domingo, 28 de setembro de 2008

Citações de café (14)

CAIPIRICES GASTRONÓMICAS

Como as restantes citações de café, esta também aconteceu mesmo. Foi com uma outra vizinha brasileira, que desabafa ter precisado de chegar aqui para fazer "figura de caipira".

Era o primeiro dia de trabalho, no primeiro emprego em Portugal, ao balcão de um café.
Chega o primeiro cliente, falando carrancudo ao telemóvel, e aponta para a máquina das bicas e para a prateleira onde, entre outros, estavam os queques.

- O senhor quer uma queca, é? É para comer já, ou mais tarde?

O homem carrancudo conseguiu esboçar um sorriso malandro e respondeu:

- Bem... Agora eu tenho que ir trabalhar. A que horas é que a menina sai?

Anedota brasileira sobre brasileiros

Estava eu em Maputo, quando se deu um assalto com sequestro, numa dependência do Banco Espírito Santo em Lisboa.
Os assaltantes acabaram por ser mortos pela polícia (o que deixou ufanos os humanistas securitários cá do burgo) e foi dado grande destaque ao facto de eles serem brasileiros, o que deu origem a uma histeria mediática sobre criminalidade, com traços xenófobos bastante evidentes.

Entretanto, depois de o incontornável Luís Afonso do Bartoon ter especulado acerca das razões do assalto, os meus vizinhos brasileiros descobriram toda a verdade:

O sujeito estava a dar-se muito mal na sua experiência de emigração em Portugal e telefonou para a mãe, senhora muito devota, a contar-lhe as suas mágoas.
Depois de ouvir o longo desabafo do filho, ela aconselhou:
- Meu filho: quando a vida fica assim, só o Espírito Santo salva.
Vai daí...

sábado, 27 de setembro de 2008

Faleceu 2º classificado em Le Mans 1979


Faleceu hoje, vítima de cancro, um dos pilotos que ficaram em 2º lugar nas 24 Horas de Le Mans 1979.
Se calhar, vocês até o reconhecem de outros lados, se vos mostrar esta fotografia.

Pela minha parte, preferia as vezes em que lhe podia ver a cara e ouvir a voz.
E isso, felizmente, podemos continuar a fazer.

Por exemplo, aqui.

Ou aqui.

Ou...

Quanto custaram por bico?

Numa mediática mega-operação policial do SEF, PSP e GNR, levada a cabo no distrito de Setúbal e nas regiões fronteiriças de Vilar Formoso, Caia e Castro Marim, as forças policiais identificaram 198 estrangeiros e detiveram 11.
Não pela prática desses crimes a que as TVs e jornais tanta atenção têm dado nos últimos tempos, mas por permanência ilegal no país.

Quanto terá custado, "por bico", a detenção de cada um destes perigosos marginais?

La Fuerza del Cambio

Segundo o semanário Sol (o tal jornal que é distribuído gratuitamente, anexo a um DVD de desenhos animados que só custa 2,5 euros), Sócrates copiou Zapatero, ao adoptar o lema do Congresso do PSOE realizado em Julho, "La Fuerza del Cambio".

Tendo em conta que "A Força da Mudança" foi o slogan de Guebuza e da Frelimo nas eleições moçambicanas de 2005, fica provada uma nova teoria geográfica que tem vindo a fazer escola entre os melhores cientistas:

O mundo é, afinal, em forma de talhada de uma meia laranja, indo desde os montes Urais, a leste, à costa do Pacífico, a Oeste.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Antropovistas actualizado de novo

Mais umas fotos no Antropovistas.

Obrigado Júlia, António e Pedro.

Quanto aos outros, já sabem: mandem as vossas para antropocoiso@gmail.com

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Mbeki e Mugabe

- Bem, já está feito. O Presidente Mbeki concordou voluntariamente abandonar o poder.

- Já não era sem tempo. Algumas pessoas não conseguem perceber quando a festa acabou.

- Mais alguma coisa, Presidente Mugabe?

- Se precisar, eu digo.

(O Madam & Eve de hoje)

Defesa da tradição

Esta já está no Arrastão, mas não resisti.

Um tribunal siciliano retirou a uma mulher a custódia do seu filho de 16 anos porque o menor se filiou no Partido da Refundação Comunista, que o juíz considera «extremista».

E então? Não percebem que se trata de um juiz com profundo sentido antropológico?

Então o homem ia deixar perder as tradições? Em vez de o puto ir para a Máfia, ia agora para os comunas?


PS à Asterix na Córsega - ó pessoal da Sicília: olhem que estou a brincar... Não te chateies, Maximo Bongiorno.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Depressão pós-África

Embora Maputo seja a cidade onde vivi que tem amplitudes térmicas mais violentas (por vezes de mistura com sucessões um bocado aleatórias de chuva, céu encoberto e sol de rachar), e embora o tempo em Lisboa até esteja bonzinho, consegui apanhar uma constipação/virose de caixão à cova, pouco depois de pôr o pé nesta pátria madrasta. E a coisa dura, dura, dura, como os coelhinhos do anúncio.

Para ajudar ao inestético e ao desconforto de um nariz pingão e de uns olhos e testa que parecem querer ir passear para outro sítio qualquer, a montanha de apontamentos e cassetes de terreno, aqui ao lado mesmo a chamarem por mim, dão uma vontade de tratar das sempre necessárias burocracias académicas e pessoais que vocês nem imaginam!

Agarrado a esses assuntos, que me levam 5 vezes mais tempo por causa dos olhos que se cansam e das desconcentradoras assoadelas, já nem queria nada de muito especial.
Dava-me por satisfeito em fazer uma paradinha, descer a pé a Kenneth Kaunda, olhar a baía e voltar a enfiar-me no computador.

A minha senhora também teve uma virose dessas, mas é de melhor cêpa. Livrou-se depressa da coisa. Agora, limita-se a andar irritável e com um ar claustrofóbico, numa casa 3 vezes maior que a de Maputo.

A filhosca, que tem otites em todo o lado menos em Moçambique, voltou ao normal. E, apesar da alegria de ver a prima e de gostar desta escola, já me perguntou, assim como quem fala de um direito adquirido e da forma evidente de se viver, em que mês é que, para o ano, voltamos para África.

A cadela passa os dias enroscada, lançando-me olhares acusadores acerca de uma temperatura que até está amena, e faz cenas intermináveis para evitar ir ao passeio higiénico no meio de carros barulhentos - embora, lá chegada, seja tomada de urgências e logo faça aparecer um rio na primeira valeta.

Pesquisei na net "Depressão pós-África", mas parece que os inúteis dos psicólogos só se dedicam a coisas pouco importantes.
Esqueceram-se de inventar esta.

domingo, 21 de setembro de 2008

Portugal moçambicaniza-se (III)

A FORÇA DA MUDANÇA

Perguntava-me um leitor anónimo, certamente moçambicano, se era verdade que o actual slogan do PS, em Portugal, era mesmo "A Força da Mudança".

É verdade e (tinha eu escrito na caixa de comentários, até ver que a coisa estava a ficar demasiado comprida) isso tem uma história. Uma história nem sempre clara quando é olhada a partir de África e que talvez mereça ser relembrada aqui.

Nos países da Europa onde a social-democracia tem uma acção muito antiga (o que não é o caso de Portugal, onde tão pouco acontece aquilo que direi a seguir), ela era marcada até há uns tempos por uma tradição de regulação estatal da economia, tendo em vista alguma equidade social, a par de uma posição de liberalidade societal em termos da mudança dos costumes.
Quase caricaturando, era como que o seu código genético e identitário, por contraposição a um outro grande partido normalmente existente nesses países, que era por sua vez defensor de um maior conservadorismo social e dos costumes e de uma economia liberal.

(Tudo isto é, claro, relativo, pois um conservador holandês está normalmente à esquerda de um socialista português em grande parte das matérias políticas relevantes para a vida das pessoas, da mesma forma que um republicano da Nova Inglaterra costuma estar à esquerda de um democrata do Texas.)

Há muito que a questão tinha deixado de ser, para a social-democracia europeia, a via de superação do capitalismo (reforma ou revolução), que tinha levado à cisão entre a 2ª e a 3ª Internacionais.
A questão, desde pouco depois disso, passou a ser a gestão mais justa e equitativa do capitalismo. Se quisermos, e passe a metáfora, um "capitalismo de rosto humano".
Era essa a sua tentativa de prática, o seu legado e a sua imagem.

No entanto, com a teorização da chamada "Terceira Via" (de que o inglês Tony Blair se tornou o governante mais evidente), os partidos social-democratas sofreram uma "mutação genética" que os ajudou a aproximarem-se do poder em tempos de maré conservadora e, por sua vez, deixou os conservadores com um problema de falta de espaço político para resolverem, e deixou os países respectivos sem grandes partidos de esquerda.
Basicamente, os "novos" partidos social-democratas mantiveram posições progressistas na área dos costumes e relações societais, mas adoptaram uma política económica que, em vários aspectos, é mais liberal do que os conservadores se atreveram a fazer e exigir, pondo inclusivamente em causa instituições e pressupostos que se tinham tornado marcas civilizacionais da Europa Ocidental - devido, entre outros, á luta e acção das gerações anteriores de sociais-democratas.

É claro que, quando as mudanças políticas são tão fortes e nessa direcção, não adianta escamoteá-las. Mesmo se não fossem (que eram) argumentos eleitorais para cativar essa figura fantasmagórica do "eleitorado de centro", seria sempre necessário enfatizá-las e transmiti-las como uma corajosa mudança da sociedade, para que ela não entre em colapso.
Afinal, onde existiu ou existe, o "estado social" começou a ser morto por conservadores, mas são "terceira-viistas" com label social-democrata que avançam com o seu enterro.

Portugal nunca foi governado segundo uma política social-democrata "à europeia", nem alguma vez teve um estado social.
E a própria retórica e prática terceira-viista chegou à governação quando não era eleitoralmente necessária para que o PS a ocupasse. Foi mais uma questão de ser a esquerda da moda, "maningue moderna", por parte de um dirigente sem cultura de esquerda (social-democrata ou outra), chegado ao leme de um partido que estava desesperado por voltar ao poder. Foi a aplicação de uma receita que tinha resultado eleitoralmente noutros lados, não fosse dar-se o caso de Santana Lopes conseguir ressuscitar durante a campanha eleitoral.

Mas, quando depois as coisas não correm por aí além, mais necessário se torna apresentar a mudança de orientação política (em vários aspectos, Cavaco Silva governou, no seu tempo, "à esquerda" do actual governo) como uma necessidade e desígnio nacional, que corajosamente é prosseguida, se necessário contra tudo e contra todos, por quem "tem tomates" para isso.
Daí, agora, "A Força da Mudança".

O anónimo moçambicano que suscitou este post ter-se-à apercebido de alguns paralelos engraçados com o seu país.
Mas a situação parece-me muito diferente.

Quando a Frelimo aplicou o slogan d'A Força da Mudança, em 2005, a sua passagem de partido marxista-leninista para executor de políticas ultra-liberais já tinha sido paulatinamente feita desde o fim da guerra civil, 13 anos antes, pelo anterior Presidente da República.
Não era essa curva a 180º que se tornava necessário justificar, mas as mais-valias que iriam advir da substituição do presidente por uma figura à partida difícil de "vender": um político cuja imagem popular estava centrada no seu cargo de Ministro do Interior durante uma das épocas mais repressivas da história pós-independência.

Não será por acaso que (numa altura em que a Renamo não parecia ter ainda entrado num processo de suicídio colectivo ordenado pelo chefe), a Mudança anunciada era muito mais pôr "ordem na tasca", através do «combate ao espírito do deixa-andar», do que a visão do partido como motor de uma "revolução permanente", ligada ao «combate à pobreza absoluta».
Não só a «força da mudança» vinha de um "homem de combate", como vinha de um "homem de tomates" que iria pôr na ordem os interesses instalados, no seu próprio partido, que mantinham o país na desgraça.
Ou seja, aquilo que podia fazer os eleitores terem medo de Guebuza, e por isso afastarem-se dele, foi muito habilmente transformado na prova de que ele era o homem providencial, para aquilo que o país necessitava naquele momento.

É claro que estas coisas não resultam sempre, nem para sempre.
Duvido que o slogan agora adoptado por Sócrates não seja visto como ridículo, e já há largos tempos não se fala em Moçambique do «combate ao espírito do deixa-andar».
Mas talvez nem seja necessário.
Afinal, tudo indica que quer o PS quer a Frelimo vão voltar a ganhar, basicamente, por "falta de comparência" credível dos adversários directos.
(Ao fim e ao cabo, mais um paralelo, para além do discurso subliminar acerca de "tomates".)

Mas lá que é plágio, é.
Às tantas, ainda os publicitários que "venderam" à Frelimo o slogan de 2005 vão acabar por apresentar uma facturinha ao nosso primeiro.

Volun-turis-puta-que-pariu

Volta e meia, recebo um e-mail de uma menina desconhecida (a mim, calham-me meninas, mas já vi em Moçambique que isso não é obrigatório) que vai ter A experiência da sua vida.
Vai para um daqueles pontos de Moçambique especializados em intervenções de ONGs, fazer uns 2 meses de voluntariado e conhecer a desgraça, tutelada por uma instituição religiosa qualquer ou por uma daquelas organizações não lucrativas, excepto para quem está lá empregado em postos superiores.

Quando me contactam, é porque querem aproveitar a coisa para fazerem uma tese, normalmente de mestrado, acerca de um tema grandiloquente que por vezes não é relevante lá no sítio e para o qual não terão tempo de terreno (e terão excesso de enquadramento institucional) para o conseguirem abordar para além dos estereotipos estabelecidos.

Como até percebo que as moçoilas são bem intencionadas e até sei que 95% dos tais de católicos progressistas do marcelismo se descobriram como tal enquanto faziam inquéritos às condições nos bairros de barracas, sou sempre muito afável (as boas intenções tocam-me sempre, até ao momento em que começam a matar gente) e prestável.
Dou tantas dicas quanto possível e, se me falam de temas de mestrado, sugiro normalmente que usem como objecto de estudo a organização em que se vão integrar e as lógicas e dinâmicas do seu trabalho. Assim a modos que uma cena auto-reflexiva, estão a topar?
Mas, até hoje, sem sucesso.

Entretanto, também hoje, pela primeira vez comprei o semanário Sol, desde aquele nº1 que toda a gente comprou. A razão foi nobre: davam um DVD infantil que ficava por 2,5 Euros e trazia anexado um jornal à borla.
Vinha no pacote, também, uma revista de nome Gingko, assim tipo new-age-com-ar-de-ser-para-ricos que parece ter como público alvo os desgraçados como nós que queiram ser aspirantes a snobs e "possidónios" (julgo que ainda é esta a palavra utilizada pelos bimbos que já nasceram ricos).

A minha senhora folheou-a, engasgou-se, ficou azul à riscas e eu, depois de lhe dar uma palmadinha nas costas e um copo de água, fui ver o que é que estava na tão mortífera página.

Era então um artigo sobre "volunturismo", a forma de férias que se quer afirmar como in, já que (diz de caras no site simpaticamente fornecido, mas um pouco mais embrulhado na versão impressa), «ressorts de luxo e férias de papo para o ar estão fora de moda».

Mas o que é que havia aí para a gente se engasgar?
Pronto, está bem, esta da solidariedade se tornar uma «moda» de pessoal que se quer "bem" (e que a recusa em termos de impostos, saúde, educação ou dessa abusação do rendimento mínimo) é um bocado obscena.
Mas, que raio, até está bem no centro da tradição caritativa cristã. E eu, que andei 3 ou 4 anos a fazer de otário, dando cadeiras à borla na Universidade Eduardo Mondlane e grangeando com isso desrespeitos e inimizades, não tinha muito de que me rir.

Comecei então a ler o corpo do artigo, que começava com a história volunturística de uma menina cujo nome ocultarei para sua defesa futura, embora ela própria não o tenha feito.
E a primeira frase era: «Lembra-se de, em pequena, com cinco ou seis anos, brincar aos pobres.»

O seguimento até tinha piada, porque a cachopa andou a prestar uns serviços à conta de umas tais de Irmãs Escravas, nome que suscitava algumas expectativas de escandaleira sado-masoquista. Seguia-se a desilusão, pois é apenas uma cena de freiras cacimbadas.

Mas, voltando à vaca fria: A gente até se habitua a ver porcos a andar de bicicleta. Mas aquela primeira frase...
Brincar aos pobres? Vocês conhecem alguém que tenha «brincado aos pobres»?

Eh, pá! Façam lá as férias da moda.
Mas, de preferência, não se entusiasmem muito, para não deixarem as coisas pior do que as encontraram.

Voltem a brincar aos pobres, como aquela célebre Madre que não pôde abrir um hospital para sem-abrigos em Nova Iorque, porque se recusou a manter o obrigatório elevador do prédio, pouco consentâneo com a ética de sacrifício que se impunha a si, às suas seguidoras e aos doentes que lhes caíssem nas mãos.
Mas sejam um pouco mais discretas.
Curtam a parte de turismo e não gozem com as pessoas.

sábado, 20 de setembro de 2008

Ontem já era tarde

Thabo Mbeki, presidente da África do Sul, vai resignar ao cargo por exigência do seu partido, depois de o Supremo Tribunal ter anulado um processo por corrupção contra o seu sucessor na presidência do ANC, Jacob Zuma, considerando que o processo não tinha fundamentos e tinha sido reaberto com objectivos políticos.

Acontece que Zuma era oponente de Mbeki no último congresso do ANC, de que saiu vitorioso apesar do relançamento deste processo e de um anterior julgamento por violação. Nesse outro, foi inocentado de forma mais polémica e com a parte gaga de o ministro com a tutela da luta contra o SIDA (ele) ter declarado que, como a senhora em causa era seropositiva, tinha tomado depois um duche quente para se proteger do contágio.



Jacob Zuma é uma figura muito pouco simpática, em termos abstractos e absolutos.

Se a situação que levou ao caso de violação pode ter sido orquestrada, ele caiu nela. E, já que caiu por achar que ter uma correlegionária no quarto de hotel vestida só com uma capulana quer dizer que "ela está mesmo a pedí-las", isto diz-nos muito sobre a misogenia da personagem.

Ao mesmo tempo, se tem do seu lado as forças mais significativas e sérias do ANC, também apelou aos sentimentos mais violentos e tem como tropa de choque uma Youth League que parece por vezes liderada por hooligans.
Entre essas forças significativas e sérias, contudo, está a influente central sindical COSATU, que joga nele como alternativa de esquerda à política desnecessariamente neo-liberal (muito mais, nalguns aspectos, que no tempo do apartheid e sem que a potência económica do país a justifique devido a pressões externas) e não redestribuidora da riqueza nacional. Se Zuma, de facto, quererá e poderá sê-lo, isso já é outra questão.

Curioso é que, se quase todos os sul-africanos com antepassados europeus o detestam, a maioria deles ficou satisfeita que ele tivesse cortado o passo a Mbeki, que se preparava para eternizar-se no poder, mudando as restrições constitucionais ao número de mandatos do Presidente da República.



Thabo Mbeki, com o seu cachimbo e fixação no golfe, é assim a modos que um rapazinho mais ao gosto de uma certa Europa e América.
Muito mais ao gosto, no entanto, é a política neo-liberal deste ex-jovem-marxista-puro-e-duro e, sobretudo, essa coisa simpática (para quem tem os cifrões) de black empowerment significar, para ele, o acesso de uns milhares de pessoas com pele mais escura aos postos de chefia e às classes altas e médias-altas, ficando dezenas de milhões de desgraçados na mesma ou pior do que estavam.

O que tem, claro, que ser contrabalançado por uma imagem de africanista-puro-e-duro que, a par das solidariedades "de libertadores" e de histórias desconhecidas ou mal contadas, faz com que desde o início do primeiro mandato traga Mugabe e os seus militares rapaces ao colo, independentemente dos crimes que cometam contra os opositores e contra o seu povo em geral.
Uma posição que (talvez por menor necessidade de se afirmarem africanos, e/ou por maior apego aos funcionamentos democráticos e à perspectiva de mudanças sociais justas) não foi a da COSATU, de Zuma, da esquerda do ANC ou da maioria de população sul-africana.

O saldo foi e continua a ser terrível para os vizinhos zimbabuéanos, mas também em casa, para lá dessa coisa de os "negros" pobres continuarem tão ou mais pobres, há umas coisitas um bocado desagradáveis.
Num país onde infectados continuam a fazer sexo com virgens para se livrarem do SIDA, Mbeki não apresentou o duche quente como substituto do preservativo; expressou publicamente as suas dúvidas de que o SIDA fosse, de facto, provovado pelo vírus HIV.
E, com o país cheio de 3 milhões de refugiados zimbabuéanos (em grande medida, por causa da sua política internacional) e perante as terríveis hordas de linchamentos xenófobos em movimento este ano, praticamente esperou pelo refluxo da onda para tomar medidas de restauração da segurança pública.

Pois é... Um cantava «tragam-me a minha metralhadora» e o outro olhava para o lado, para que os amigos do outro lado da fronteira a usassem contra as suas próprias populações.

O homem vai ser corrido?
Para o Zimbabwé, ontem já era tarde.
Para os zimbabuéanos, moçambicanos e outros estrangeiros "negros" chacinados há meses atrás na África do Sul, há muito tempo que já era tarde.
Para os sul-africanos, se calhar, também.

21/9: Está oficializada a demissão.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Uma boa notícia

Foram reatadas as negociações entre o governo boliviano e os líderes separatistas.

Talvez porque (apesar do empenho norte-americano na secessão, bem demonstado pela escolha do especialista Philip Goldberg para embaixador), a posição unida e inequívoca dos países da região, num tom mais preocupado com a firmeza do que com a retórica incendiada, tornou irrelevantes as performances histriónicas e contraproducentes de Hugo Chavez acerca do assunto e, com seriedade e credibilidade, apresentou um quadro que talvez nunca tenha sido visto nas Américas:

Os países "a sul do Rio Grande", independentemente das diferentes orientações políticas dos seus governos, não favorecem nem toleram golpadas separatistas e instigações de guerra civil contra governos democraticamente legítimos, por muito que isso agrade ao Grande Irmão do Norte e por muito que esse agrado seja evidente.

Entretanto, as razões de queixa que têm sido apontadas pelos líderes separatistas, e que aqui são repetidas, vêm dar razão ao que deixei dito no meu primeiro post acerca da Bolívia.
Já que, mesmo com a diminuição percentual da sua parte do imposto petrolífero, as províncias separatistas recebem 5 vezes mais dinheiro do que recebiam antes da nacionalização (de que discordaram), e já que não haverá diminuição do grau de autonomia provincial, então o problema são os outros dois aspectos da Constituição que está a ser preparada e que eles referem:

A limitação do tamanho das fazendas e os direitos outorgados à população indígena, maioritária mas tratada como infra-cidadã desde a independência do país.
Por outras palavras a diminuição dos latifúndios e o fim da supremacia "branca".

A metáfora da "Bolívia pós-Mandela", neste momento de negociações com um fundo racial tão claro, começa a fazer cada vez mais sentido para mim.

Mas não para toda a gente. Ainda esta semana li um respeitado colega lá do Instituto a enfiar a martelo e despropósito, na sua habitual crónica jornalística, uma frase sobre como Evo Morales trata como não-cidadãos quem discorda dele.
Neste quadro e nesta sucessão de acontecimentos, confesso a minha surpresa.
Mas é bem verdade aquela frase que os alunos se chateiam de me ouvir repetir nas aulas. Independentemente do brilhantismo que possa caracterizar a inteligência de cada um de nós, «só vemos o que estamos preparados para ver».

Acordo no Zimbabwe - II

Esta foi "roubada" ao Carlos Serra, que a "roubou" ao Savana, que a parece ter "roubado" a um jornal inglês.
Que importa? Como dizia um visitante lá do blog dele, é «Genial!»

O autor chama-se Dave Brown.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Será que se pega?

A JSD apoia o casamento de homossexuais, mas não o direito desses casais adoptarem crianças.

Será que consideram a coisa uma doença contagiosa?

Gémeos, albinos e prisioneiros desaparecidos (7 e final)

UMA TEORIA POPULAR DO PODER POLÍTICO

Tendo eu referido que os deportados da Operação Produção são vistos como vítimas inocentes do poder político, seria tentador aplicar aos prisioneiros políticos, inversamente, o rótulo de culpados.
Essa seria, contudo, uma assunção simplista.

Por um lado, seria simplista pelo facto de dois grupos muito diferentes de prisioneiros políticos desaparecidos surgirem amalgamados, nas narrações populares, sob uma mesma equivalência aos gémeos e albinos: os heróis que morreram pela independência (que depressa foi apresentada como sinónimo de revolução socializante); e as pessoas que, sob imputações estigmatizantes, foram acusadas de conspirar contra a independência, o Povo Moçambicano e a revolução.

Em segundo lugar, seria simplista por ser bem sabido que uma detenção como prisioneiro político não derivava necessariamente de uma culpa ou de um acto censurável. Isto é imediato no caso dos resistentes anti-coloniais. Mas a maioria das pessoas concordará também que após a independência, junto com “verdadeiros” pró-colonialistas, contra-revolucionários e ideologicamente heterodoxos, muitos prisioneiros foram detidos apenas porque se queixaram um pouco mais alto de assuntos que também desagradavam aos seus vizinhos e colegas, ou porque tomaram as atitudes “erradas” no momento errado, mesmo que tivessem razão em fazê-lo – como no caso apresentado neste pungente relato de um ex-prisioneiro político:

«Nesse tempo, eu não era contra-revolucionário, nada! Estava feliz com a independência e aceitava como ela era, mesmo as coisas que não gostava.
Por exemplo: se tinha que se fazer dias de trabalho voluntário, porque é que eu ficava de enxada na mão, a capinar e a fazer buracos? Sou mecânico, por amor de Deus! Não sabia usar uma enxada e as outras pessoas não sabiam fazer mais nada. Eu ia ser mais útil a fazer o meu trabalho de graça, naquele dia. Mas nunca me queixei dessas coisas. Não gostava, mas fazia o meu melhor e aceitava. E aceitava a Frelimo mandar, porque nos trouxe a independência.
Mas mandaram-me para o campo de reeducação como contra-revolucionário e sabotador! Foi assim: uma peça importante de uma máquina partiu e o director da fábrica mandou-me fazer uma nova. Disse que não se podia fazer, que era preciso importar. Expliquei que não tínhamos aquele aço e as ferramentas que eram precisas e que, se substituíssemos por uma peça feita por nós, outras iam partir.
O director não sabia nada de mecânica e indústria. Era só um “camarada dedicado da luta armada”
e então fui preso como sabotador. Depois, aconteceu o que eu disse. Ele é que foi o sabotador, mesmo. Mas fui eu que fiquei anos no campo de reeducação.»

Assim, a diferenciação popular entre deportados e prisioneiros políticos não decorre dos actos particulares que eles efectuaram (ou não) e da culpa atribuída a esses actos concretos, mas da posição que eles mantêm perante o poder e da avaliação pública que é feita acerca dessa posição.
Por outras palavras, o objecto da avaliação popular, neste jogo de identificação e diferenciação, não é a culpa ou inocência de actos concretos, mas aquilo que é lícito ou ilícito quer na relação das pessoas com o poder estabelecido, quer na forma como esse poder é exercido.

Efectivamente, conforme antes mencionei, os gémeos e os albinos têm outra característica pertinente, no contexto socio-cultural do sul de Moçambique, para além do desaparecimento destes últimos e da sua origem cósmica comum: ambos são ameaças socio-cósmicas que fazem perigar a ordem da reprodução do mundo, nos seus aspectos naturais e sociais.

Dado que o desaparecimento é comum aos deportados e prisioneiros políticos acerca dos quais se contam as histórias que temos vindo a acompanhar, o assunto que é enfatizado nos destinos opostos que são atribuídos aos seus cadáveres é, então, o carácter ameaçador que é ou não reconhecido a cada um dos grupos (veja-se imagem 2).
Assim sendo, a coexistência entre, por um lado, uma equivalência simbólica entre prisioneiros políticos desaparecidos e gémeos/albinos e, por outro lado, a sua diferenciação dos deportados desaparecidos na Operação Produção, expressa um conceito – ou, melhor dizendo, uma teoria – das relações de poder político que mantém interessantes paralelos com as sugestões de Harry West acerca do norte de Moçambique.

Sejam heróis da independência ou ameaças a ela, sejam culpados ou simplesmente pessoas consideradas subversivas pelo poder (não importa quando ou qual), os prisioneiros políticos ameaçam a sociedade global e não apenas aqueles que ocupam o poder. Pessoas normais a que se tornaram vítimas de um abuso de poder generalizado não são ameaças sociais; pelo contrário, são merecedoras de preocupação e consideração públicas.[1]

Em termos mais gerais, de acordo com essa teoria política popular, é ilícito e socialmente ameaçador fazer perigar o poder estabelecido, a partir do momento em que ele é reconhecido como tal, e quem o faz torna-se uma anormalidade social ameaçadora. Fazer perigar o poder estabelecido é fazer perigar não apenas os poderosos, mas também a ordem e equilíbrio sociais.
Entretanto (de forma inseparável, e tão importante como a afirmação anterior), é também ilícito, para um poder estabelecido e legítimo, tomar decisões injustas acerca das pessoas sob sua responsabilidade, em vez de assegurar o seu bem-estar básico, conforme deveria.

As resilientes representações sociais acerca dos gémeos e albinos foram, então, manipuladas para expressar de forma crítica uma visão do poder subtilmente equilibrada, que pode ser muito enganadora se focarmos a nossa atenção em apenas um dos seus pólos. Tudo o que conseguiremos ver, nesse caso, será ou uma atitude dependente e exigente ou (olhando para o pólo oposto) uma resignada e quase automática submissão ao poder.

Quando a tomamos no seu conjunto, contudo, aquilo que vemos é um “contrato social” (Rousseau) que, de facto, é similar a várias descrições de conceitos “tradicionais” de poder político na África sub-sahariana:
Um poder estabelecido pode ser considerado legítimo devido a diversas razões diferentes (neste contexto, a genealogia, a conquista, a legitimidade revolucionária ou eleições democráticas); mas o reconhecimento social da legitimidade do poder, mesmo que consensual, não significa que todas as suas decisões e práticas sejam legítimas, mesmo que sejam realizadas ao abrigo das competências que lhe são reconhecidas.
O reconhecimento público da legitimidade do poder impõe, aos poderosos, responsabilidades para com a protecção e bem-estar da população que governam. Se o poder estabelecido falha a concretização dessas responsabilidades – ou as desrespeita – nas suas acções concretas, essas acções são ilegítimas, embora o próprio poder não o seja.

Assim, focar apenas um dos pólos deste “contrato social” tem consequências mais vastas que o mero equívoco interpretativo ou científico. Pode, também, restringir a capacidade para compreender as dinâmicas políticas correntes.
Após 80 anos de domínio colonial e 33 anos de independência sob governação de um mesmo partido, que nem sequer enfrentou resistências explícitas para mudar de um paradigma socializante para uma política neo-liberal, é muito compreensível que as elites políticas moçambicanas foquem a sua atenção no pólo da resignação e submissão popular ao poder.
Foi por isso, parece-me, que essas elites se mostraram tão surpreendidas pelos violentos motins contra os aumentos de preços que abalaram Maputo no início de Fevereiro de 2008 e declararam que existia uma «mão invisível» externa por detrás deles.

Mas, se parece agora claro, a partir dos dados e interpretações que apresentei, que as velhas representações acerca de gémeos e albinos foram seleccionadas como matéria-prima para expressar de uma forma sistemática uma visão popular do poder e para classificar, em função dela, recentes actores dos acontecimentos políticos, não há nada de “natural” nessa escolha.
A selecção dessa metáfora, em detrimento de alguma das linguagens locais mais habitualmente utilizadas para falar do poder (como por exemplo a feitiçaria), é pelo contrário excepcional e surpreendente.

Provavelmente, tudo começou com esse perturbante acto de desaparecer, que é comum aos dois contextos e parece ter oferecido, aos albinos e gémeos, uma insuspeitada pertinência para simbolizarem questões políticas recentes.

O facto de terem sido seleccionados para esse efeito revela, no entanto, um outro ponto importante: mostra até que ponto são ainda hoje relevantes, no Moçambique urbano e periuburbano, as representações e crenças acerca de gémeos e albinos.


[1] Seria interessante verificar que destino era atribuído pelos relatos populares aos cadáveres das pessoas falecidas em trabalho forçado durante o regime colonial, mas não consegui encontrar referências a esse assunto.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Gémeos, albinos e prisioneiros desaparecidos (6)

SUBVERSIVOS E VÍTIMAS (II - deportados desaparecidos )

Imagem 2. Relações simbólicas entre gémeos, albinos, prisioneiros e “improdutivos”

Que aconteceu a esses milhares de pessoas, apelidadas de improdutivas, delinquentes ou prostitutas?
No início, havia de facto alguns campos de trabalho onde podiam ser colocadas a fim de desempenhar trabalhos pesados, e ainda havia espaço nos campos de reeducação.
Em breve, todos esses lugares estavam sobrelotados e o estado não conseguia organizar novos, pelo que as pessoas eram simplesmente deixadas longe das suas zonas de residência. Primeiro, em aldeias; depois (como aconteceu a um ícone do bairro do Xipamanine, um homem que regressou do Niassa caminhando milhares de quilómetros), eram largadas no meio do mato, numa província onde os leões são muito comuns.

A maioria dos deportados nunca chegou a receber transporte de volta para as suas cidades. Assim, a menos que eles ou as suas famílias tenham conseguido transporte pelos seus próprios meios, ou morreram ou continuam a viver nas regiões onde o estado os deixou. Para as suas famílias e vizinhos, eles desapareceram.

Curiosamente, nem os cidadãos comuns nem os simpatizantes internacionais que observavam as transformações em Moçambique (Urdang - And Still They Dance) apontaram as óbvias semelhanças entre as primeiras justificações colonialistas para o trabalho forçado (Ennes - Moçambique, Relatório Apresentado ao Governo) e o discurso acerca do trabalho que legitimava a Operação Produção, ou sequer o paralelo entre ela e a Lei do Passe/política dos Bantustões do apartheid sul-africano.
Na década de 1980s, aquilo que apontavam era o enorme número de pessoas que eram tratadas injustamente, mesmo de acordo com os princípios da Operação Produção. Só mais tarde esses princípios começaram a ser vistos popularmente como um abuso em si próprios, mas sem suscitarem analogias históricas locais – embora antigos responsáveis com quem tive oportunidade de falar acerca do assunto procurem justificar a Operação através de uma outra analogia histórica, designadamente as restrições à circulação interna e ao estabelecimento nas cidades que vigoravam na USSR.

Mesmo assim, os deportados são vistos, em termos gerais e na grande maioria dos casos individuais, como pessoas normais que simplesmente se tornaram vítimas de uma utilização abusiva do poder político. A Operação Produção acabou por perdurar como um acontecimento colectivamente traumático, que apenas os subsequentes horrores da guerra civil permitiram minimizar na memória das pessoas.

Ao perguntar a pessoas de diferentes bairros de Maputo o que aconteceu a esses deportados que nunca regressaram, nunca recebi uma resposta que mencionasse água, solo molhado ou crocodilos.
Em mais de 30 entrevistas e conversas informais acerca deste assunto, encontrei também um leid motiv comum, mas que é muito diferente daquele que referi no caso dos prisioneiros políticos desaparecidos: de acordo com essas histórias, ou essas pessoas continuaram a viver no Niassa; ou foram comidas por leões; ou morreram por qualquer outra razão e foram sepultadas de acordo com os costumes vigentes nessa província.

Estas pessoas do sul de Moçambique não conhecem realmente as características dos tais costumes funerários do Niassa que mencionam, mas partem do princípio que se tratará de enterros em solo seco. Um tal fim é, não obstante, visto como lamentável, pois supõem que o ritual seja diferente do seu e, portanto, estranho para os deportados falecidos, e porque os espíritos dos defuntos ficarão sozinhos no Niassa, sem a companhia dos seus parentes vivos e mortos.

Devo sublinhar que esta narrativa recorrente acerca do destino dado aos cadáveres é muito significativa porque, conforme Feliciano (Antropologia Económica dos Thonga do Sul de Moçambique) já salientou, quando um forasteiro morre deverá ser sepultado em solo húmido, “à cautela”, pois para a população local é fácil ver que o defunto não é um albino, mas nunca se pode ter a certeza de que ele/ela não é um gémeo, ou a mãe de alguém que seca a terra.
Partir do princípio de que as pessoas do Niassa não tomaram essa habitual precaução para com forasteiros que, afinal, estavam numa posição estigmatizante é, portanto, uma forte declaração (embora talvez não consciente) de que eles não a deveriam tomar. É, de facto, uma reivindicação de que os deportados não merecem ser enterrados como gémeos ameaçadores.

Também os relatos públicos do homem do Xipamanine que há pouco mencionei eram duplamente significativos, pois constituíam testemunhos da sua experiência pessoal e, ao mesmo tempo, reconfigurações dessa experiência à luz das expectativas e consensos da audiência.
Quando ele atravessou o país a pé, teve também que passar rios a vau, de forma a evitar postos de controlo nas pontes. Essas travessias e o concomitante perigo de crocodilos eram momentos impressionantes das suas narrações, mas nunca atribuía aos crocodilos a morte de outros deportados, embora mencionasse com frequência a sua morte por parte de leões e o terror que a todos suscitava a possibilidade de tal lhes acontecer.

Verificamos então que, em completa oposição aos prisioneiros políticos desaparecidos (ver imagem 2), os deportados desaparecidos na Operação Produção – que também foram presos e mandados para longe pelo estado, sob condições e acusações estigmatizantes – são sistematicamente representados como tendo sido enterrados em solo seco ou comidos por predadores terrestres, mesmo se é provável que alguns deles se tenham na realidade afogado, ou sido comidos por crocodilos.

Num contexto retórico e conceptual em que os prisioneiros políticos são equiparados a gémeos/albinos, os deportados desaparecidos são, assim, veementemente apresentados como não-gémeos/albinos.

Uma das consequências deste facto é que a imagem projectada sobre os prisioneiros políticos desaparecidos não pode ser apenas uma afirmação do seu desaparecimento.
Uma segunda consequência é que se torna necessário clarificar os sentidos atribuídos às diferenças entre estes dois grupos de pessoas desaparecidas, para que possamos compreender o sentido dessa imagem.

Golpe na Bolívia?

Apesar da declaração conjunta de apoio por parte de quase todos os países da América do Sul, Central e México, e apesar das declarações dialogantes do lider separatista (num artigo da BBC em que acaba por ficar claro que as questões são de racismo e justiça social, e não de dinheiros do petróleo e gás), fui alertado para que estaria a ocorrer um pronunciamento militar na Bolívia, enfrentado por manifestações populares.

Não encontro nada nos meios de comunicação on-line.

Enquanto aguardo por confirmação, desejo ardentemente que a informação que recebi esteja equivocada.

Uff! Afinal, não. A pessoa tinha visto esta notícia na televisão, sem ouvir bem, e confundiu-se. Lado bom da história: não sou a única pessoa a interessar-se por isto, em Portugal.

Acordo no Zimbabwe

Foi finalmente assinado, ontem, um acordo de "partilha do poder" no Zimbabwe.
O que é que isso vai querer dizer, ainda pouco se sabe.
Apenas que quem perdeu fica Presidente e fala grosso e que quem ganhou fica Primeiro-Ministro, coisa que não existia, e tem discurso de estadista.

Bem... pelo menos é de esperar que deixem de ser mortos e presos os deputados e dirigentes do partido maioritário, a que os jornais continuam a chamar "oposição".

Pelo meio, Mbeki lá se pode convencer de que fez alguma coisa útil e que não foi uma parte importante do problema, em vez de parte da solução. A linguagem corporal da foto diz-nos, aliás, muito acerca disso.

Pelo meio, também, ficou mais institucionalizada a nova e emergente "via africana para a alternância democrática":
Fazem-se eleições, o governo tenta TUDO para ganhar e, quando perde, cria o caos e a violência generalizada, até que alguma boa alma há muito amiga venha intermediar um governo de unidade que mantenha as oligarquias no poder.

Agora, talvez só Moçambique venha a escapar desta sina, já que até os negócios privados de quem manda (e não apenas as despesas correntes do Estado e o funcionamento da economia) dependem da boa vontade dos "doadores" internacionais.
Mas também, com a oposição a desacreditar-se cada vez mais, à custa de tiros no pé como o das autárquicas na Beira, a questão não se irá colocar durante uns bons anos.

Entretanto, o texto do acordo ficou disponível aqui (cortesia de Carlos Serra).

Gémeos, albinos e prisioneiros desaparecidos (5)

SUBVERSIVOS E VÍTIMAS (I - Operação Produção)

Imagem 3. Julgamento de uma mãe, talvez solteira, durante a Operação Produção

Em Maio de 1983, ao informar o país acerca dos resultados do 4º Congresso da Frelimo, o Presidente Samora Machel anunciou que uma das decisões era «limpar as cidades de vadios, marginais, prostitutas e todos aqueles que não trabalham». Nas palavras de Gita Honwana (revista Justiça Popular 8/9: 3), «Assim de iniciou a grandiosa operação pela produção, contra a fome e o desemprego, contra a marginalidade e a criminalidade, pela dignidade do Homem Moçambicano; uma operação que é parte integrante da batalha económica que hoje travamos; uma operação que está sendo uma escola em que também a Justiça através dos seus Tribunais, através da actuação dos seus Juízes, foi aprender uma lição de legalidade».

Para a população comum, contudo, era difícil reconhecer sob uma retórica tão gloriosa os acontecimentos reais que estavam a viver.
Aquilo que recordam e mencionam são as constantes rusgas e postos de controlo, impostos pela polícia e pelas milícias oficiais junto das paragens de autocarro e nas áreas residenciais, as pessoas que não traziam no bolso o bilhete de identidade ou o cartão de trabalho a serem levadas para o Niassa antes que as suas famílias tivessem oportunidade de intervir, as mães solteiras sendo deportadas como prostitutas, os desempregados sendo tratados como criminosos por um estado que era dono da economia mas não lhes conseguia proporcionar trabalho, a humilhação, a dor, o desamparo e a amargura.
Afinal, as pessoas lembram e sublinham as famílias separadas e destruídas, o trabalho forçado, os parentes desaparecidos para sempre, o abuso de poder sobre pessoas normais, sem qualquer tipo de resultados positivos – junto com o aproveitamento do ambiente de delação e depuração para levar a cabo vinganças pessoais.

Quando recuamos no tempo e olhamos para essa realidade através da perspectiva do estado, na revista oficial Justiça Popular, tanto as apologéticas compte rendu dos Juízes Populares quanto os apelos e veredictos publicados como exemplos de jurisprudência são consistentes com as descrições populares que mencionei.

Não foi escrita qualquer lei sobre a “Operação Produção” mas, só em Maputo, foram de imediato criados 38 postos de verificação com o estatuto de Tribunais Populares mas, ao contrário destes, com o poder de sentenciar os acusados a penas de prisão ou de deportação para centros de produção ou campos de reeducação. Nas primeiras semanas, as rusgas e detenções foram tão numerosas que os Juízes Populares nomeados tiveram frequentemente que trabalhar 48 horas consecutivas, decidindo o destino de centenas de pessoas (imagem 3).
Com a acumulação de acusados, as forças policiais começaram a mandá-los logo para os centros de evacuação, de onde seguiam directamente para o Niassa. Foram mais tarde criados grupos de triagem nos postos de verificação, e só os «casos duvidosos» eram levados aos Juízes Populares.
Também acabou por ser implementado um mecanismo de apelo, neste caso baseado sobretudo em juízes com alguma preparação jurídica efectiva.

A revista refere muitas decisões injustas, mesmo de acordo com os critérios draconianos da Operação Produção.
Nas áreas periurbanas, houve camponeses deportados porque, obviamente, não tinham nenhum cartão de trabalho passado por uma entidade empregadora. O mesmo aconteceu a vários trabalhadores empregados, porque muitas empresas tinham os seus registos de pessoal desactualizados (idem: 3-10). Entre os académicos e outras profissões proeminentes, chegou a haver casos de pessoas que foram subitamente demitidas e, ao chegarem a casa, encontraram a polícia à sua espera para as deportar como “improdutivas”.[1] Outras profissões, como os curandeiros e adivinhos, não eram reconhecidas como tal pelo estado e, dessa forma, praticá-las tornou-se uma razão para deportação – tal como acontecia com os biscateiros (idem: 40).

Também os critérios utilizados nos apelos são com frequência surpreendentes.
Um dos exemplos de jurisprudência confirma a deportação para o Niassa de um trabalhador emigrado que esperava em Maputo pela renovação do seu passaporte, baseando-se a decisão no facto de ele não ter um cartão de trabalho da Suazilândia – que não existia – e de, ao contrário do que a polícia política lhe dissera para fazer, não se ter inscrito como alguém que procurava trabalho – o que não era o seu caso, visto trabalhar no estrangeiro (idem: 41).
De facto, apelar podia piorar a situação. Os pais de uma jovem pediram o seu regresso de um campo de trabalho perto de Maputo, pois não era “improdutiva”, à luz das últimas instruções enviadas aos postos de verificação. Mas o juiz de recurso decidiu que, como ela era mãe solteira de dois filhos «perante a total indiferença dos seus pais», era uma «mulher de mau porte» e deveria voltar a ser julgada sob essa acusação, e não como “improdutiva” (idem: 41). Nesta nova situação, foi provavelmente enviada para o Niassa…

As situações mais arbitrárias diziam de facto respeito a mulheres e à acusação de prostituição. Depois de 6 meses de julgamentos sumários e deportações, um Juiz Popular sugere timidamente que talvez seja tempo de «definir claramente prostituição e identificar a sua punição, de acordo com a nossa realidade» (idem: 9), aproveitando para mencionar o caso de uma mulher que foi acusada de prostituição porque se separou de um homem com quem coabitava há vários anos sem ser casada e, vivendo de novo em casa dos pais, começou a relacionar-se com outro homem antes de as «estruturas locais»[2] terem ratificado a sua separação anterior.
Um dos veredictos de recurso teve que sublinhar que «uma mulher não é uma prostituta apenas por ter vivido maritalmente com um português», antes da independência (idem: 42).
E Stephanie Urdang (And Still They Dance) ouviu, numa viagem de estudo através de campos de deportação, queixas sistemáticas de mulheres que diziam estar ali devido a vinganças pessoais de carácter sexual.


[1] Ao contrário dos restantes exemplos que menciono, tomei conhecimento destes últimos casos (que correspondem à punição de inimizades pessoais ou políticas que não encontravam bases legais sob outras acusações) através de comunicações pessoais, e não pelos artigos da revista Justiça Popular.
[2] Num quadro monopartidário que indiferenciava o estado e o Partido Frelimo, esta expressão designava os Secretários de Bairro, os Grupos Dinamizadores e as lideranças locais das organizações de base da Frelimo, com destaque para as de mulheres e de juventude. "Estruturas” acabou por se tornar a designação popular para quaisquer dirigentes do estado ou da Frelimo, do nível central ao local.

domingo, 14 de setembro de 2008

O puto que se segue

Ontem, ao obter uma molhada pole-position no G.P. de Itália, Sébastien Vettel tinha-se tornado o piloto com a melhor época 2008, tendo em conta o carro que conduz.
Hoje, ficou a certeza de que a pole não tinha sido um golpe publicitário com pouco peso de gasolina. De novo à chuva, venceu com autoridade e particular perícia.

Mais do que o mais jovem vencedor na Fórmula 1, tornou-se em mais uma evidente estrela do futuro próximo. Com Hamilton e Kubica, sem esquecer Raikkonen e Alonso, pode ser que voltemos a algo semelhante aos tempos Senna/Prost/Mansell/Piquet.

Dos aspirantes ao título, entretanto, um voltou a mostrar o seu brilhantismo.
O outro (pese embora a solidariedade da língua), a sua mediania.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Gémeos, albinos e prisioneiros desaparecidos (4)

ALBINOS E PRISIONEIROS DESAPARECIDOS (II - Prisioneiros políticos)

Como eles, muitos prisioneiros políticos, quer antes quer depois da independência, desapareceram das suas comunidades e do olhar das pessoas que os conheciam.
A maioria realmente morreu, outros estabeleceram-se nas regiões onde foram encarcerados, quando a sua detenção chegou ao fim. Também vários guerrilheiros do movimento anti-colonial (Frelimo) foram mortos pelas tropas ou pela polícia política portuguesa (PIDE/DGS), após a sua captura e interrogatório.

Já mencionei uma história acerca do que aconteceu a alguns dos resistentes anti-coloniais desaparecidos: o seu enterro clandestino pela PIDE/DGS, junto à água do rio, perto do actual cemitério da Matola. Escrevi “história” porque, de facto, não há evidências de que tal tenha acontecido naquele local, que aliás seria uma estranha escolha para sepultar pessoas em segredo.
Dalila Mateus (A PIDE/DGS na Guerra Colonial 1961-1974) fornece-nos outra história acerca da ocultação dos cadáveres de resistentes em lugares molhados. Ouviu na praia do Tofinho, perto da cidade de Inhambane, que a PIDE/DGS costumava ali atirar ao mar os cadáveres das pessoas que matava, para que fossem comidos por tubarões. Esta informação popular parece ser, de novo, uma lenda significativa, pois não existem naquela área tubarões comedores de homens e, para além disso, a praia sofreu uma enorme erosão nas últimas décadas – pelo que aquilo que parece muito fácil actualmente teria sido muito difícil há 35 ou 45 anos atrás.

Ouvi contudo, na mesma praia, uma variante dessa história, indicando agora diversas furnas nas rochas que conduzem a cavernas subaquáticas. Nesta versão, a analogia com a sepultura de gémeos é ainda mais directa pois, embora os corpos fossem mandados à água, eram simultaneamente atirados para dentro da terra.

Há ainda outra história corrente acerca da morte e manipulação de cadáveres dos resistentes e guerrilheiros. Diz-se que, durante o transporte em helicóptero de prisioneiros políticos até Lourenço Marques, a PIDE/DGS e as tropas portuguesas costumavam atirá-los ao mar, longe da costa.

Se isto pode ter acontecido, relatos fidedignos de antigos membros das tropas portuguesas, também eles horrorosos, contam uma história significativamente diferente. Alguns comandantes militares e agentes da PIDE/DGS costumavam, de facto, atirar guerrilheiros de helicópteros, quando pensavam que não iriam obter mais informações deles; mas isto era feito em terra firme e os cadáveres das vítimas eram deixados insepultos. Um dos agentes costumava até gritar sarcasticamente, nessas ocasiões: «Dizes que a terra é tua, vai ter com ela!»[1]

Assim, naquilo que parece ser uma reinterpretação de práticas reais que não envolviam água, as narrativas populares acerca do destino dado aos cadáveres dos resistentes independentistas desaparecidos colocam-nos sistematicamente em ambientes molhados. Essas narrativas tanto podem seguir uma analogia directa com os enterros de gémeos ou ir ainda um pouco mais longe (colocando os corpos dentro de água, em vez de sob terra molhada), tal como os albinos “vão um pouco mais longe” que os gémeos na ameaça que representam e nos constrangimentos impostos às suas mortes.

No entanto, esta ligação simbólica entre prisioneiros desaparecidos, gémeos e albinos continua após a independência.
Cronologicamente, o primeiro caso que me foi mencionado refere-se a um motim de ex-guerrilheiros, pouco depois da independência. Conta-se que os rebeldes foram dominados e levados para a ilha da Xefina (situada perto da costa, na baía de Maputo, e local para onde, curiosamente, tinha fugido o Governador em 1833), onde foram fuzilados e lançados ao mar. Até ao momento dos fuzilamentos, trata-se de factos históricos bem conhecidos, mas não pude obter qualquer confirmação acerca do que aconteceu aos cadáveres.

A ilha tornou-se depois o local de um “Campo de Reeducação”, para pessoas que o regime considerava «comprometidas com o colonialismo», «reaccionárias» ou ideologicamente heterodoxas. Acerca daquilo que aconteceu nesta fase, é vox populi que os prisioneiros lá falecidos foram igualmente lançados à água. Contudo, um antigo prisioneiro desse campo negou a veracidade dessa história durante uma conversa comigo, chamando-lhe «um mito».

Vários outros campos de reeducação foram subsequentemente construídos, sobretudo no interior e longe de Maputo. Acerca destes, pude ouvir em várias histórias, contadas por pessoas que nunca lá estiveram, que as campas dos prisioneiros eram cavadas na margem dos rios. Embora muitos campos fossem de facto construídos junto de rios, devido às necessidades de abastecimento de água, nunca alguém que lá tenha realmente estado me confirmou esses procedimentos funerários. Pelo contrário, quatro antigos prisioneiros disseram-me que nunca viram tal acontecer e que, nos campos onde estiveram presos, as margens dos rios eram usadas para culturas agrícolas.

Também existem narrativas populares acerca de pessoas que tentaram fugir dos campos de reeducação e não conseguiram regressar a casa, desaparecendo pelo caminho. Pude ouvir seis dessas histórias e todas elas tinham um leid motiv similar: o fugitivo morreu ao tentar atravessar um rio, onde se afogou ou foi comido por crocodilos – o protótipo de predador aquático nas zonas de interior.

Portanto, no caso dos prisioneiros políticos desaparecidos no período pós-independência, as narrações populares colocam-nos sistematicamente – tal como acontece com os resistentes anti-coloniais desaparecidos – morrendo na água, sendo comidos por predadores aquáticos, ou sendo sepultados em solo molhado ou na própria água. E isto acontece, também, independentemente do conhecimento factual de eventos reais.
Esta última característica reforça a significância simbólica de tais histórias. Mas qual é o sentido das equivalências entre prisioneiros desaparecidos, gémeos e albinos que elas enfatizam?

Se tomássemos apenas em consideração estes dados, pareceria que as velhas crenças acerca de gémeos e albinos são usadas para mencionar prisioneiros politicos desaparecidos apenas para destacar o facto de eles terem desaparecido. No entanto, existe um outro grupo conspícuo de pessoas que também foram presas, levadas para longe das suas comunidades e famílias e detidas em terras distantes, de onde muitas delas nunca regressaram, e essas crenças não são usadas para falar delas.


[1] Comunicação pessoal de três ex-militares portugueses (dois deles conscritos) que testemunharam este procedimento e desejam manter o anonimato.

Bolivia chateia o Grande Irmão do Norte

Preocupei-me, aqui, com a possibilidade de balcanização da Bolívia, em resultado do independentismo latifundiário e racista das províncias mais ricas do país.

Preocupei-me mais ainda ao saber a história do embaixador Philip Goldberg, que agora foi declarado persona num grata pelo estado boliviano.

Pensei que dificilmente os problemas recrudesceriam depois do surpeendente referendo que punha em questão a continuidade nos cargos do presidente, do vice-presidente e dos governadores provinciais, do qual Evo Morales saiu com um apoio reforçado.

Afinal, vieram manifestações e ocupações dos edifícios públicos nas tais províncias e a secessão está mais do que nunca em cima da mesa.

Os Estados Unidos dizem que a Bolivia cometeu um erro grave ao expulsar o seu embaixador, acusado de activo apoio às tais manifestações.

Tendo em conta que Philip Goldberg é considerado o grande especialista diplomático norte-americano em agudizar conflitos étnicos e raciais, que ganhou esses galões na Bósnia, no Kosovo e na ex-Jugoslávia em geral, mas que também calhou estar no Haiti durante o golpe que depôs o presidente Jean Aristide, para além de ter sido obreiro da militarização do Plano Colômbia, depreendo que o tal "erro grave" a que a administração Bush se refere não será a responsabilização de um pobre inocente.
Será o de terem a veleidade de não aceitar que ele continue a aplicar os seus talentos, conhecimentos e meios para os derrubarem.

O que me deixa uma nova preocupação: será que os Estados Unidos equacionam uma intervenção militar na Bolívia?

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Gémeos, albinos e prisioneiros desaparecidos (3)

ALBINOS E PRISIONEIROS DESAPARECEIDOS ( I - Albinos)

Imagem 2. Relações simbólicas entre gémeos, albinos, prisioneiros e “improdutivos”.


A ligação entre gémeos e prisioneiros desaparecidos, ambos supostamente sepultados em solo molhado, é de facto fornecida pelos albinos (imagem 2).
Acerca da crença local no desaparecimento dos albinos, João Pina Cabral ("Os albinos não morrem: crença e etnicidade no Moçambique pós-colonial", in O Processo da Crença) enfatizou o seu estatuto intersticial, nem “preto” nem “branco”, sugerindo que eles «não morrem» porque supostamente não são enterrados, e que essa recusa de os ligar à terra significa uma recusa de pertença, numa sociedade em que pertencer é primariamente marcado pela divisão “preto”/”branco”.

Podemos de facto dizer que a actual relevância da ambiguidade “racial” dos albinos é um aspecto evidente da sua situação e do interesse que despertam as representações acerca deles. Mas é apenas uma pequena parte dessas representações e, muito provavelmente, não é a chave para as compreender.
Numa sociedade como a moçambicana, em que a “raça” é vista como uma realidade biológica e não como uma construção socio-ideológica, e em que a cor da pele e as “misturas rácicas” detectáveis servem de base a diferentes comportamentos para com as pessoas, não se podem ignorar as questões identitárias e hierárquicas levantadas por uma pessoa “negra” com pele “branca”.

Mas não deveremos ignorar, tão pouco, que a relevância hierárquica da cor da pele é historicamente recente, e que as actuais representações acerca dos albinos são demasiado complexas para derivarem apenas da ambiguidade “rácica” – embora também sejam capazes de a representar.
Deveremos, por exemplo, recordar que apenas em meados do séc. XIX o primeiro imperador de Gaza viu, nas suas próprias palavras, um “branco branco” (por contraste com os “brancos” luso-indianos que costumavam comerciar no interior de Moçambique), e que esse homem era uma visita convidada a entrar no kraal real, de forma alguma uma pessoa com precedência hierárquica sobre a população e autoridades locais (Deocleciano Fernandes das Neves, Das Terras do Império Vátua às Praças da República Boer).

Claro que os “brancos” eram conhecidos muito antes disso, em torno das áreas limitadas onde se tinham estabelecido, mas salvo excepções regionais não ocupavam na maioria dos casos uma posição dominante, especialmente no sul de Moçambique. Por exemplo, o Governador de Lourenço Marques era considerado pelo rei local, em 1833, um chefe subordinado que lhe devia tributo e o argumento para atacar a sua fortaleza e o matar foi a sua insubordinação (ver Gerhard Lieagang, A guerra dos reis Vátuas...).

É óbvio que a relevância social da “brancura” de pele durante os tempos coloniais (1895/1975), e depois deles, é muito mais recente que a anomalia representada pelos albinos. Mas é também previsível e plausível que essa relevância seja, igualmente, muito mais recente do que a necessidade social de interpretar e explicar a excepção representada pelos albinos – uma explicação pertinente, mesmo para pessoas que pensassem ter toda a humanidade a pele castanha.

Curiosamente, Henry Junod não menciona explicitamente os albinos no seu detalhado livro Usos e Costumes dos Bantu, quando lida com as ideias dos indígenas «relativas às diferentes raças humanas» (pp. 298-300). Parece, então, que nesse tempo os albinos não lhe tinham sido apresentados como uma questão rácica.
Mas penso que de facto fala acerca deles, sem o notar, quando discute a origem da palavra valungo para designar “homem branco”. Junod nega que a etimologia do termo venha de um verbo zulu que significa “ser justo” e sugere a palavra local valungwana, que traduz por “habitantes do céu”, especulando que tal designação viria provavelmente de alguma mitologia esquecida acerca de “homem branco”. Contudo, acreditava-se os portugueses agora dominantes vinham do mar, não do céu, e os gémeos eram (e ainda chão) referidos como “filhos do céu”.

Embora Junod nunca tenha realmente descodificado o sentido desta última designação celestial, esse sentido era claro na informação recolhida por Feliciano na década de 1970 e que eu próprio pude ouvir cerca de 30 anos depois: conforme mencionei, os gémeos e os albinos são filhos do céu porque, independentemente da sua concepção terrestre, receberam a sua condição excepcional ao serem atingidos por um raio dentro do útero materno. Os gémeos foram fendidos em dois mas os albinos não, apenas tendo sido queimados e, com isso, perdido a cor da sua pele.
No entanto, ambos alcançaram, com esse incidente, uma relação próxima e privilegiada com os fenómenos celestes. Uma relação que, conforme também já mencionei, é ameaçadora da ordem e da fecundidade pois, no quadro simbólico em que está integrada, os gémeos e os albinos são simultaneamente “demasiado quentes” e “uma trovoada sem chuva”. Devido a essas características, carregam em si o potencial para a desordem, para a doença e para secar o céu e a terra.

Uma das consequências da origem comum e celeste dos gémeos e albinos é que, se Junod tinha razão acerca da etimologia, o mais provável é que os “brancos” tivessem sido nomeados metaforicamente a partir dos albinos (com um sentido de “caras pálidas”), com base em prévias crenças acerca destes últimos. A ser assim, os albinos foram originalmente a referência para classificar os “brancos”, e não o contrário.
Mas, mais importante para o assunto que temos entre mãos, os albinos e os gémeos são simbolicamente equivalentes. Os albinos são vistos como gémeos incompletes que, ainda mais que estes últimos, carregam em si o poder destrutivo do raio, que nem foi capaz de os fender a meio – e, devido a isso, também carregam maiores consequências ameaçadoras, para a sociedade e para o cosmos, do que os gémeos.

Sugiro que é devido a essa condição superlativamente ameaçadora que não é suposto os albinos serem enterrados em lugares e circunstâncias especiais, à imagem do que acontece com os gémeos, mas não serem enterrados de todo. É por isso, então, que é suposto eles não morrerem, mas desaparecerem.

É claro que os albinos morrem e são enterrados. Alguns dos seus parentes mais próximos cumprem esse dever em segredo, seguindo os procedimentos prescritos para os gémeos e escondendo a localização da campa. Ao fazê-lo, protegem quer a segurança cósmica quer as crenças da comunidade:[1] os albinos continuam a desaparecer, porque ninguém pode dizer que assistiu ao funeral de um deles.


[1] Também na vizinha Tanzânia os albinos não são suposto morrer. Mas, paradoxalmente, partes dos seus corpos são procuradas para efeitos de feitiçaria de enriquecimento, visto que o enriquecimento pessoal é visto como algo que seca a riqueza à sua volta. Por essa razão e por ser desconhecida a localização das suas campas, pelo menos 19 albinos foram mortos e mutilados post mortem, em 2007 (Gettleman 2008).
Também em Moçambique, os mais poderosos amuletos e tratamentos mágicos para obter e manter riqueza e poder exigem partes de corpos humanos mas, tanto quanto sei, não especificamente de albinos. Isto pode contudo mudar em breve, devido ao ocorrido na Tanzânia e à habitual rapidez com que novas técnicas mágicas se espalham na região.
Os dados acerca dos procedimentos funerários com albinos resultam de uma comunicação pessoal de Danúbio Lihahe.

E qu'é da receita da caldeirada?

E esta aqui também merece bem um clique.

Onde é que fica o elevador da gávea?

No momento em que me começou a apetecer escrever um post a comentar o jogo-treino em que os máióres lá da minha rua levaram 3 a 2 de uns chavalos que discordavam que um só golo matasse alguém, puz-me a clicar aí ao lado, para ver se a coisa me passava.

Descobri isto, de muito e bom uso para os colegas sociólogos e para a arte de ser português.

Para além do mais, foi afixado uma semana antes do meu aniversário, o que é quase uma prenda de anos. As coisas que a gente inventa...

Mas vão lá só em alturas de crise. Não vale a pena passarem todos os dias, que eles são mais bejecas do que posts.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Ferrari é outra loiça

Por falar em duplicidade de critérios: aqui fica um curto videozinho com apenas 2 anos.

Claro que o protagonista era Schumacher e que as marcas dos carros estavam invertidas. O que faz toda a diferença.

Comentar o quê?

O ministro italiano da defesa (não da floricultura ou da protecção da barata pestanuda, note-se) não foi capaz de discursar no aniversário da resistência anti-fascista à ocupação de Roma pelos nazis, a que talvez pudesse ter faltado alegando uma enxaqueca, sem homenagear as tropas italianas que se juntaram ao exército alemão no seguimento do armistício entre a Itália e os aliados, quando Mussolini foi finalmente apeado.

Comentar o quê? Como?
Às vezes, só dá mesmo para dizer: «Porra!...»

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Gémeos, albinos e prisioneiros desaparecidos (2)

GÉMEOS E ORDEM CÓSMICA

Segundo os dados proporcionados por Henry Junod (Usos e costumes dos Bantu, tomo 2: 266-272) acerca do sul de Moçambique, a relação entre os gémeos, a chuva e os enterros em solo molhado já era vista como consensual e antiga em finais do Séc. XIX, sendo objecto de complexos rituais caso a seca ameaçasse uma determinada região.
Quando tal acontecia, a razão era sobretudo atribuída ao anterior enterro em solo seco de gémeos, abortos ou de bebés falecidos antes da sua apresentação à lua (que marca a sua existência social e integração na comunidade), sendo o primeiro passo para obter chuva descobrir as suas campas e corrigir a situação. A par de rituais de purificação das suas mães (caso elas tivessem escondido esses enterros incorrectos), os seus ossos eram exumados para um local húmido ou lamacento e as suas campas anteriores eram molhadas com água. Este acção era desempenhada por todas as mulheres, caminhando atrás de uma mãe de gémeos.

Nesse tempo, diz Junod (op cit: 371-378), o infanticídio do gémeo mais débil já não era praticado, como nos “tempos antigos”, mas tanto os gémeos como as suas mães eram objecto de especiais restrições e controlo social.
No dia seguinte ao seu nascimento, ninguém podia trabalhar, ou as colheitas secariam. Todas as mulheres da aldeia deviam partir em direcção aos quarto pontos cardeais, cantando “que a chuva caia” e regressando com água que era despejada sobre a mãe e os gémeos. A sua cabana era queimada e passavam a viver numa outra, fora da aldeia, usando objectos em que mais ninguém podia tocar e recolhendo a água de um local exclusive. Os gémeos não eram apresentados à lua e começavam a ser alimentados com leite de cabra mal a sua mãe voltasse a ter menstruação. Só voltariam à aldeia quando a mulher desse à luz um bebé “normal”, após provocar a morte consecutiva de quarto homens, por lhes passar a sua impureza através da prática sexual. Mesmo nessa altura, os gémeos eram proibidos de brincar com outras crianças, eram apontados como exemplos de mau carácter e, tal como as suas mães, eram objecto de especiais protecções rituais quando assistiam a cerimónias funerárias.
De acordo com o autor, muitas destas restrições tinham semelhanças com as impostas às viúvas.
Eram mais exigentes, duras e longas porque, se o nascimento de gémeos era identificado com a morte, tinha também uma significância cósmica – os gémeos eram chamados «filhos do céu» e a sua mãe era referida como a pessoa que fez, carregou ou subiu ao céu. Contudo, os aspectos ameaçadores que derivavam dessa familiaridade cósmica podiam ser socialmente úteis em momentos de crise: nos mais fortes rituais contra a seca, era necessário sentar uma mãe de gémeos numa cova e cobri-la de água até ao peito e, se relâmpagos assustadores se aproximassem da aldeia, só um gémeo conseguiria pedir à tempestade para se afastar.

Como seria de esperar, Junod interpreta essas práticas e crenças, que ouviu de forma fragmentar, de acordo com as ferramentas teóricas à sua disposição – utilizando a tipologia de princípios mágicos elaborada por Frazer (The Golden Bough).
No entanto, Feliciano (Antropologia económica dos thonga do sul de Moçambique) pôde fornecer-nos mais detalhes e uma interpretação global da posição ocupada pelos gémeos no sul de Moçambique.

Para além dos dados fornecidos pelo seu predecessor, aponta outras práticas dos finais da década de 1970 que, conforme pude verificar, ainda estão em uso actualmente. Quando um gémeo adoece, é proibido chorar, dar-lhe remédios ou perguntar-lhe se está melhor; pelo contrário, deverá ser insultado com frases como «Quando é que morre?», ou «De qualquer maneira, vai ser comido pelos peixes.» Nos funerais, os gémeos devem manter-se à distância das outras pessoas. Quando um deles morre, é proibido chorar e deverão ser colocadas cinzas na fontanela do sobrevivente, para evitar que desmaie. O gémeo sobrevivente não pode tomar medicamentos, ou morrerá, e não pode ir ao funeral, ou desmaiará e cairá dentro da campa (op cit: 334-336).

Pude também ouvir e observar que o gémeo sobrevivente não pode verbalizar a morte do irmão ou irmã. Pelo contrário, deve agir como se o falecido estivesse nalgum lugar longínquo e, se alguém que não saiba da morte lhe pedir notícias do defunto, deverá mentir, inventando alguma viagem ou dizendo que o finado se mudou para outro país ou província. Tal como muitas vezes acontece, várias pessoas foram incapazes de me apresentar uma razão clara para este comportamento, limitando-se a dizer que seria perigoso agir de outra forma; outras pessoas, contudo, explicaram-me que falar acerca da morte do outro gémeo traria a morte ao sobrevivente. Na atitude e nas palavras deste, então, o gémeo morto limitou-se a desaparecer.

A característica dos gémeos que aqui mais nos interessa, no entanto, é o facto de eles terem que ser enterrados em solo molhado ou, tal como acontece com outras pessoas e nascimentos anormais (op cit: 326-352), secarão a terra.
A razão desta prática e das restantes restrições impostas aos gémeos no sul de Moçambique torna-se mais clara se atentarmos na análise de Feliciano acerca do sistema simbólico que é localmente dominante (op cit: 305-308).
Em síntese, o autor sustenta que todos os fenómenos pertinentes de natureza social ou cósmica são “tradicionalmente” concebidos de acordo com um conjunto de diferentes códigos, com particular relevância para o sexual, o térmico e o culinário. No entanto, esses códigos são isomorfos e cada um deles pode ser usado para representar analogicamente (ou mesmo para dirigir a representação de) fenómenos que pertencem ao âmbito de outro código, o que aliás acontece de forma regular.
Neste quadro, a reprodução humana é análoga à interacção de um par incubador fogo/água e seu resultado bem sucedido, o bebé vivo, é representado como sendo água (que pode ou não resultar de uma tempestade) e, tal como a água, os bebés normais propiciam a fertilidade global. Só provisoriamente, até à cicatrização do umbigo e ao fim do sangramento da parturiente, o bebé e a sua mãe são considerados «quentes». No entanto, de um aborto ou de um bebé que morre enquanto está quente, resulta um desequilíbrio térmico global que exige o enterro do cadáver num local húmido, ou a terra secará.

As analogias e substituições mútuas entre diferentes códigos vão, contudo, ainda mais longe: «se o raio, fogo que seca a terra, é como o aborto, sangue expulso que queima o bebé, e o aborto seca a terra, como se fosse um raio; então o raio queima os bebés como se fosse um aborto.» (op cit: 310)
Este ponto é crucial porque, embora também existam outras hipóteses populares hoje em dia 1, o nascimento de gémeos é correntemente atribuído, tal como o nascimento de albinos, a um acidente cósmico. Ambos foram atingidos por raios dentro do útero materno, com consequências um pouco diferentes: os gémeos foram partidos em dois e os albinos foram queimados. É por isso que os gémeos são chamados «filhos do céu» e são eficientes interlocutores com as tempestades, e que os albinos eram chamados em ronga qhlandlati («carvão de raio»), uma palavra que muitos falantes adultos conhecem mas evitam utilizar, devido à sua carga pejorativa.
Entretanto, a interação entre os códigos sexual e térmico clarifica um outro aspecto: devido à sua origem, os gémeos são (tal como os albinos) raios sem chuva; ao contrário dos outros bebés, nunca deixam de ser quentes, com as respectivas consequências. Para além dos perigos para si próprios que derivam dessa condição, propiciam a secura e infertilidade, a desarmonia social e mesmo a doença – que é nalguns casos, normalmente relacionados com a sexualidade, atribuída a uma situação de calor interior chamada kuhisa. Em suma, são ameaças socio-cósmicas.

É este o quadro geral de referências relativamente aos gémeos no sul de Moçambique. Para além delas, contudo, Junod (op cit: 272) menciona en passant um detalhe revelador de que, já há mais de um século atrás, as características atribuídas aos gémeos e outros “secadores de terra” podiam ser extrapoladas para outros grupos de pessoas ameaçadoras, e ser ligadas ao destino que era dado aos seus cadáveres. De facto, dizia-se que chovia tempestuosamente sempre que as pessoas se juntavam para apanhar os barbos nalgumas lagoas, que a estação seca tinha transformado em lamaçais. Isto acontecia porque, no passado, tinham ali ocorrido batalhas e os cadáveres dos inimigos tinham sido atirados para a água.

Mas porque razão se parte do princípio, tantos anos depois, que também os prisioneiros políticos que desapareceram foram atirados para a água, ou sepultados em terra molhada?


[1] Pude ouvir duas delas em contexto urbano, de pessoas com níveis de escolaridade elevados: (1) uma mulher terá gémeos se a sua xará (a pessoa de quem herdou o nome) teve gémeos; (2) tornar-se mãe de gémeos é hereditário. Contudo, não só estas novas hipóteses populares torneiam a razão da própria existência de gémeos, como se verifica que os casos reais de nascimentos de gémeos em gerações sucessivas são, pelo contrário, encarados correntemente como um acontecimento estranho e muito excepcional.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Gémeos, albinos e prisioneiros desaparecidos (1)

Tenho sido obrigado a traduzir para português o artigo «Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos: uma teoria moçambicana do poder político», que lá anda em publicação pelos States e de que vos falei aqui.
Revendo a tradução, que vai avançada, passou-me pela cabeça: porque é que não vou afixando o texto em fascículos, tipo Séc. XIX, em vez de esperar pela última frase? Pode ser que interesse a alguém...
Aqui fica a primeira leva, correspondente à Apresentação.



Imagem 1. Cemitério da Matola, junto do rio, de uma salina e da Mozal.

Alguns anos atrás, fiz uma visita a Martins Matsolo, o chefe hereditário da região onde foi construída a fundição de alumínio Mozal, perto da capital de Moçambique. Queria auscultá-lo acerca de uma ideia que se estava a espalhar entre os operários dessa fábrica: que, durante a cerimónia que precedeu a sua construção, ele tinha proibido a morte de cobras na área fabril, ou iriam ocorrer acidentes.
Ele disse-me que não era verdade e ficámos a discutir as razões para esse boato, que deriva da crença local em cobras possuídas por espíritos (Granjo, 2008). Como se diz que essas “cobras especiais” vivem em lugares com características especiais, a nossa conversa levou-me a falar do peculiar cemitério da Matola, junto da fundição (imagem 1).

«É um mau cemitério, não é? Quero dizer, mesmo junto ao rio, que até transborda…», perguntei. Ele permaneceu algum tempo em silêncio e, como tantas vezes acontece quando fazemos a um moçambicano mais velho uma pergunta melindrosa, não me respondeu directamente, mas através de uma história sem aparente relação com o assunto, mas fácil de compreender por parte de alguém que domine as referências que a ligam à pergunta.
- Sim... No tempo colonial, a PIDE até costumava esconder ali os prisioneiros que matavam na prisão deles. Não era bem ali, mas mesmo ao lado, mais junto da água.

Foi a primeira vez que ouvi falar de uma ligação simbólica entre gémeos, albinos e prisioneiros políticos. Isto porque, sinteticamente, os gémeos devem ser enterrados em solo húmido ou secarão a terra; os albinos (que têm a mesma origem cósmica) são suposto não morrer, mas desaparecer; e os prisioneiros desaparecidos eram enterrados em terra molhada.
É desrespeitoso enterrar pessoas “normais” em solo molhado, porque isso corresponde a tratá-los como «mortos que secam a terra» – e essa era a razão da minha pergunta. Ao contar-me aquela história, o senhor Matsolo concordou comigo e enfatizou a importância do assunto que eu tinha levantado; mas, ao fazê-lo da forma que o fez, ensinou-me algo de novo.

Esse novo assunto – a equivalência simbólica que mencionei e o sentido que lhe subjaz – é a razão deste artigo.
De facto, existem várias referências etnográficas às restrições sofridas em Moçambique pelos gémeos, albinos e suas mães, e até algumas interpretações antropológicas acerca delas. Se as compararmos entre si e falarmos com as pessoas hoje em dia, parece que essas restrições não mudaram muito nos últimos 100 anos, como tão pouco mudaram as excepções geográficas onde, pelo contrário, os gémeos recebem uma valoração positiva.
No entanto, essas regras resilientes e os conceitos que lhes subjazem eram suficientemente pertinentes para terem sido seleccionadas como uma linguagem para falar e pensar acerca dos prisioneiros políticos desaparecidos, tanto durante o colonialismo como após a independência – embora não, conforme veremos, para pensar acerca dos vários milhares de pessoas que, na década de 1980, foram expulsas das cidades para a remota província do Niassa, acusadas de serem «improdutivas».

A equivalência com gémeos e albinos foi empregue apenas por esses prisioneiros terem desaparecido? Durante algum tempo, pensei que essa explicação era suficiente – pelo menos se lhe adicionássemos as restrições e estigma que os prisioneiros políticos sofreram. Contudo, foram muito mais numerosos os deportados que desapareceram no Niassa, também eles sofreram restrições e estigmatização, mas a equivalência que mencionei não é utilizada no seu caso.

Irei então sugerir que a equivalência simbólica entre gémeos, albinos e prisioneiros políticos desaparecidos não é apenas formal; ela expressa um conceito das relações de poder político em que prisioneiros “subversivos”, mesmo tratando-se de lutadores pela independência, são avaliados como anormalidades sociais negativas e ameaçadoras – ao contrário das vítimas de exílio doméstico por decisão estatal, vista como um injusto abuso de poder.