Hoje, acordei ao som de gritos de «Pega ladrão!».
Estremunhado, arrastei-me até à varanda e, com esta onda de linchamentos que por aqui anda, dei comigo a torcer pelo ladrão. Escapou-se. Fiquei mais tranquilo.
Não sou o único a cruzar-me com estes sentimentos e reacções contraditórias.
Tempos atrás, roubaram o auto-rádio de um patrício meu, dentro dos muros da sua propriedade. Só podia ser um dos guardas e, após conciliábulo, dois deles acusaram um terceiro. O homem negava e o nosso heroi, muito portuguesmente, levou-o à esquadra para apurar o assunto.
Explicou o que se passara, deixando bem claro que poderia ter sido um dos outros guardas, mas o polícia só perguntou ao homem: «De onde é que tu és?» «De Inhambane», foi a resposta. Antes que o tuga percebesse o que se passava, já o acusado estava estatelado no chão, com o polícia a saltar-lhe a pés juntos em cima do peito, enquanto gritava, ao ritmo dos pulos: «Então... tu vens... da... minha terra... para... roubar... rádios em Maputo?»
O inicial lesado lá conseguiu fazer a cara mais severa que conseguiu e dizer: «Deixe estar, que eu trato do assunto à minha maneira. Vou tirar isso a limpo e trago-o cá mais tarde!» E, entre os olhares cúmplices das forças da ordem, lá enfiou o suposto ladrão no carro e, claro, foi deixá-lo no hospital.
Mas há histórias mais antigas.
Poucos anos após a independência, quando era ouro encontrá-las, tentaram roubar uma peça do carro a uma amiga moçambicana, em plena baixa de Maputo. Ela gritou, o homem foi dominado e rapidamente lhe ataram os braços com arames.
Em direcção à esquadra mais próxima, formou-se uma procissão que ia sempre engrossando com novos justiceiros, que pedagogicamente distribuiam uns sopapos ao homem. A certa altura, já era a lesada que apelava à calma, limitando os estragos como podia.
Na esquadra, após as esperas e recolhas de depoimentos, reparou que o incompetente ladrão estava com os braços inchadíssimos e as palmas das mãos roxas. Imaginando-o já gangrenado e amputado, por causa da merda de um bocado de metal que faz os carros funcionarem, a minha amiga lá conseguiu exigir que lhe tirassem os arames e, pateticamente, deu consigo a fazer-lhe massagens nos braços.
Ainda tentou retirar a queixa, mas havia já não sei quantas testemunhas dispostas a apresentá-la.
Tudo isto me lembra que, em Lisboa, tive que deixar de frequentar um restaurante de que muito gostava, para os lados do Limoeiro.
É que, depois de ouvir as conversas dos aspirantes a juízes, nas mesas ao lado, chegava a ter pesadelos em que ia parar ao tribunal, por uma razão qualquer, e eram eles quem me julgava.
Há dias em que o castigo me assusta mais do que o crime.
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