sábado, 8 de março de 2008

Os professores e a Professora

Estou banzado!

Ver na televisão mais de 85.000 professores (Fenprof e PSP de acordo), um pouco mais de metade dos professores portugueses, numa manifestação em Lisboa contra a política de ensino do governo e exigindo a demissão da respectiva ministra é um acontecimento que foge a todas as normas. É o equivalente sectorial a vermos 5 milhões de portugueses na rua, a protestarem contra o governo ou uma sua política geral.
Perante um terramoto destes, ver depois Augusto Santos Silva a perorar (certamente contrariado, pois ninguém lhe pode invejar a obrigação de fazer tal discurso) que a política do governo não é ditada por manifestações, mas pelo seu programa, é constrangedor. É patético. Tem-se pena do homem, mesmo tendo sido ele quem aceitou o cargo. Porque não é credível que possa existir um tal nível de autismo num governo e num homem inteligente como ele.

Um tamanho consenso contra uma política de um governo (sectorial mas numa área indiscutivelmente estratégica) e contra a pessoa que com particular empenho a planeia e executa é excepcional. Que esse consenso se expresse através de uma manifestação de rua tão esmagadora é mais excepcional ainda.

Porquê? A propósito de uma outra manifestação, chamei aqui a atenção para um facto que por vezes nos escapa: há quase duas décadas que, em Portugal, as pessoas consideram a representação sindical (mesmo quando não concordam com a actuação prática dos sindicatos) como um serviço público a que têm direito, sem que tal exija delas filiação e participação. Quando participam, isso é um acto muito mais significativo do que quando (até meados da década de 1980) participar era normal; quando o fazem massivamente, a excepcionalidade do acto demonstra como é excepcional e consensual o desacordo.

Mas isto levanta novas perguntas. Como é que alguém (individual ou colectivo) consegue criar um consenso destes contra si próprio? Há a política adoptada, claro. Há o autoritarismo na sua adopção, certamente. Mas é só isso?

O autoritarismo não é apenas um estilo. É uma concepção do poder e do seu exercício - e o poder não é apenas "político", no sentido mais comum da palavra; existe em qualquer relação entre pessoas. Também não é, pelo menos para os psicólogos, a mesma coisa que autocracia.
O autocrata impõe-se, vai à luta para esmagar mas equaciona a possibilidade de derrota e sabe ouvir, porque toma as opiniões adversas como informações essenciais para ajustes tácticos, mesmo que os seus objectivos estratégicos sejam execráveis. Quer dominar, mas está alerta porque encara esse domínio como o resultado de um jogo permanente.
O autoritário "pisa para baixo" e "amouxa para cima". Desvaloriza as opiniões adversas e as informações desagradáveis para o seu plano, porque parte do princípio de que estar numa posição dominante garante, à partida, a imposição e sucesso do seu domínio. São os burocratas do poder sobre os outros.

A Ministra da Educação demonstrou publicamente o seu carácter autoritário e o nosso primeiro mais ainda - juntando até, aos aspectos de poder, a fixação higienista e saudabilista que os psicólogos atribuem a esse modelo de personalidade.
Está estudado que os autoritários preferem rodear-se de autoritários, quer por apreciarem o estilo (que acaba por ser uma extensão do seu), quer por se sentirem mais seguros de que, assim, a sua posição e poder não serão questionados, pelo menos enquanto as posições hierárquicas estiverem claras. OK, mas... Porquê esta autoritária? E que consequências é que essa escolha tem?

Para alguém que leccionou Antropologia da Educação durante 7 anos, sou singularmente pouco interessado por questões relacionadas com o sistema de ensino.
Mas há uma coisa que repeti inúmeras vezes, nos mais variados sítios e contextos, embora fosse quase sempre entendida como uma gracinha pour épater les bourgeois: a importância real dos professores para a sociedade decresce à medida que aumenta o grau de ensino que leccionam.
A afirmação era vista como uma boutade num académico, porque separa o aprofundamento de saberes da importância social do trabalho lectivo (que normalmente são amalgamados) e porque é suposto termos, todos nós académicos, um enorme ego individual e colectivo.
Esta última imagem é basicamente verdadeira, sem que eu seja excepção. Mas a experiência de vida e a capacidade auto-reflexiva têm alguma importância, pelo que por vezes dá para compreender que a universidade é uma instituição singularmente hierarquizada, considerando os seus supostos objectivos, e que tende a ser encarada, por nós académicos "bem sucedidos", não como um cantinho relativamente pouco relevante do mundo, mas como a sociedade (com ou sem o prefixo "micro") relevante em que nós vivemos. É normal, então, que farrapinhos de poder quase ridículos numa perspectiva societal global sejam objecto de lutas fracticidas letais, como se aquelas cagadinhas de poder fossem O PODER, e como se o poder valesse isso.
Em suma, e apesar de algumas muito louváveis excepções (que têm tanto a ver com carácter individual como com a capacidade de fazer com que alguns valores resistam à erosão do meio circundante), somos um caldo de cultura adverso à produção de decisores políticos que encarem o poder segundo uma lógica diferente do mata-ou-morre - ou, num outro sub-produto mais raro, do "bananismo" indeciso.

Posto isto:
A partir de hoje, a Ministra da Educação está politicamente morta.
Não é uma declaração política; é a mera constatação de um facto.
Discordo de algumas opções tomadas pelo Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (embora suspeite concordar com o diagnóstico que o terá levado a tomá-las), mas acho que dificilmente poderíamos encontrar uma melhor pessoa para esse cargo.
Em contrapartida, quanto ao Ministério da Educação, deixem os académicos a academicar. Vejam lá se agora arranjam um(a) ex ou actual professor(a) do ensino básico ou secundário, sem grandes sentimentos corporativos mas sensibilidade para os entender, que não saiba falar educacionês, não seja um(a) "rato(a) de aparelho" partidário e, de preferência, seja inteligente. De outra forma, estarão a pedi-las.

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