sábado, 11 de outubro de 2014

O coveiro do regime democrático


Aníbal Cavaco Silva apelou, nas comemorações do 5 de Outubro, a uma cultura de compromisso e ao estabelecimento de consensos essenciais entre os partidos políticos.

Tanto quanto conheço o sistema político e a sociedade do meu país, esse consenso e compromisso não apenas existem de uma forma muito mais alargada, perene e estruturante do que os partidos, as flutuações das maiorias partidárias e as conjunturas económicas, como estão disponíveis por escrito.
O nome do documento em causa é Constituição da República Portuguesa. Após sucessivas revisões, aquilo que nela existia de imposições militares do PREC, ou de espelho das correlações de forças da altura, há muito desapareceu. Melhorada para uns, pior para outros, sempre com qualquer coisa que desagrada a alguém (porque ainda lá está, ou porque lá deveria estar), o que restou na Constituição foi precisamente um compromisso acerca do mais essencial, um consenso que transcende as diferentes posições políticas e ideológicas que por aqui são relevantes.
Não apenas entre as diferentes forças partidárias e as diferentes visões, ou ausência delas, que tenham para o país. Mesmo para o cidadão que não faça ideia do conteúdo preciso do texto constitucional, os seus princípios essenciais (os tais mais estruturantes, objeto de consenso e de compromisso e, no outro sentido da palavra, afirmações do compromisso do Estado para com os cidadãos que governa) tornaram-se dados adquiridos, partes integrantes das suas noções de justeza, dignidade, decência, justiça social, legitimidade.

Um dos problemas do apelo de Cavaco Silva ao compromisso e consenso é que ele não se centra nesses princípios essenciais e nas formas de os salvaguardar nas conjunturais condições presentes, mas antes num acordo sobre um modelo de sociedade e de relações económicas e sociais que, em nome de uma leitura particular acerca dos particularismos atuais, subverte esses princípios e o consenso e compromisso em torno deles.

Um segundo problema, que daí decorre de forma imediata, é que isso corresponderia a destruir a política e a democracia, naquilo em que elas ultrapassam a mera possibilidade de optar entre quem irá gerir, acompanhado por que clientelas, um mesmo modelo societal e conjunto de políticas, no essencial pré-definidos.
Ou seja, destruí-las naquilo que elas têm de importante, de diverso e de possibilidade de efetiva opção substancial por parte dos cidadãos – substituindo a política democrática, enquanto construção e opção de alternativas, pela alternância numa mesma lógica austeritária e em que tudo, a começar pela vida das pessoas, se submete aos ditames da dívida chamada pública.
Ou seja, ainda, afirmar a irrelevância da diversidade democrática e da vida política, dando ainda mais razões para um fenómeno com que Cavaco Silva disse, na mesma ocasião, preocupar-se: a descrença na “classe política” e a desconfiança nas instituições, criando riscos de implosão do sistema partidário.

Um terceiro e mais relevante problema é, contudo, que o próprio exercício das funções presidenciais por parte de Cavaco Silva já contribuiu em muito quer para esse fenómeno, quer para a consciência pública de que existe um problema fundamental de regime e de democraticidade, que antes dele passara despercebido.

O ponto de viragem é o mês de Julho de 2013, com a demissão de Paulo Portas e a ruptura da coligação governativa.
Até então, era claro para todos (à exceção dos indefetíveis das receitas austeritárias) o larguíssimo e socialmente abrangente repúdio por políticas governativas calamitosas que não tinham sido sequer referendadas nas eleições. Tal como era clara a sucessiva viabilização das mesmas por Cavaco Silva, simulando inanição e em nome de supremos interesses conjunturais que justificariam um estado de exceção constitucional e social.

A partir do momento em que Cavaco Silva se empenhou ativamente em colar os cacos governamentais, em tentar forçar o “consenso” partidário acerca da austeridade e em impedir a queda do governo, foi outra coisa que os cidadãos descobriram: a existência de uma grave falha na democraticidade do regime.
Descobriram que pode não importar se um governo é eleito com base num compromisso eleitoral e, depois, executa políticas contrárias às que prometeu (com isso perdendo a sua legitimidade democrática) e que suscitem uma generalizada oposição popular - com isso se tornando políticas democraticamente ilegítimas. Pode não importar porque, por muito que os cidadãos demonstrem o seu massivo repúdio, e por muito que essa situação constitua uma antidemocrática manipulação do formalismo da democracia, se tornou claro que não existem mecanismos no nosso regime democrático para apear um tal governo e uma tal subversão democrática, desde que ele não imploda, não o deixem implodir e conte com o apoio ativo do Presidente da República. Algo que nunca tinha acontecido.
Curiosamente, a consciência dessa falha e bloqueio de regime tornou-se muito evidente nas conversas públicas entre cidadãos, ao longo do ano passado, mas não parecem ter sido apercebidas pelos partidos políticos (talvez pelos microclimas em que vivem e se relacionam) nem a sua importância, nem as suas potenciais consequências.

Usando do imediatismo e tacticismo de que voltou a acusar (e quanto a isso, bem) os partidos, Cavaco Silva conseguiu há mais de um ano salvar o governo e o modelo austeritário que queria. Conseguiu até neutralizar o ascenso de protestos populares - tradicionais e inorgânicos - através da consciência que criou acerca desse bloqueio institucional e acerca da inconsequência dos mecanismos de protesto disponíveis dentro do quadro do regime.
Mas generalizou também o sentimento de que as eleições democráticas não são um contrato mas um cheque em branco (no qual há que ter fé de que não o passamos a aldrabões que amanhã façam o contrário daquilo a que se comprometeram) e de que as regras democráticas podem ser manipuladas para negar às pessoas a democracia, sem que estas possam fazer o que quer que seja, a não ser que subvertam os limites do regime democrático vigente.
Dessa forma, e a um nível muito mais profundo do que a sua “conversa de café” acerca de promessas eleitorais no 5 de Outubro, Cavaco Silva desferiu uma enorme machadada na confiança popular na democracia e no regime democrático, correndo o risco de se tornar o seu coveiro.

Neste quadro, talvez a única revisão urgente de que a nossa constituição necessita seja a criação de um mecanismo que permitisse, aos cidadãos que elegeram forças políticas que governam contra a Constituição e contra os seus compromissos eleitorais, exigir e votar a demissão do Governo e a dissolução da Assembleia da República, independentemente da vontade de quem seja Presidente.


Não se trata apenas do colmatar de uma falha de regime, que a atuação de Cavaco Silva tornou visível. Não se trata apenas de uma salvaguarda democrática e de uma possibilidade excecional de devolução da soberania a quem em última instância a detém. Poderá bem tratar-se da salvação da credibilidade do regime democrático.