.
O aspecto adolescente serôdio do autor (reforçado pelo do editor, que salientava a qualidade da escrita e a aposta ganha, visto que o livro estava quase esgotado) suscitou no meu coração quarentinho a expectativa da casual revelação de uma nova pérola literária.
A afirmação do contista de que o seu forte era escrever e não falar chegou depois de vários minutos de discurso que, se suscitavam dúvidas acerca da primeira parte deste seu statement, tinham tornado a segunda bastante evidente.
Confesso que, por essa altura, já o meu entusiasmo literário tinha esmorecido ao ponto de justificar, enquanto metáforas, as mais escabrosas piadas sobre disfunção eréctil de que se consigam lembrar. A curiosidade etnográfica, pelo contrário, crescia a olhos vistos. «Deve ser deformação profissional», pensei. «A tal de esquizofrenia cultural.»
Chegado ao fim da sessão, fiquei a saber que só por acidente bem involuntário poderei vir a descobrir se, afinal, o forte do homem é mesmo a escrita. Mas também acabei por aprender várias coisas.
Que o contista começou a escrever para concursos do jornal da escola secundária e que, como os ganhava com frequência, achou que se calhar até tinha jeito e valia a pena fazer umas coisas para um livro.
Que os amigos, sabendo que escreve contos, lhe perguntam se escreve para crianças e que, perante a sua negativa, assumem que o tema é o sexo - o que o escandaliza acerca da visão que as pessoas têm desse nobre género literário.
Que os contos se escrevem sem dor, pois a sua principal característica literária é terem duas ou três páginas.
Que considera uma crítica dizerem-lhe que os seus escritos têm interpretações diferentes em leituras diferentes, mas que prefere escrever complicado em vez de simples, pois quando se escreve simples as pessoas percebem logo e ninguém volta a ler.
Juntando isso com a informação do editor acerca do sucesso da obra, fiquei a saber muito sobre o autor, os seus amigos e os consumidores de escrita.
E também que ou o mundo está a ficar parvo ou eu estou a ficar velho.
sábado, 3 de novembro de 2007
A infância da literatura
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