sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Um anito e uns trocos

Acabada a importação deste blog do endereço anterior (um grande obrigado, Marta!), reparei que o Antropocoiso começou há pouco mais de um ano. A efeméride foi na véspera de o povo "sair da garrafa", mas nego qualquer relação de causa/efeito, mesmo que espiritual.

Isto começou como uma forma de ter onde disponibilizar os meus artigos e, pontualmente, dizer umas coisas sobre assuntos (mal) esquecidos ou que me parecesse necessitarem de um outro ponto de vista, para juntar ao muito que acerca deles estivesse a ser dito.
Um ponto de vista não da Antropologia (assim, com letra maiúscula), mas de um cidadão que olha o mundo de forma um pouco diferente por a sua vida ser fazer antropologia e que (como os seus colegas) faz antropologia de forma um pouco diferente, pela sua particular experiência e história de vida.
Coisa modesta e quase confidencial, portanto.

Entrementes, no endereço anterior, que fornecia estatísticas diárias, tive a surpresa de ver o número de visitantes estabilizar nos 150, mesmo quando estava semanas sem afixar um post. Sendo esse número, ainda, quase confidencial, sente-se mesmo assim uma responsabilidade de dar algo em troca dessa simpatia e persistência.
Isso é fácil quando estou fora de Portugal, em sítios bem mais mexidos do que o meu belo mas rotineiro jardim à beira mar plantado. Aí, com a modéstia e o olhar "fresco" de quem é de fora, há sempre coisas que me interessa comentar - e sempre é uma forma de manter contacto com a família e amigos.
O número de posts vai engordando sem esforço, o número de visitantes não sei, mas felizmente o Antropocoiso não é um desses fenómenos de merecida popularidade como o Abrupto, o Arrastão ou o Diário de Um Sociólogo. Aí, ver-me-ia "à rasca", pois nem esta é a minha vida nem tenho a titânica capacidade de trabalho do Carlos Serra.

Mesmo assim... este modesto cantinho vai sendo pontualmente referido e citado, tendo mesmo sido levado, pela mão e generosidade de um colega bloguístico e académico, para as páginas do jornal que todas as semanas leio, a propósito de um esclarecimento antropológico acerca de um acontecimento da actualidade.
Para além de um prazer e de uma ligação com os outros, atrevo-me por isso a pensar que o Antropocoiso tem alguma utilidade - para as pessoas e, talvez, para a divulgação das formas de pensar nas ciências sociais.

Entretanto, instalei há uns dias um "brinquedo" que podem ver aí ao lado - o Feedjit.
Uma consequência disso é que a minha filha, agora, me pede que abra o blog para ela ver se há bandeirinhas diferentes.
Outra é que, de repente, uma pessoa atribui locais a esses visitantes que antes eram apenas números, quando os havia. Não é o mapa-mundi que encontramos nos blogs mais concorridos mas é, mesmo assim, surpreendente: localidades portuguesas de que nunca ouvi falar, países inesperados, acesso por links que se julgariam improváveis, saídas para sites científicos que aqui linquei.

Se nos lembrarmos que um bom artigo, publicado numa revista científica de referência, costuma ser lido por umas dezenas de pessoas e que um livro científico premiado pode vender apenas umas centenas de exemplares, isto dá que pensar. E convence que valeu a pena.

A todos os visitantes, um grande obrigado.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Fernando e os Mambos



Uma referência hoje feita, na catedral bloguística moçambicana, à actual pesquisa do meu querido colega Fernando Florêncio lembrou-me que o seu excelente livro Ao Encontro dos Mambos - Autoridades tradicionais vaNdau e Estado em Moçambique não está à venda em Maputo.

Para quando, senhores das livrarias? Vale a pena e prestariam um bom serviço aos leitores moçambicanos.

Enquanto isso não acontece, os interessados podem folhear o livro aqui.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Assistencialismo e desenvolvimento

Tenho vindo a notar que continuam a aparecer regularmente posts, em blogs diversos, acerca da entrevista do economista queniano James Shikwati à Der Spiegel, em 2005, onde ele atacava o assistencialismo a África como um instrumento de reprodução da miséria e do subdesenvolvimento.

O assunto é polémico, há muitos interesses (e também boas intenções) em jogo, e por isso me parece que se torna ocioso discuti-lo com base em opiniões e abstrações gerais.
É por essa razão que sempre me lembro, ao ver essas referências à entrevista, de um livro do João Milando (investigador angolano que esclarece sempre, ao encontrar moçambicanos, que o seu apelido não tem nada a ver, em Angola, com o seu sentido por cá), que aborda esses mesmos temas a partir de dados empíricos: Cooperação sem Desenvolvimento.

É a sua também polémica tese de doutoramento (que, segundo me disseram, muito agastou alguns membros do júri), centrada na «relação entre o funcionamento das instituições de cooperação para o desenvolvimento e o surgimento de dinâmicas sociais adversas ao próprio desenvolvimento social e económico». Uma forma de dizer que o livro gira em torno dos temas mais "quentes".

Não há livros imprescindíveis mas, mesmo quando o leitor discorde pontual ou globalmente das posições do João, este é muito útil para pensar e discutir o assunto para lá das generalidades e do «eu cá acho que...». Se o tema vos interessa, aconselho vivamente.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Não dá dinheiro; dá machimbombos!

chapa no 5 de Fevereiro (foto Savana)

Vinte dias depois, foram agora os "chapeiros" (diz-se que os «piratas» sem licença, mas não posso garantir) a fazer greve, por questões processuais ligadas ao acesso ao gasóleo subsidiado.

A coisa foi bem mais calma, pois bloquearam ou tentaram bloquear duas vias essenciais (entrada da Matola e Chiquelene) com as viaturas, mas a população ou veio a pé ou voltou para casa. Esta não é a sua greve.

De manhã, mal se soube da coisa, as lojas fecharam em zonas centrais da cidade, mas o ambiente voltou mais ou menos ao normal - apenas com menos chapas em circulação, indecisos se iriam ou não aderir.

A caminho da padaria, fui inopinadamente nomeado representante da "comunidade internacional" (ou dos "doadores", como aqui se diz), por uma vendedora de mangas sentada no passeio:

- Não dá dinheiro ao governo. Dá machimbombos.*

Parece que os comentadores encartados e o povão estão de acordo acerca do que faz falta para resolver este imbróglio dos transportes.

* autocarros, em português de Portugal

Apoiado, Senhor Presidente!

Savana, 22/2/2008

Numa pequena notícia de canto de jornal, encontrei uma boa razão para, na sequência das preocupações que aqui expressei, gritar agora «Apoiado, Senhor Presidente!»

Faço votos que os planos dos empresários nacionais e estrangeiros interessados neste negócio não venham a ser mais fortes do que estas correctas e necessárias orientações presidenciais.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Semânticas invisíveis

Adam Smith

O porta-voz do partido no poder em Moçambique considerou as manifestações de 5 de Fevereiro, em Maputo, «atípicas e com origem numa mão invisível, que fracassou nos seus intentos de desestabilizar o País».

O meu interesse pela frase não se deve muito à imagem de um povo ordeiro e pacífico (os moçambicanos, que estiveram 30 anos em guerra, primeiro anti-colonialista e depois fraticida, com Campos de Reeducação, execuções públicas e Operações Produção pelo meio), ingenuamente manipulado por tenebrosas, subversivas e desconhecidas forças externas.
Afinal, essa imagem é uma interpretação que até já está bastante vista, desde que Salazar a aplicou às Lutas de Libertação Nacional nas então colónias portuguesas e à resistência anti-fascista na então "metrópole".

Parece-me bem mais curiosa a metáfora da "mão invisível", para designar as tais forças externas, sobretudo num partido reconvertido ao capitalismo liberal.
Seria de esperar que quem a usa num assunto tão sensível se lembrasse de onde tinha ouvido a frase. Foi, claro, em Adam Smith, quando ele teoriza a regulação automática dos preços por parte do mercado concorrencial (com base na oferta e na procura) e, em resultado desta, a selecção entre empresas bem sucedidas e falidas.
Imaginem as interpretações e parangonas de jornais que, com base nisto, se poderiam fazer acerca da origem dos motins na "mão invisível" da economia de mercado, ou em mecanismos automáticos de regulação entre oferta e procura política!...
Talvez, nesse caso, quem falou de "mão invisível" não andasse mais longe da verdade do que Adam Smith, mas tenho algumas dúvidas de que fosse isso que queriam dizer.

Tudo isto me lembra aquela piada russa do puto que, regressando de uma celebração oficial onde ouvira que «caminhamos em direcção ao horizonte radioso do comunismo», foi ao dicionário e ficou a saber que o horizonte é «uma linha imaginária que parece afastar-se à medida que nos aproximamos dela».

A semântica, às vezes, prega partidas ao discurso metafórico dos políticos.

Ensino preservatício

Esta é a Imagem da Semana, na última página do Savana.

Vejam o megafone, ao lado do falo de borracha. Vejam a variedade de expressões faciais. Vejam a velhinha a espreitar, lá ao fundo. Vejam...

Grande foto, Naita Ussene!

(re)Parabéns, INGC

Estou a ficar fã!

Já aqui louvei a
eficiência e o rigor do Instituto Nacional de Gestão das Calamidades, nas cheias do Zambeze.

Agora, o INGC vem chamar a atenção para desvios na distribuição dos donativos às vítimas das cheias, a jusante da sua acção - juntando às suas outras características públicas a seriedade e mostrando que, para um organismo estatal como este, tais falcatruas, roubos e revendas não são normais nem aceitáveis.

Parece que alguém andou a ler a história do menino e do lobo, levando a sério que, para o auxílio vir depressa quando é de facto necessário, não se pode andar sempre a gritar «Lobo!» sem que ele lá esteja. Parece que também se andou a ouvir a velha frase de que "à mulher de César não basta ser séria, tem também que parecê-lo" - e, com isso, ganhar credibilidade e não apenas pena.

Quem olha e vê, deixa de acreditar nessas balelas de que incompetência, corrupção e desleixo são "culturais" e "moçambicanos" (tal como, há umas décadas atrás, se dizia que desorganização e calãzisse eram "culturais" e "portuguesas"). São apenas incompetência, corrupção e desleixo - e, venham de moçambicanos ou de quem quer que seja, não há supostas "culturas" que os justifiquem; há apenas a complacência para com eles.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

... E memórias que nos lembram ser mau habituarmo-nos

«Quando um homem dorme na sarjeta, o que faz falta?»

Memória...



«On n'oublie rien de rien,
on n'oublie rien du tout.
On n'oublie rien de rien,
on s'habitue, c'est tout.

Et tout cela et rien au monde
ne sait pas nous faire oublier,
ne peut pas nous faire oublier,
de ce fait que la Terre est ronde.»

(Vai de memória, mas deve ser isto.)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Sim, Nós Lata


A minha mulher acaba de se escaqueirar a rir, de tal maneira que me fez vir a correr, preocupado que lhe estivesse a dar uma coisinha ruim.

Passou por um programa de tradução a letra do hino de campanha de Obama, "Yes, we can".

A primeira frase que lhe apareceu em português foi "Sim, nós lata".

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

O valor da democracia

Nas eleições que o PCI quase ganhou, uma colega minha, jovem na altura, não pretendia votar.
O seu pai chamou-a solenemente à sala de visitas da casa, que só se abria nas grandes ocasiões e disse-lhe:
- Parece que a senhora não vai votar. Porquê?
Ouvidas as cépticas razões da minha colega, respondeu.
- Como sabes, o teu tio, meu irmão, foi partizano e morreu para que pudéssemos votar. Numas eleições tão importantes, tu não vais votar?

Lembrei-me desta história, ao ver este video.

É de um apoiante do candidato presidencial norte-americano Obama, que calhara ser entrevistado na rua por um repórter televisivo que, esperando encontrar um vazio abanador de bandeirinhas, "levou um baile" (aqui).
Com o impacto que a entrevista teve, o homem gravou este novo vídeo, agora em casa, para explicar mais algumas coisas acerca do seu apoio ao candidato e da importância que atribui à participação política.

É um imigrante liberiano entretanto naturalizado norte-americano, que eloquentemente explica porque é que, para alguém que antes não teve essa oportunidade, é tão importante essa coisa de votar em eleições livres, debater livremente e ser interventivo. Essa mesma coisa que é tão facilmente desprezada por quem está habituado a tê-la de mão beijada.

Aprendi há vários anos, em Moçambique, como a paz pode ser valiosa para as pessoas, mesmo quando a vida corre mal e as perspectivas de melhoria não parecem ser muitas.

Gostei de ser, agora, lembrado do enorme valor da liberdade e da democracia, que já me habituei a ter como certas.

Mais olhares sobre os motins


Ainda às voltas com os toques finais do tal artigo, fiz uma paradinha e aproveitei para partilhar convosco uma canção acerca do 5 de Fevereiro, do polémico rapper Azagaia.



Composta em cima dos acontecimentos, fez-me pensar no título de um livro da Teresa Fradique, que também vale bem a pena ler: Fixar o Movimento.

Aditamento a 20/2: Polémico, mesmo. Segundo parece, a música foi proibida na rádio.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Concurso "Capitalismo Moçambicano"

Passei pelo Macua e dei com esta pérola, aparentemente de origem brasileira:

CAPITALISMO IDEAL:Você tem duas vacas. Vende uma e compra um touro. Eles se multiplicam, e a economia cresce. Você vende o rebanho e se aposenta, rico!
CAPITALISMO AMERICANO:Você tem duas vacas. Vende uma e força a outra a produzir o leite de quatro vacas. Fica surpreso quando ela morre.
CAPITALISMO FRANCÊS:Você tem duas vacas. Entra em greve porque quer três.
CAPITALISMO JAPONÊS:Você tem duas vacas. Redesenha-as para que tenham um décimo do tamanho de uma vaca normal e produzam 20 vezes mais leite. Depois cria desenhinhos de vacas chamado Vaquimon e os vende para o mundo inteiro.
CAPITALISMO ITALIANO:Você tem duas vacas. Uma delas é sua mãe, a outra é sua sogra, maledetto!!!
CAPITALISMO ENRON:Você tem duas vacas. Vende três para a sua companhia de capital aberto usando garantias de crédito emitidas por seu cunhado. Depois faz uma troca de dívidas por ações por meio de uma oferta geral associada, de forma que você consegue todas as quatro vacas de volta, com isenção fiscal para cinco vacas. Os direitos do leite das seis vacas são transferidos para uma companhia das Ilhas Cayman, da qual o sócio majoritário é secretamente o dono. Ele vende os direitos das sete vacas novamente para a sua companhia. O relatório anual diz que a companhia possui oito vacas, com uma opção para mais uma. Você vende uma vaca para comprar um novo presidente dos Estados Unidos e fica com nove vacas. Ninguém fornece balanço das operações e público compra seu esterco.
CAPITALISMO BRITÂNICO:Você tem duas vacas. As duas são loucas.
CAPITALISMO HOLANDÊS:Você tem duas vacas. Elas vivem juntas, não gostam de touros e tudo bem.
CAPITALISMO ALEMÃO:Você tem duas vacas. Elas produzem leite regularmente, segundo padrões de quantidade e horário previamente estabelecido, de forma precisa e lucrativa. Mas o que você queria mesmo era criar porcos.
CAPITALISMO RUSSO:Você tem duas vacas. Conta-as e vê que tem cinco. Conta de novo e vê que tem 42. Conta de novo e vê que tem 12 vacas. Você para de contar e abre outra garrafa de vodca.
CAPITALISMO SUIÇO:Você tem 500 vacas. Mas nenhuma é sua. Você cobra para guardar a vaca dos outros.
CAPITALISMO ESPANHOL:Você tem muito orgulho de ter duas vacas.
CAPITALISMO PORTUGUÊS:Você tem duas vacas. E reclama porque seu rebanho nao cresce...
CAPITALISMO CHINÊS:Você tem duas vacas e 300 pessoas tirando leite delas. Você se gaba de ter pleno emprego e alta produtividade. E prende o ativista que divulgou os números.
CAPITALISMO HINDU:Você tem duas vacas. Ai de quem tocar nelas.
CAPITALISMO ARGENTINO:Você tem duas vacas. Você se esforça para ensinar as vacas mugirem em inglês. As vacas morrem. Você entrega a carne delas para o churrasco de fim de ano do FMI.
CAPITALISMO BRASILEIRO:Você tem duas vacas. Uma delas é roubada. O governo cria a CCPV - Contribuição Compulsória pela Posse de Vaca. Um fiscal vem e te autua, porque embora você tenha recolhido a CCPV corretamente, o valor era pelo número de vacas presumidas e não pelo número de vacas reais. A Receita Federal, por meio de dados também presumidos do seu consumo de leite, queijo, sapatos de couro, botões, presumia que você tivesse 200 vacas e para se livrar da encrenca, você dá a vaca restante para o fiscal deixar ficar assim.

Lanço aqui, apenas para moçambicanos (cada um deve ter direito ao seu próprio gozo), o CONCURSO "CAPITALISMO MOÇAMBICANO", para premiar a melhor definição/exemplo para juntar às dos outros países.
O prémio e o juri hão de se arranjar.
Venham as vossas contribuições.
Não vale começar por "Você tem dois patos..."; já está muito visto e o respeitinho é uma coisa muito bonita.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

«O povo saiu da garrafa»

imagem "roubada" do blog de Carlos Serra

Fechado em casa a tentar acabar um artigo que já devia ter entregue, só pelo blog de Carlos Serra fiquei a saber de uma nova frase que corre em Maputo, acerca do motim/revolta/tumulto (conforme a perspectiva) de 5 de Fevereiro: «O povo saiu da garrafa!»

Numa pesquisa acerca da Lei da Família, tive oportunidade de estudar um pouco como «meter um homem na garrafa», a origem desta nova expressão. A razão para o fazer era que, assim, podia contornar o discurso politicamente correcto acerca do "género" (que toda a gente conhece por aqui) e chegar àquilo que as pessoas consideravam inaceitável no comportamento masculino.

Isto porque, quando um marido tem um comportamento considerado pouco próprio de um homem (entregar o salário todo em casa, não se meter em borgas ou com outras mulheres, deixar a mulher tomar as decisões, ajudar em casa, etc.), a sua família e vizinhos começam a especular que ele foi «metido na garrafa». Quer dizer, ele foi vítima de um feitiço para o submeter amorfamente à esposa, que foi misturado na comida ou enterrado na latrina dentro de uma garrafa - daí vindo o nome popular do feitiço e da suposta situação do homem.

In short, quem «está na garrafa» é considerado "pouco homem" e amorfamente submisso a quem não deveria ser, em resultado de uma acção ilícita de quem o domina.

Só ao «sair da garrafa», por decisão sua e através de um contra-feitiço, voltará a poder ser um homem digno e completo.

Parece-me que a metáfora expressa nesta nova frase que por aí corre é suficientemente clara e eloquente.

Dispensa mais comentários acerca da forma como a população interpretou e valorizou o 5 de Fevereiro, o seu antes e o seu depois.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Pesadelo (Sur)real

Suponho que a razão será uma notícia que li ontem:
Dois Rotweiller de um alto magistrado mataram o guarda da mansão e começaram a comê-lo, até seram abatidos pela polícia. Os populares que se juntaram tornaram-se ameaçadores, porque o dono dos animais demonstrava muito mais preocupação com a morte deles do que com a morte do homem.

Foi então isto que me deu para sonhar:

Para simplificar e porque quase todas as viaturas abrangidas seriam utilizadas em actividades económicas, o Governo decidiu baixar o preço de todo o gasóleo, em vez de o subsidiar aos chapas.

Sentindo-se lesadas no seu direito a subsídios e benesses, as classes médias e altas, possuidoras quase sempre de viaturas a gasolina de grande cilindrada, ocuparam as ruas em manifestação automóvel, brandindo jerrycans e lançando, em andamento, certeiras pedradas aos peões que nem dinheiro têm para uma bicicleta.

Pedestre que sou, fui atingido por uma senhora bem nutrida, que conduzia um Mercedes em contra-mão.

Ele há com cada pesadelo...

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Verdes sementes revolucionárias



Ontem, o oficioso jornal Noticias trazia de novo à primeira página a "Revolução Verde", com mais alguns dados para além da sua vertente bio-energética que comentei aqui, a partir de uma conferência de imprensa oficial.
Embora fosse declarado que os planos estão decididos, não foi adiantado em que consistem. Não obstante, foi destacada a organização doadora (Agra, uma respeitável organização internacional presidida por Kofi Annan e financiada pelas fundações Rockefeller e Gates) e duas outras áreas de actuação: fertilizantes e sementes melhoradas.
Aliás, como se pode ver no site da Agra, já há mais de um ano estão a ser financiadas, com um total de 328.495 USD, duas empresas moçambicanas que se pretendem dedicar a este último assunto - uma delas, curiosamente legalizada 3 meses depois de começar a receber subsídio e a outra sem qualquer referência na net.


O tema fertilizantes, certamente pertinente, é de momento um pouco sensível, depois de, na 2ª semana de Janeiro, ter sido manchete dos jornais o encerramento de uma fabriqueta de mistura de produtos químicos para adubos que funcionava em condições desumanas de segurança e vínculo laboral, sendo propriedade de pessoas que ocupam elevados cargos públicos. Abstenho-me de deitar mais lenha na fogueira.


Quanto às sementes melhoradas, permitam-me que partilhe convosco a eventual utilidade da minha experiência como antropólogo.

Por todo o mundo (à excepção, talvez, da rizicultura intensiva) os camponeses tomam um cuidado comum: cultivam ao mesmo tempo produtos diferentes, se possível em terrenos com características distintas e, para os produtos que são a sua base alimentar, com sementes diferentes. A diversidade pode ser tão grande como a que é ilustrada no início deste post.

A razão para isso não é, obviamente, preguiça nem preocupação de não interferir com a natureza, pois é mais difícil cultivar dessa forma e porque toda a agricultura é uma actividade de selecção e manipulação da natureza.

A razão é que dessa forma se podem precaver, com meios tecnológicos disponíveis e gratuitos, de pragas e incertezas climatéricas.Se estas ocorrerem, os camponeses aumentam a possibilidade de que parte dos diferentes produtos alimentares cultivados (e, dentro de cada um deles, parte das variedades de sementes que utilizaram) lhes resistam, não perdendo toda a colheita e salvaguardando-se da fome.

Não usam, assim, uma lógica de risco (que consiste em "pôr todos os ovos no mesmo cesto", decidindo apostar no resultado mais vantajoso, mesmo assumindo a possibilidade de grandes perdas), até porque perder toda a colheita pode representar a morte ou, pelo menos, a completa miséria.

Como que fazem um seguro a si próprios; usam uma lógica de precaução, em que abdicam de uma parte da maior rentabilidade possível mas minimizam as possíveis perdas, através de meios ao seu alcance. Não o fazem por serem estúpidos, mas precisamente porque não o são - e porque têm a experiência histórica não só de como se salvaguardarem, mas também de grandes campanhas que amiúde falharam e os deixaram sozinhos para resolverem os problemas que elas criaram.

Parece-me pertinente e urgente que, em vez de se encarar esta atitude camponesa como uma "mentalidade retrógrada", se pare para pensar e, eventualmente, aprender com elas antes de se deitar fogo à mata.

"Sementes melhoradas" podem, de facto (e dependendo de como forem melhoradas), aumentar a produtividade e a resistência a determinadas pragas e doenças.

Mas, por um lado, a tecnologia disponível, embora impressionante, não resolve tudo. Por outro lado, a especialização de uma planta segundo determinados critérios e objectivos fragiliza-a necessariamente segundo outros.

Então, para além da dependência do fabrico e atempada distribuição das sementes, e para além do sempre problemático controlo rigoroso da sua qualidade, um outro problema bem grave pode surgir:

Fragilidades das plantas a inesperadas variações climatéricas e pragas, exigindo o uso de pesticidas (com a falta de dinheiro para os comprar, a contaminação de solos/águas e os prováveis envenenamentos por sobredosagem que lhe estão associados) ou, simplesmente, provocando uma catástrofe alimentar por perda generalizada das colheitas. Ou seja, a dinamização da economia industrial e comercial, mas a dependência e a fome nos campos.

Isto, para não falar dos possíveis perigos decorrentes dos produtos trangénicos, tecnologia que, quase certamente, acabaria por ser utilizada mais tarde ou mais cedo, até pelo confortável campo de experimentação que África pode constituir para as transnacionais agro-alimentares.

Algo tem de facto que ser feito, não apenas para estimular e apoiar a produção agrícola e a segurança alimentar, mas também para fazer chegar às comunidades rurais os produtos básicos não-alimentares de que carecem.

Mas estou a pedir que se meçam os perigos e implicações reais antes que, num embevecimento modernizador e numa injustificada crença na infalibilidade tecnológica, as boas intenções provoquem uma catástrofe.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Crónicas dos Motins - 7

QUERIDO ANÓNIMO:

Um simpático Anónimo deixou escrita, nos comentários a "Crónicas dos Motins - 4", a pergunta

«Querias os comandos a defenderem-te?»

Parece-me que a pergunta e a resposta merecem ser afixadas em post:

«Não, até porque não precisava e porque o Regimento de Comandos já não existe desde que o Fernando Nogueira foi ministro da defesa.
Queria que os serviços diplomáticos do meu país não achassem normal que, por ser feriado em Portugal, não tivessem trabalho a fazer durante uma revolta que, na altura, estava em crescendo e era imprevisível nos seus possíveis desenvolvimentos.
Queria que cumprissem a sua missão ou que, pelo menos, fingissem importar-se com os cidadãos do seu país, para além desse outro fingimento de o MNE dizer que estamos todos bem sem o saberem, sem o terem procurado saber ou nos terem deixado informá-los da nossa situação. Tal como, na mesma altura, disse que não havia portugueses no Chade quando estavam lá 5.

Iam na mesma carrinha que nós 4 portugueses de idade respeitável que, mal tinham pisado Moçambique, foram logo levados para o Kruger Park. Seguia-se a Inhaca e ninguém lhes tinha sequer dito se ainda passariam no Hotel Rovuma ou iriam directos para o aeroporto. Quase não falavam inglês, sendo conduzidos por um sul-africano que não falava português e que, compreensivelmente, queria despachar o assunto e ir para casa. O Hotel pelo menos atendeu o telefone depois de uma hora de tentativas, mas nem lhes chegaram a telefonar de volta.
Como é que essas pessoas se teriam sentido, e o que é que lhes poderia ter acontecido, se não calhasse partilharmos o mesmo transporte?»

Motins, Censura e Media



Um interessantíssimo e completo relatório acerca da cobertura (e descobertura) mediática da revolta de dia 5/2, disponível aqui.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Receita da Semana para Homens



Com a devida vénia ao Cesto da Gávea, este cozinheiro impenitente plagia para vós, companheiros masculinos menos dados a essas coisas, a receita do bacalhau com broa.

Ingredientes:Esposa, bacalhau, espinafres, broa de milho,azeite,alho,cebola, batata e sal.

Modo de preparação:Meta a esposa na cozinha com os ingredientes e feche a porta.Espere duas horas e está pronto a ser servido.

Bom apetite.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Migrando

O Antropocoiso está em migração para este endereço.


Por enquanto, só os posts novos, tipo pai que vai à frente a abrir caminho. Virá depois a família de posts e artigos de arquivo, à medida que o tempo mo permita e que eu descubra como o fazer da forma mais indolor.

Até que tal aconteça, podem sempre ir matar saudades aqui.

Crónicas dos Motins - 6

QUERIDO M.N.E.

Escrevo este post com as reservas devidas a não ter visto a intervenção televisiva que vou comentar. Escrevo-o, mesmo assim, por me ter sido relatada por uma pessoa de toda a confiança e grande exactidão. Se incorrer nalguma imprecisão, desde já peço desculpas e que me corrijam.

Diz-me esse amigo que o Ministério dos Negócios Estrangeiros da nossa República declarou na televisão que acompanhou de perto os acontecimentos da passada 3ª feira, em Maputo, e que todos os cidadãos portugueses estão bem.

Chamando a vossa atenção para o post «Crónicas dos Motins - 4», mais em baixo, gostaria de colocar duas perguntas ao nosso querido M.N.E. :

1 - Qual a forma que escolheu para acompanhar de perto os acontecimentos, se aparentemente não estava ninguém no Consulado e, da Embaixada, o aparente porteiro dizia que não estava lá mais ninguém?

2 - Como é que sabe que todos os cidadãos portugueses estão bem, se eles não tinham, 3ª feira, ninguém a quem declarar a sua presença em Maputo e a sua situação? Confia o M.N.E. na velha máxima de que as más notícias se sabem depressa?

post scriptum: pode ser (e desejo) que todos os cidadãos portugueses cá no burgo estejam hoje bem. Terça-feira, ajudei a tratar um compatriota que, a meio metro de mim, foi apedrejado nas costas e ficou com cortes de vidro no rosto e pescoço. Não é, felizmente, caso de morte, mas merece um pouco menos de ligeireza por parte das nossas autoridades.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

«It's the economy, stupid» ?



in Savana, 1/2/2008



Como não sou grande fã dos suplementos económicos, só agora dei com este artigo, ao separar as folhas de jornal que quero guardar e aquelas que servirão para acender o carvão para os grelhados.


Será que, afinal, «It's the economy, stupid!» ?



Adiatamento em 17/2: talvez este dado também seja relevante.

Imagine all the people

in Zambeze, 7/2/2008


Só para perceberem um pouco melhor o mal-estar e raiva do povão daqui:

Imaginem que Portugal tem um regime presidencialista e que o Belmiro substituiu o Amorim como Presidente da República, ambos indicados pelo seu partido ex-comunista reconvertido ao hiper-liberalismo, mas que mantém a retórica de outros tempos.

Imaginem que os Espíritos Santos, Jardins Gonçalves, Santos Silvas e quejandos são ou foram ministros e, tal como os presidentes, enriqueceram quando já eram políticos.

Imaginem que, dos dois ricaços que não são políticos, vocês estão convencidos que um deles é sócio do ex-presidente, enquanto ouviram o outro dizer na televisão, há um par de anos e enquanto académico, que não se pode investigar a sério a corrupção, porque as prisões têm condições demasiado más para se prenderem lá pessoas desse estatuto social.

Agora, imaginem que ganham 40 Euros por mês.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Crónicas dos Motins - 5

ALGUNS FACTOS

foto Savana, 8/2/2008

Terça-feira, ouvi todo o tipo de disparos na estrada da portagem: lançadores de gás lacrimogéneo, caçadeiras de grande calibre, pistolas, kalashnikovs tiro a tiro e em rajada. Um casal inglês que foi apedrejado e se refugiou no mesmo condomínio vinha chocado por ver a polícia disparar balas reais «randomly» (aleatoriamente, indiscriminadamente) sobre as sebes que bordejam a estrada, atrás das quais se acoitavam ao molho homens, mulheres e crianças que eles nem sequer conseguiam ver. Um amigo meu entrou em Maputo numa coluna rodeada por viaturas da polícia que disparavam as suas armas (bem reais) para as bermas da estrada.

Uma bala de borracha não se parece em nada com uma bala real, tal como não se parecm as armas que as disparam. Uma bala de borracha é muitíssimo maior, em diâmetro e em comprimento, e não pode ser disparada por uma espingarda, pistola-metralhadora ou fuzil de assalto.

As fotos dos jornais, quase todas tiradas por detrás da polícia pois fotógrafo também tem medo, mostram as forças policiais, fardadas ou à paisana (sem margem para dúvidas, pois nesse caso estão a prender pessoas), armadas de kalashnikovs, pistolas e, pontualmente, um ou outro deles com uma arma capaz de disparar granadas de gás lacrimogémeo e/ou balas de borracha.

Quarta-feira, um dos canais de televisão mostrou uma intervenção de viaturas da polícia no Machaquene, disparando para as bermas e baleando uma pessoa junto dos repórteres.

Quinta-feira, imediatamente depois de o canal estatal de televisão apresentar uma peça em que o Hospital Central de Maputo declarou ter tratado 78 pessoas feridas por balas reais, e em que um par delas foram entrevistadas, o comandante nacional da polícia reafirmou em estúdio que as forças sob o seu comando só dispararam gás lacrimogéneo e balas de borracha.

Crónicas dos Motins - 1

UMA PEQUENA AVENTURA

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Antes de mais, descansem que estamos bem!

Aproveitámos este fim-de-semana alargado (não pelo Carnaval, mas pelo Dia do Herói Moçambicano) para dar um salto à África do Sul, em cumprimento das exigências do peculiar Visto que nos obriga a sair do país de tanto em tanto tempo.

Terça-feira, lá regressou a minha família num transfer do Kruger Park, junto com o respectivo condutor e 4 simpáticos turistas portugueses. Atravessámos a fronteira pelas 10h30m, mas nenhuma autoridade nos avisou de qualquer acontecimento anormal - como, por exemplo, os tumultos que desde as 7 da manhã estavam a virar Maputo do avesso.

E a verdade é que chegámos à portagem da Matola sem nada vermos de estranho senão uns polícias que, para os lados da Casa Branca, pareciam estar a chatear algum vendedor de pneus que não pagara "refresco".

Mas a portagem estava fechada. Sobre a cidade, viam-se várias colunas de fumo. Pensámos primeiro num incêndio, embora fosse estranho que estivesse a ocorrer ao mesmo tempo em zonas tão afastadas. Ficámos a saber o que se passava quando telefonei para a senhora que nos ficara com a cadela, a avisar que a iríamos buscar mais tarde do que o previsto.

- Ai, doutor! Nem pense em vir! Estão a fazer greve por causa do aumento dos "chapas" e não deixam os carros passar, na cidade toda. Aqui, já queimaram carros e no Alto Maé um rapaz levou um tiro e não se sabe se vai conseguir viver.

Com o "garrafão" da portagem cada vez mais cheio, lá convencemos o condutor a recuar para a estação de serviço mais próxima. Volta para trás, regressa para a frente, e a zona continuava a parecer calma. Também o posto de gasolina parecia calmo, pelo menos até os 3 seguranças privados que lá estavam evacuarem precipitadamente o dinheiro da caixa...

Por sugestão da Marta, tinha entretanto tentado telefonar, sem sucesso, para uns amigos que moram ali perto, num condomínio mais ou menos seguro. Quando finalmente consegui resposta e declaração de boas vindas, o pessoal concordou em procurar lá abrigo.

Foi uma decisão acertada. Uma hora depois, essa mesma estação de serviço teve que ser ocupada pela tropa. E um amigo que preferiu ir em frente, através daquilo que na altura era uma estrada coalhada de carros imobilizados, chegou a casa com dois pneus rebentados à pedrada(!), embora tivesse passado as barricadas numa coluna rodeada de carros da polícia que disparavam gás lacrimogéneo, espingardas e kalashs indiscriminadamente para as bermas.

Nós regressámos, afinal, por onde já tinhamos passado duas vezes na última meia-hora, sem nada ver de ameaçador. Desta vez, um grupo de mulheres começou a gesticular na outra faixa e, antes de percebermos se aquilo era amigável, gozão ou hostil, vimos um pneu a arder no meio da nossa faixa e entrou-nos um pedregulho por um vidro dentro.

- Deitem-se! Ninguém está ferido?

(Ou, na primeira frase solta pela Marta, «Everybody lie down!»)

Sim, um dos portugueses estava ferido, mas não era grave. As pedras continuavam a cair mas, felizmente, apenas acertavam na chapa e o condutor manteve a velocidade e o controlo do carro, ao contornar os pneus em chamas.

Chegados ao cruzamento, lá conseguimos dar as voltas necessárias para chegar ao portão certo e convencer o segurança a deixar-nos entrar.

Já dentro, ficámos um bocado aparvalhados - eu, um pouco menos, pois tinha andado entretanto a servir de scout pedestre, por o primeiro portão do condomínio estar fechado. Cada um viu se estava mesmo bem, a minha filha chorou por fim um pouco, surpreendentemente pouco, e não estávamos à espera de mais do que a relativa segurança daqueles muros.

Era não contar com a hospitalidade e solidariedade da esposa do meu amigo (que por acaso tinha voado em trabalho nesse dia), que a todos abriu as portas de casa e todos tomou à sua guarda.

Pouco depois, acompanhando as notícias que davam conta da dimensão dos tumultos e ouvindo a confusão ali mesmo ao lado, já torneávamos eventuais preocupações com a precaridade da nossa segurança comentando (aqueles que os conheciam), os ruídos que nos chegavam.

- Olha: agora já não é gás lacrimogéneo e caçadeiras. São tiros de pistola.

- Ah! Agora são rajadas de kalashnikov!

Antes do jantar, já a nossa anfitriã (apoiada pela Marta, que durante umas horas falava inglês com os moçambicanos e português com os sul-africanos) tinha conseguido o impossível: camas para aquela gente toda, na sua casa e em mais duas. O que tinha começado como uma experiência assustadora e bem perigosa começou a parecer-se (apesar do perigo iminente que continuava a existir) com um contratempo relativamente pouco desconfortável.

Pela hora de jantar, os restantes telejornais trataram extensivamente o que se estava a passar. A estatal TVM gastou uns 90% do tempo a falar das ultrapassadas cheias do Zambeze.

A meio da noite, soubémos que as novas tarifas de transporte tinham sido suspensas.

Quarta-feira, com os tumultos também suspensos, voltámos a casa, fazendo slalong entre os restos de pneus, blocos de cimento arrancados sabe-se lá de onde e bocados de árvores que continuavam no meio das ruas. Em frente ao mercado de Malanga, as vendedoras varriam a estrada, para recriar um ar de normalidade que atraísse clientes.

Olhando para as pessoas nesse dia, nada parecia ter acontecido - a não ser por não se verem chapas em circulação e por, aqui e ali, alguns homens meio esfarrapados terem uma expressão de dignidade pouco habitual, os comerciantes paquistaneses tratarem de forma menos brusca os seus empregados e os condutores cumprirem as regras de trânsito.

Maputo era uma cidade bem mais simpática, nesse dia, do que costuma ser.

Crónicas dos motins - 2

ESTAVA ESCRITO

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in Savana, 1/2/2008

Não seria preciso ser profeta ou adivinho para dizer aquilo que ficou escrito, 5 dias antes dos acontecimentos, no penúltimo parágrafo do Editorial do jornal Savana.

A única surpresa possível será que os tumultos fossem tão virulentos e generalizados e que, numa população que já aguentou tanta coisa e continua a aguentar tanta mais, rebentassem logo no dia de entrada em vigor das novas tarifas dos "chapas".

Que é isso de "chapas" (oficialmente, "transportes semi-colectivos")? São velhas carrinhas de 9 lugares (ver foto no próximo post), recondicionadas para amontoarem 19 pessoas sentadas, para além daquelas que tenham suficiente pressa para seguir meias de pé, meias dobradas, com o rabo virado para a cara de outros passageiros ou saindo alegremente pela janela.

Porque é que as pessoas os usam? Porque a companhia pública de transportes tem 40 machimbombos (autocarros) a cair de podres para toda a cidade de Maputo, que ultrapassa largamente o milhão de habitantes.

Um percurso de chapa custa, na cidade, 5 ou 7,5 Meticais (cerca de 15 ou 22 cêntimos de Euro), conforme a distância. Para complicar a questão, algumas pessoas têm que usar dois percursos de chapa para o seu destino e, desde há uns tempos, os "chapeiros" descobriram um novo truque: fazem apenas parte do seu percurso e os passageiros são obrigados a transbordos e a pagar em cada um dos chapas.

Podemos contudo dizer que alguém com a sorte de usar apenas um chapa para o trabalho ou a escola gastará 210 ou 315 Meticais (6 ou 9 Euros). Não parece muito, mas o salário mínimo são 1.400 Meticais (40 Euros), há muito boa gente que só ganha 1.000 ou 800, e um saco de arroz custa mais de 500 Meticais.Os aumentos decididos pelo governo (lógicos, numa perspectiva economicista, dado o aumento dos combustíveis) são de 50% para os percursos mais curtos e de 33,3% para os mais longos.

Should I say more?

Talvez "I should", mas seria muito longo. Porque, temo bem, o problema não são apenas os chapas, mas uma vida que se torna cada vez mais insustentável, uma ausência de alternativas futuras e um sentimento de que, por parte de quem manda e de quem possui (alguma coisa, ou escandalosamente muito), apenas se é objecto de desprezo e de indiferença pela situação em que se vive.


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Noticias, 2/2/2008

Quanto às causas da fúria popular, não será, talvez, preciso cavar muito fundo.

É o custo de vida que sobe, os salários que não aumentam ou descem, a necessidade de mobilizar a criatividade de toda a família - trabalhando os que conseguem, biscatando outros, vendendo qualquer coisa uns terceiros, numa cidade em que meio mundo anda a vender coisas ao outro meio, em porções cada vez menores - para chegar a um mínimo de subsistência que qualquer aumento como este põe em causa.

É o obsceno grau de diferença no acesso à riqueza e a sua ostentação.

É - pondo por outras palavras aquelas que o editorialista deixou escritas - o sentimento de um Estado padrasto que abandonou os seus filhos ao desenrasca perante as leis de um mercado que não existe, numa economia que tão pouco existe fora do "informal", do comércio e dos bons (ou óptimos) empregos a que não têm acesso, e em que os decisores políticos são os maiores patrões e fortunas, tendo aí chegado por já serem políticos quando decidiram privatizações e o dinheiro começou a chover do exterior.

Isto explica tudo? Uma grande parte.

Isto justifica o que aconteceu? Em grande parte.

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Savana, 1/2/2008

Que fique claro: não gosto mesmo nada de levar pedradas e não sei que reacções teria, caso a minha filha tivesse sido ferida com gravidade.

É também evidente que, para parar o trânsito na cidade, os manifestantes poderiam fazer barricadas intransponíveis, em vez de alguns pneus a arder, por onde os carros podiam tentar fugir e ser atacados. O seu objectivo (parar a cidade) não tornava necessário o ataque às viaturas e aos seus ocupantes.

Aqui, há uma outra vertente, nada simpática ou aceitável, mas compreensível: a raiva e vingança para com quem tem muito mais, parece achar natural tê-lo e os outros não, e não põe a hipótese de o perder.

Mas o tumulto que parasse a cidade, esse, temo bem que fosse, infelizmente, a única forma de as suas queixas serem seriamente ouvidas.

Alguém me disse em Moçambique, no ano passado: «Com isto da democracia, podemos dizer o que queremos. Mas ninguém liga ao que dizemos.»

É uma frase que poderíamos bem ouvir em Portugal e que, em parte, se pode aplicar à maioria dos países onde há, pelo menos, um mínimo de liberdade de expressão. Mas há por cá algumas particularidades que tornam a situação diferente em natureza/qualidade e não apenas em grau/quantidade.

Não me saem da cabeça, acerca disso, 3 artigos de um número da Análise Social acerca de Moçambique, que tenho vindo a editar e sairá em meados do ano.

Num deles, João Pereira mostra como as vitórias eleitorais do partido que está no poder desde a independência nada têm a ver com um bom desempenho económico da governação (que só o presidente do Banco Mundial parece ver, conforme reafirmou na véspera dos tumultos) mas, fundamentalmente, com a incerteza e medo daquilo que poderia ser a acção governativa da única força política que - infelizmente, digo eu - poderia constituir uma alternativa: a mesma Renamo que foi o brutal inimigo do governo durante a guerra civil.

Ou seja, governa-se pressupondo que, faça-se o que se faça, o medo e a memória dos eleitores tradicionais garantirão que o poder seja mantido.

Noutro artigo, Jason Sumich cita uma sua amiga, filha das actuais elites politico-economico-sociais, num discurso que parece saído da boca de um(a) qualquer herdeiro(a) de grandes colonos de outros tempos: «Há aqui uma grande diferença que não creio que compreendas. Passas o teu tempo com pessoas como nós, que somos educados e ocidentalizados. Aqueles de entre nós que são privilegiados têm gostos e desejos que são muito diferentes dos restantes. É realmente uma questão de interesses. A maioria das pessoas neste país são camponeses, têm uma machamba e ficam satisfeitos com isso. Não precisam realmente de educação ou de mais e, de facto, não o querem. Muitas pessoas deste país não estão interessadas. Querem que as deixem em paz para cultivarem as suas machambas. Somos nós, os privilegiados, que queremos e precisamos das outras coisas.»

Ou seja, as grandes elites económicas e políticas, que em geral são uma mesma e única coisa, parecem achar que os "pretos atrasados" não querem nem precisam de grande coisa, apenas que os deixem fazer a sua vidinha como puderem - e que, portanto, nada lhes é em última instância devido.

No terceiro artigo que não me sai da cabeça, Harry West mostra como, numa zona do país mítica para a Frelimo e para a luta de Libertação Nacional, o facto de os dirigentes políticos não se limitarem a «comer mais» (direito que lhes é popularmente reconhecido), mas «comerem sozinhos» à custa da fome de todos os outros, é traduzido em acusações de feitiçaria maléfica e canibal - ao contrário da feitiçaria em benefício e protecção de todos, que é sua obrigação e legitimaria a sua posição de poder.

Em suma, as pessoas têm boas razões para pensar, com base na sua experiência empírica, que o "pai" não protege os "filhos" nem sente responsabilidades relativamente a eles, e que meras queixas e lamúrias não seriam mais ouvidas do que todas as anteriores.

As pessoas fartam-se.

E, quando outros meios lhes são negados para, dizendo o que querem, ser ouvido o que dizem, só lhes restam estas tristes soluções - por muito que tal nos possa doer no espírito, no corpo ou na propriedade.

Crónicas dos Motins - 3

MULHERES "DE ARMAS"

um "chapa", pomo da discórdia (foto Savana)

Vi-me ontem no meio de mulheres "de armas":

Antes de mais (com um enorme obrigado) a nossa amiga, que nos acolheu a nós e a mais 4 turistas e 1 condutor que não conhecia de lado nenhum, procurando e arranjando, com uma espantosa eficácia e sempre discreta, alojamento para essa pequena multidão (entretanto acrescida do pai de outro amigo seu), na sua casa e nas casas limítrofes.

Depois, a minha mulher, normalmente nervosa e preocupada em relação a possíveis perigos mas que, face ao perigo bem real, muito contribuiu para a calma dos outros e, depois disso, foi o também discreto e eficaz lugar-tenente da nossa anfitriã.

Por fim (e suscitando ainda mais a minha admiração), a minha filha. Sob as pedradas, disse-me muito baixinho «Pai, tenho medo», mas continuou a seguir atentamente as minhas instruções. Chegados a relativa segurança, um pequeno chorinho de descompressão - espantosamente curto, para uma criança tão nova. Depois disso, um integrar descomplexado e verbalisado do que acontecera e uma naturalidade que, também ela, muito contribuiu para a calma e boa disposição de todos.

Tenho, de facto, sorte com as mulheres que me rodeiam!

Crónicas dos Motins - 4

UM LUSO FACTO

Aos cidadãos portugueses que ontem , no meio dos motins, quisessem reportar às autoridades diplomáticas a sua presença em Maputo, o seu paradeiro e situação, ou mesmo pedir ajuda, ninguém respondia no telefone do Consulado.

No telefone da Embaixada, respondia um senhor dizendo que «é feriado na Embaixada» e, para além disso «há problemas na rua»; «telefone amanhã» porque «hoje não está ninguém».

Tentei que tomasse nota dos nomes e paradeiro dos 7 cidadãos portugueses que faziam parte do meu grupo, esclarecendo que tinhamos sido atacados e havia um ferido ligeiro. Recusou, mandou-me de novo telefonar no dia seguinte e, quando tentei insistir para que apenas assentasse esses dados num papel, desligou-me o telefone na cara.