domingo, 29 de junho de 2008

O "árbitro" arma Mugabe

Segundo o Mail & Guardian apurou, o governo e empresas de armamento sul-africanas têm vindo nos últimos anos a proceder à venda (ou doação) ao regime de Mugabe de armas, de munições e de material que permitiu a recuperação de helicópteros e aviões militares que estavam inoperacionais.

Todas essas vendas e doações tiveram que ser aprovadas pelo NCACC (Comité Nacional de Controle de Armas Convencionais), presidido pelo ministro que substitui Mbeki nas missões de intermediação sobre o Zimbabwe a que ele não pode ir. No entanto, não aparecem nos relatórios desse organismo estatal, mas apenas nos registos oficiais de transacções comerciais, no meio de quaisquer outros produtos.

Durante o recente episódio do navio chinês carregado de armas para o regime de Mugabe (que um tribunal proibiu de descarregar em solo sul-africano, contra a opinião de Mbeki e do governo), uma das empresas mais activas nessas vendas tinha sido contratada para transportar a carga letal para Harare.

O presidente da África do Sul, Mbeki, é desde 2001 o intermediário da SADC para o Zimbabwe, por já vir dessa altura a escalada de eleições manipuladas e de violência estatal sobre a população.
É o "árbitro" entre Mugabe e a oposição.

Segundo a legislação internacional, Estados que dão assistência militar a outros que usam material estatal contra parte da sua própria sociedade são culpados de cumplicidade.

O ridículo não mata. Infelizmente.

Ufano, Mugabe anuncia uma vitória esmagadora, contra ninguém. «Ganhámos todas as 26 circunscrições de Harare, onde só tínhamos ganho uma na primeira volta!»

Prepara-se para tomar posse já amanhã. É fácil e rápido contar votos, quando não há uma oposição para ficar à nossa frente.

Mesmo os habitualmente dóceis obervadores internacionais das organizações africanas declararam que as eleições não foram «nem livres, nem justas» e pedem a sua repetição.

Mas o ridículo não mata. Infelizmente.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Democracia manu militari

É hoje. Pois...
Crónicas da vergonha, por aqui.

A esta hora, a coisa já acabou. Houve votação forçada e "de cabresto", e até apelos de Tsvangirai aos eleitores para que "se forem obrigados a votar Mugabe, façam-no", a fim de evitar agressões ou pior.

Quase ninguém reconhece esta fantochada. A União Europeia pronunciou-se nesse sentido, o malfadado G8 também, a ONU fê-lo a priori e até o presidente da União Africana disse estar “convencido” de que a organização conseguirá encontrar uma “solução credível” (logo, esta não é), pedindo tempo para as negociações.

Aguardo com curiosidade, para ver se os países da SADC o farão também, ou se há algum disposto a fazer de fantoche, no sangrento teatrinho do tio Bob.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Solução é possível?

No Zimbabwe, enquanto Mugabe diz que só negoceia depois de ganhar as eleições presidenciais por falta de comparência (mais do que forçada) do candidato mais votado na 1ª volta (contra a resolução unânime do Conselho de Segurança da ONU),
Tsvangirai apela à União Africana e à SADC para que liderem um "processo de transição", conduzindo negociações para resolver a crise política.

Sustenta que um “tal período permitiria ao país sarar as feridas” provocadas pela violência, que entrou numa espiral assassina desde a realização da primeira volta, e coloca como únicas exigências para um tal processo o fim da violência, a libertação de todos os presos políticos e a tomada de posse do Parlamento saído das últimas legislativas, ganhas pelo MDC.


Para ter viabilidade, um intermezzo deste tipo exigiria o efectivo controle dos países vizinhos sobre o processo e sobre o directório mugabiano, pois é por demais evidente a sua opção de manter o poder por todos os meios.
Mesmo uma partilha transitória, ou sequer uma situação de legalidade e de segurança que viabilizasse a realização de uma efectiva 2ª volta das presidenciais, daqui a uns meses, teria que lhes ser imposta pelos vizinhos, numa demonstração de que o jogo já não pode ser jogado como o têm feito.

Há alguns tímidos sinais, mas são significativos depois de anos de conivente "diplomacia silenciosa":
O Conselho de Segurança da SADC também defendeu o adiamento da 2ª volta das eleições, por falta de condições para que ela fosse livre e equitativa.

Embora seja actualmente composto por dois dos países menos cúmplices dos atropelos de Mugabe e por um país (Angola) que se fez representar por um ministro e não pelo presidente, é já uma importante mudança.
Porque estão a falar em nome da SADC e não o podem fazer contra os restantes membros.
Porque José Eduardo dos Santos mandou a Mugabe uma carta no mesmo sentido.
Porque Armando Guebuza, finalmente, afinou pelo mesmo diapasão, durante o seu discurso no dia da independência de Moçambique.

Também quebrando finalmente o silêncio, Nelson Mandela condenou o "trágico fracasso da liderança zimbabuéana", esclarecendo que não o fez antes para não comprometer os esforços de mediação de Mbeki - que implicitamente declara, dessa forma, também ela fracassada e terminada.
Está bem que o arcebispo Desmond Tutu chamara "Frankenstein para o povo Zimbabuéano" a Mugabe, mas "Madiba" tem um peso incomparavelmente superior, tal como a sua declaração que, afinal, decreta a morte da "diplomacia silenciosa".

Em suma: as coisas parecem estar a mexer e o regime de Mugabe parece estar, finalmente, isolado excepto no seu autismo.
Mas serão os líderes da SADC e da UA capazes de dar o passo seguinte, sem o qual não existirá solução?
Estarão dispostos a assumir o efectivo controle sobre a transição e a segurança dos zimbabuéanos?
Espero que sim, ou não haverá outra solução que não seja violenta.


Entretanto, o secretário-geral do MDC, preso sob acusação de alta-traição (punível com pena de morte) por ter revelado que o seu partido tinha ganho as eleições, foi libertado sob caução.
Um sinal de que os vizinhos regionais já não deixam Mugabe e os seus generais fazerem tudo?

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Parabéns a você!

Moçambique celebra hoje o 33º aniversário da sua independência.

33 anos de uma história movimentada, com sonhos, desilusões e abusos, com uma guerra difícil e uma paz surpreendentemente fácil, com desigualdades crescentes mas um povão com uma extraordinária capacidade de dar a volta ao infortúnio.
Mas uma história que é a sua, porque é seu o país, conquistado a um regime iníquo.

Parabéns a você, Moçambique!
Um grande abraço, moçambicanos!

terça-feira, 24 de junho de 2008

E agora, SADC? Vão mexer-se?


O Conselho de Segurança da ONU condenou por unanimidade a campanha de violência e de intimidação contra a oposição no Zimbabwe, considerando que as violências e restrições “tornaram impossível a realização de eleições livres e igualitárias no dia 27 de Junho".
Entretanto, o Secretário-geral da ONU apelou ao adiamento da segunda volta das presidenciais, para futura realização sob condições justas.

Perante uma resolução que recolheu uma unanimidade raramente alcançada antes nesse organismo internacional, Mugabe sugere que se trata de uma campanha de Londres e Washington para o invadirem... E afirma que se recusa a adiar as eleições, agora que conseguiu o que queria.

Haverá algum líder da SADC que ainda considere aceitável o comportamento do regime zimbabuéano? Ou mesmo tolerável?
Consideram que, depois disto e de tudo o que se passou antes, podem continuar a olhar para o lado, a assobiar para o ar e a tentar educadamente convencer a junta militar mugabiana a aceitar um regime de transição em que os perdedores presidam aos vencedores, sem os matarem?

É que nem isso (que já seria uma preversão) essa gente esteve disposta a aceitar e, desde o início da campanha para a 1ª volta, têm vindo cada dia a falar mais grosso e a bater mais forte.
Por causa da "diplomacia silenciosa", da compreensão e tolerância dos velhos camaradas, das "costas quentes" asseguradas ao regime assassino de um país falido pelo poder.

Líderes da SADC: ESTÁ NA HORA DE MOSTRAREM QUE BASTA!

Adenda: Os governantes assobiam, mas as pessoas estão fartas. A central sindical sul-africana, COSATU, apelou aos trabalhadores de todo o mundo para ajudarem a isolar Mugabe e o seu governo, considerando que ele e a Zanu «declararam guerra» contra o povo zimbabuéano.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Citações de café (10)

MATEMÁTICA PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


Na televisão, ao lado da mesa, passa hoje o telejornal da estatal TVM.

O pivõ: Na província de Gaza, foram este ano despedidos 10 funcionários públicos, na maioria dos casos por abandono do posto, mas também por mau atendimento ao público.

Uma responsável provincial: ... também foram despedidos este ano 10 funcionários, a maioria por abandono do posto. Há alguns casos, poucos de indisciplina. Alguns até com violência. Mas a maioria, podemos dizer que 95%, foi por abandono do posto.


(É verdade: há quanto tempo não visitam o "Que diz o pivõ?")

Razões de uma recusa

Como nem toda a gente percebe inglês e os programas de tradução automática são um pouco... bem... criativos, aqui ficam as razões invocadas por Morgan Tsvangirai para se recusar a participar na segunda volta das presidencias no Zimbabwe:

Violência patrocinada pelo Estado
Segundo o MDC, os grupos internacionais de direitos humanos e, progressivamente, os observadores eleitorais da região, esquadrões de rufias da Zanu-PF empreenderam uma campanha de intimidação e violência. Não usaram apenas apoiantes do partido, mas também instituições estatais de segurança como a polícia e o exército.

Impossibilidade de fazer campanha
Um diplomata ocidental descreveu Morgan Tsvangirai como um «prisioneiro de Harare». A cidade está rodeada de bloqueios de estrada oficiais e informais que impedem eficazmente o lider do MDC de contactar os seus apoiantes. A polícia deteve-o pelo menos 5 vezes, comícios do MDC foram proibidos e, num golpe final, membros armados da brigada juvenil da Zanu-PF ocuparam o estádio de Harare onde o MDC tinha preparado o seu maior comício.

Dizimação dos quadros do MDC
O partido afirma que mais de 80 dos seus membros foram assassinados nos meses recentes. Centenas deles foram obrigados a esconder-se, tornando impossível ao partido organizar-se.

Desconfiança na Comissão Eleitoral do Zimbabwe
Na sua declaração, o partido afirma-se chocado com o grau de partidarização da ZEC, e acusa a comissão de estar dominada por milicias da Zanu-PF.

Falta de acesso aos media
Os media independentes foram atacados os impedidos de fazer reportagens no Zimbabwe. Os media estatais ou ignoram o MDC, ou retratam os seus membros como violentos paus-mandados do ocidente. Recusam publicar anúncios de campanha do MDC.

Ameaças de Mugabe
Nos discursos recentes, o presidente Mugabe disse repetidamente que se recusa a desistir dos ganhos da guerra de libertação por causa de um 'x' num boletim de voto. Também disse que "só Deus me pode destituir".

Planeada adulteração de resultados eleitorais
O MDC listou aquilo que descreve como um plano elaborado e decisivo da Zanu-PF para adulterar os resultados eleitorais.

Tudo razões bem fortes e justificadas.
Mas continuam a colocar-se-me as dúvidas e perguntas que aqui expressei.
E vocês? O que pensam?

Adendas: entretanto, Tsvangirai está refugiado na embaixada da Holanda, após a polícia ter assaltado a sede do MDC esta manhã e prendido vários dirigentes.

Antes, o governo tinha pedido ao MDC que voltasse atrás na decisão de não participar na 2ª volta. Seria para os poderem prender e matar mais à vontade?

PS: reparei que tenho muitos posts sobre as eleições zimbabuéanas. Etiquetei-os aí ao lado, no "Armazém", para quem quiser acompanhar todo o conjunto e os links para fontes de informação.

domingo, 22 de junho de 2008

O campeonato dos chatos

Dividi-me, quanto à imagem, entre um piolho pubiano e este logotipo, cinzento como o Euro 2008 se tornou.

Só a Espanha, uma equipa banal, conseguiu evitar que apenas passassem às meias-finais as equipas mais desinteressantes e que, nos grupos de apuramento, se viram e desejaram para não serem eliminadas. Mas não conseguiu marcar um golo.

Cheira-me que, também na final, o campeão só será conhecido por penalties... E que não será a Rússia, já que é a equipa que melhor está a jogar, dentre as que sobram.

O crime compensa

Morgan Tsvangirai, líder do partido mais votado nas legislativas zimbabuéanas e candidato mais votado na primeira volta das eleições presidenciais, retirou-se da segunda volta, marcada para dia 27.
Diz que não pode pedir aos eleitores que arrisquem a sua vida ao votarem nele.

O risco tornou-se, de facto, bastante maior desde a primeira volta.
Mais de 60 dirigentes e activistas do MDC mortos por esquadrões da morte, milhares de pressupostos votantes agredidos e expulsos das suas zonas de residência, ajuda alimentar (tornada essencial à sobrevivência, num país que era "o celeiro da África austral", devido ao caos criado pelo regime na última década) só entregue a quem apresentar cartão da ZANU-FP de Mugabe, o secretário-geral do partido que venceu nas urnas acusado de alta traição (que dá pena de morte) por ter revelado os resultados eleitorais que o regime queria esconder... Um vasto rol de violência e ilegalidade, que podem ver aqui.

O risco de morte é terrivel e bem real, mas... não é um pouco tarde para pensar nisso?
Que vão dizer às famílias dos assassinados, aos torturados e agredidos, às violadas, aos expulsos que viram as suas casas arder, por terem tido a coragem de votar contra Mugabe?
Que afinal fica tudo como era dantes? Que tudo foi em vão?

Se o deixarem, Mugabe - automático vencedor, sem oponente - vai dissolver o parlamento eleito, onde ficou em minoria, e convocar novas eleições. Será que o MDC não vai participar, para não pedir às pessoas que corram risco de vida por votarem em si?

É certo que a primeira dama garantiu que, mesmo ganhando, Tsvangirai nunca iria ver o interior do palácio presidencial. É certo que Mugabe garantiu que «as balas são mais fortes que as canetas» (de votar) e que, caso perdesse nas urnas, as utilizaria.

Será que o MDC recebeu garantias? Como o governo de unidade nacional liderado pelos perdedores, proposto pelo velho Kaunda e, há poucos dias, pelo presidente da África do Sul que tantas responsabilidades tem no assunto?
Mas o que valem as garantias de dirigentes regionais que olharam para o lado e assobiaram enquanto Mugabe meteu o seu país e o seu povo a ferro e fogo, e que receberam Tsvangirai, já vencedor eleitoral, fazendo-o passar por um detector de metais?

Esperemos para ver. Pela minha parte, não tenho (neste assunto) muita fé nem nas lideranças regionais, nem na reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas que dizem irá haver.

PS: e que se lixe a bola

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Você disse «eleições livres»?

Jacob Zuma, presidente do ANC (África do Sul) disse que não acredita que a segunda volta das eleições no Zimbabwe seja livre.

É um enorme contraste em relação à "diplomacia silenciosa" de Mbeki e vários líderes regionais, que tem deixado as mãos livres a Mugabe, mas começa a ser uma declaração tímida, face ao que se está a passar.
Quando foi anunciada a realização de uma segunda volta nas eleições presidenciais zimbabuéanas, este cartoon era, de facto, adequado:

Depois de todo o rol de sistemática violência, intimidações e assassinatos (cujo levantamento podem acompanhar aqui), este plágio está bem mais próximo da realidade:


quarta-feira, 18 de junho de 2008

55 anos para casarem

Soube pelo Arrastão que um dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo realizados 2ª feira na Califórnia, após o Supremo Tribunal ter declarado inconstitucional a lei estadual que os proibia, uniu estas duas senhoras, que vivem juntas há 55 anos.

Dá-me vontade de exclamar: «Que se lixe todo o mal que há a dizer acerca do casamento, enquanto instituição!»
Para que alguém possa optar por o recusar, é necessário que tenha o direito a tê-lo.

Este caso é, de facto, enternecedor.
Mas não me enterneceria menos se fossem dois senhores de farta bigodaça, duas jovens com piercings da cabeça aos pés, ou um casal heterosexual que tentassem impedir de casar.
Porque aquilo que me enternece mais, de facto, é o acesso de qualquer pessoa aos direitos que são supostamente de todos.

Excelência premiada

O Clube dos Jornalistas atribuiu a Joaquim Furtado o Grande Prémio Gazeta 2007, pela sua série documental A Guerra, cujos primeiros 9 episódios foram exibidos o ano passado na RTP.

Só conheci Joaquim Furtado fugazmente, num debate que promoveu acerca da morte de Comandos na recruta. Mas sempre acompanhei com muita atenção tudo o que foi fazendo, com aquela seriedade e qualidade acima do habitual.

Agora, depois de um ascenso institucional e de uma aparente estadia "na prateleira", brindou-nos com esta extraordinária série!
Ao longo dos 9 episódios, sei que há quem não tenha gostado disto ou daquilo.
Considero isso normal e desejável pois, precisamente, ela não pode agradar a todos.

Porque não é a versão oficial de ninguém, mas um completo repositório dos olhares de pessoas das diversas partes envolvidas que, para além de nos proporcionar essa diversidade, nos permite compreender pontos de vista, sentimentos e leituras da história que não estamos habituados a equacionar. E perceber como elas interagiram.
Tudo isto acompanhado por uma contextualização que se faz discreta e pelo desfazer de algumas mitologias que se vieram arrastando, em Portugal e nos países que com essas guerras alcançaram a independência. Não é, Cabo Delgado?

Discordem e objectem, se tal for a vossa opinião.
Para mim, raramente este prémio foi ou voltará a ser tão merecido.

Diz o Ti Mário

Nunca pensei que me apetecesse citar aqui Mário Soares, mas a reforma dos políticos tem, por vezes, destas coisas:

«A crise global não é só energética e alimentar (...). É também política, financeira, económica, social e ambiental. Uma crise de civilização, estrutural, que teve o seu epicentro na América de Bush (...) e que começa a repercutir-se na Europa e nomeadamente na nossa vizinha Espanha. Vai chegar cá. Ninguém tenha ilusões.»

Saiu ontem no Diário de Notícias. Alguém quer comentar?

terça-feira, 17 de junho de 2008

Citações de café (9)

ESCOLA

A citação de hoje é visual.

É uma pintura mural no Clube dos Professores («com pizaria»), em Maputo, realizada por um senhor de apelido Mabote que me dizem ter sido, na altura, desenhador textil na Coelima que deus tenha.

Embora esteja datada de 2002, esse é apenas o ano em que foi refeita, a par de uma re-pintura do estabelecimento.
Já a conheci em 1999, mas tinha na altura ligeiras diferenças.
Uma das personagens que estão de costas tinha apenas duas pernas, em vez de três. E, sobretudo, havia uma vela a alumiar o livro do professor.

Não estou certo de qual era a simbologia que o autor queria transmitir - mas, a julgar pelo resto, talvez o efeito desejado fosse essa dúbia possibilidade de a vela poder representar quer o conhecimento rompendo as trevas, quer a falta de iluminação eléctrica.
Suponho que uma tal duplicidade já seria, em 2002, de um miserabilismo inaceitável numa cidade em que não possuir um 4X4 de luxo é um sinal de incapacidade para aproveitar as oportunidades que por aí correm.

Mas olhemos para aquilo que hoje podemos ver.

Reparem como só uma personagem (e aparentemente "bem casada") está atenta ao que o professor diz.
Os outros estão a "apanhar uma seca", a falar de outra coisa, a pensar na vida ou em quando poderão sair dali, a controlar o que fazem os restantes ou, sobretudo, a tentar namorar.
Num dos casos, a mulher está agradada e nos outros não. Porque, nesta parede, são sempre homens quem tenta namorar - mesmo aqueles que surgem, lá ao fundo, disfarçados de inócuas cabeças "à Malangatana" e que são bem mais do que um mero plágio estilístico.
O professor, entretanto, discorre a sua sabedoria sem olhar para ninguém, mas para um distante ponto (no espaço, no tempo e no imaginário?), para onde mais ninguém olha.

Tal como esta foto do Naita Ussene é um tratado sobre a educação sexual anti-HIV, esta pintura mural é uma aula de antropologia da educação e sobre as visões populares que a escola suscita.
Tentei, de facto, leccionar essa aula in loco, há uns anos atrás.
Os alunos devem ter achado que uma aula num restaurante ao ar livre punha em causa a sua dignidade académica.
Não sabem o que perderam.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Victor Jara em tribunal

Devido à apresentação de novas provas acerca dos seus autores materiais, vai ser reaberto o inquérito judicial à morte de Victor Jara, a quem os militares de Pinochet queimaram e partiram as mãos à coronhada, mandando-o «cantar agora». Foi fuzilado à queima-roupa quando, de facto, se dirigiu aos restantes presos e começou a cantar o hino da Unidad Popular.
Foi no Estádio Nacional de Santiago do Chile, poucos dias depois do golpe de estado que depôs Salvador Allende, fará em Setembro 35 anos.

Este senhor deve achar que é uma perda de tempo.
Os tiranos em desaceleração, por esse mundo fora, devem achar que garantir a impunidade é uma coisa cada vez mais difícil.

Citações de café (8)

SEGURANÇA INFANTIL

Os adultos discutiam as vantagens e perigos de instalar cercas eléctricas.

- Eu, se fosse uma pessoa crescida, punha era muitos pães no muro, com manteiga, queijo e chocolate, e quando um ladrão viesse já tinha coisas para comer e não roubava a casa.

sábado, 14 de junho de 2008

Assassinatos de albinos na Tanzânia

Umbhalane pediu-me para comentar e enquadrar uma notícia recente que dá conta do clima de medo entre os albinos de Dar Es Salaam, devido a assassinatos de que têm vindo a ser alvo, para que partes dos seus corpos sejam utilizadas em feitiços de enriquecimento. Uma notícia divulgada pelo Carlos Serra.

Sinto-me sempre um bocado desconfortável quando tento explicar, em poucas palavras, as razões culturais de fenómenos chocantes como este, porque pode ficar a impressão de que, por essas razões existirem, estamos a desculpar aquilo que acontece.
Esclarecendo que não é disso que se trata, vou então tentar corresponder ao pedido.
Aviso os leitores, no entanto, que a própria explicação é chocante.

A inclusão de partes de cadáveres humanos nos mais poderosos tratamentos e amuletos destinados a obter e manter riqueza ou poder é uma prática existente em toda a África austral, relacionada, por exemplo, com as mortes e roubos de orgão não transplantáveis de que temos notícia de vez em quando.

A razão para essa prática é dupla:
Em primeiro lugar, é suposto que esse tipo de tratamento se "paga em sangue" (com mortes) ao longo do tempo, sendo a morte da pessoa cujo corpo é utilizado o primeiro pagamento ao espírito que vai trabalhar para garantir riqueza e/ou poder a quem o encomendou.
Em segundo lugar, a integração de partes do corpo do defunto responsabiliza-o com o trabalho desse espírito.

Em Moçambique, que eu saiba, não existe uma predileção pelo uso de albinos nestes tratamentos e amuletos, mas é de esperar que isso possa vir a acontecer a curto prazo.
Isto porque, por um lado, a circulação transfronteiriça de novas técnicas mágicas costuma ser muito rápida e porque, por outro lado, as crenças que servem de base a essa predileção pelos corpos de albinos também existem aqui.

Há um respeitado colega que atribui a crença de que os albinos não morrem, mas apenas desaparecem, à recusa social da sua posição liminar de não serem "negros" nem "brancos". Esse aspecto é pertinente hoje em dia, mas a crença tem raizes mais antigas e razões mais complexas.

É suposto que os gémeos e os albinos resultem de um mesmo fenómeno: foram atingidos por um raio dentro do ventre materno; os gémeos partiram-se em dois e os albinos resistiram, mas ficaram queimados, perdendo a cor.

Em resultado disso, ambos se tornam "demasiado quentes" e "trovoadas sem chuva", sendo um perigo para a harmonia social, para a saúde pública (são kuhisa) e para a fertilidade da terra. Por isso (tal como os abortos, os nados-mortos e as respectivas mães) não podem ser enterrados em terreno normal, pois "secam a terra".
Os gémeos devem ser enterrados em terreno húmido e (para sua segurança) o gémeo sobrevivente deve tratar o falecido como se ele tivesse desaparecido. Não pode ir ao funeral, não pode chorar por ele e, se alguém lhe perguntar pelo irmão, deve dizer que se ausentou para longe.
Concentrando em si (ainda mais do que os gémeos, pois resistiu ao raio) o poder celeste, a ligação ao céu e a ameaça de seca de uma forma suprelativa, o albino é suposto nem sequer poder ser enterrado, mas desaparecer. Os seus familiares mais próximos devem enterrá-lo em segredo, também em terreno húmido, e agir como faz o gémeo sobrevivente, negando a sua morte.

O albino é, de acordo com estas crenças e práticas, a pessoa com mais poderes disruptores e a maior ameaça de "secar o chão", secar a fertilidade e a sobrevivência colectiva.

Ora o enriquecimento individual é visto, tradicionalmente (aliás, à imagem do poder que não redistribui o bem-estar), como um abuso que requer feitiçaria e que é feito à custa da comunidade. Quem enriquece para si próprio "seca" a riqueza à sua volta.
De acordo com esta lógica, então, o uso de partes de corpos de albinos nos tratamentos e amuletos de enriquecimento e/ou poder é uma mais-valia para a sua eficácia.

Por tudo isto, repito, temo que as más notícias que nos chegam da Tanzânia nos poderão começar, em breve, a chegar de dentro de Moçambique.
Convém que os albinos, os restantes cidadãos e os poderes públicos se preparem.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

«Isto não é porreiro, pá!»

Os cidadãos irlandeses, os únicos chamados a referendar o Tratado de Lisboa, disseram-lhe Não.
Ao contrário das primeiras notícias, mais de 53% dos eleitores foram às urnas, pelo que não existe qualquer argumento para que o referendo não seja vinculativo.

O nosso primeiro diz-se profundamento desapontado; por outras palavras, «isto não é porreiro, pá». Entretanto, o Ti Barroso, os eurocratas e aqueles poderosos em geral que acham que os povos nada têm a ver com estes assuntos insistem que os processos de ratificação continuem. Fala-se até de prosseguir a reforma a 26, deixando a Irlanda numa situação liminar que a obrigue a aceitar o facto consumado.

É a noção de democracia desta gente (haver um mandato com base eleitoral que lhes permita, depois de uma série de selecções indirectas, fazer o que quiserem) que, como tinha dito aqui, mais me desagrada em tudo isto.

Por um lado, no processo de aprovação. Mas, parafraseando a opinião do Ti Coelho acerca dos independentes, os povos são muito imprevisíveis. E, dizem que parafraseando o Brejnev, as eleições também. Mais vale evitar que eles votem no que é importante, pois podemos perder.

Por outro lado, e mais importante, porque este Tratado - sendo uma alteração essencial, numa ocasião única para repensar e aprofundar a integração europeia - apenas se preocupa em resolver as limitações à tomada de decisões envolvendo os "representantes" governamentais dos diferentes Estados. Mantendo as decisões restringidas a eles.
E confesso que me estou nas tintas para as dificuldades que os senhores primeiros-ministros possam enfrentar na tomada de decisões a 27, implicando unanimidade numas e maioria qualificada noutras. Sendo esse o problema, continuem a arranjar consensos, em vez de passarem a impor os interesses dos mais fortes e influentes.

O que está por resolver, e terá que ser resolvido numa efectiva reforma da União Europeia, é a sua democratização - que inevitavelmente passará pelo reforço muito significativo do poder do Parlamento Europeu, mesmo que com um Senado "à norte-americana" para equilibrar as questões nacionais.
Que a uma democracia indirecta, estamos nós habituados. Uma indirecta de indirecta de indirecta, só mesmo os governos e eurocratas podem levar a sério.


Entretanto, enquanto escrevia este post tive a satisfação de poder mandar um grande abraço a amigos holandeses, pela vitória futebolística de há pouco.

É que tenho uma simpatia muito especial por essa terra abaixo do nível do mar. Não só é um óptimo sítio para viver, como os seus habitantes têm uma característica que os diferencia muito dos portugueses e moçambicanos, e com a qual aprendi muito:
Enquanto nós, sob o peso histórico do hábito do fascismo (ou, por aqui, do colonialismo e do autoritarismo pós-independência) temos como primeira reacção encolher-nos perante a "autoridade", eles têm como primeira reacção reclamar de abusos sobre os seus direitos de cidadãos.
Suponho, por isso, que mesmo os mais conservadores concordariam com o que aqui deixei escrito, se conseguissem ler português.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Actualidade "engorda" blogs

Com um empurrão dos empresários hooligans, da selecção portuguesa e dos anacronismos do presidente, a comunidade dos que por aqui passam ultrapassou ontem as 2.000 almas.

2.057 para ser exacto, dos quais 1.401 vão voltando.

As questões de actualidade têm, de facto, "engordado" as audiências. Só ontem, passaram por aqui mais de 270 pessoas.

Mas este blog não é, nem pretende ser, um sucedâneo dos jornais.
É um espaço onde as notícias do momento também têm lugar, comentadas pelo olhar, não da antropologia, mas de um antropólogo particular e intransmissível.
A par de muitos outros temas, estruturantes ou relativamente marginais, e até, pasme-se, de antropologia (aquela coisa que, para além de dizerem que é ciência, tem sempre umas curiosidades giras de ler, por falar de sítios e gentes que não conhecemos, ou que julgávamos conhecer).

Por isso, convido os que por aqui passem pontualmente, vindos de um qualquer link noticioso, a dar uma voltinha - ou uma "oftálmica", como dizia o meu colega Chico Oneto nos seus tempos de estudante.
Pode ser que alguma coisa vos interesse.
E pode ser que tenham coisas a dizer acerca de algum dos assuntos que por aqui estão, enriquecendo-nos a todos com o vosso comentário.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Ó p'ra mim a gritar «Portugal!»

3 a 1 bem merecidos.

Entretanto, o homem atropelado ontem não era, afinal, um camionista, mas o proprietário de uma empresa de camionagem.

Isso nada retira ao pesar pela sua morte, ou ao seu absurdo. Mas, pelo menos, morreu pelos seus interesses e não pelos do patrão.
Aqui me corrijo, pelo erro induzido por aquele jornal de referência para quem é tudo a mesma coisa.

O governo, entretanto, continuou negociações e chegou a acordo com uma associação patronal abandonada (tacticamente?) pelos seus sócios.
Só os sindicatos que põem em manifestações de rua mais de metade dos trabalhadores do seu sector são, ao que parece, socialmente irrelevantes.

Hoje não há bloqueios de estradas

(clique para aumentar)

Notícias relacionadas: aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

Bola aqui, aqui e aqui. Bibó!

terça-feira, 10 de junho de 2008

A concorrência mata

De repente, sinto-me mais seguro em Moçambique, mesmo com o barril de pólvora do Zimbabwe ao lado e a xenofobia sul-africana em baixo.

A uns milhares de quilómetros de distância, saber que há bloqueios de estradas em que um homem é atropelado mortalmente por se tentar agarrar a um camião em andamento (certamente para lhe perguntar, como diz o líder da barragem, «se desejava aderir à paralização», e não para lhe mandar uma mocada na cabeça, ou coisa que o valha), numa acção de protesto de empresas de camionagem que também usam os empregados como carne para canhão, suscita-me analogias que me recuso a escrever aqui.

E choca-me que, no meio deste impune lock-out, em que empresários apedrejam, intimidam, desviam e agridem (directamente ou através dos seus assalariados, que agora até morrem) os empregados da concorrência que não adere à sua paralização, o primeiro-ministro que conhecemos fale de «direito de manifestação», mas sem «danificar propriedade alheia» e promete «a ajuda que puder».

Uma analogia, no entanto, não posso calar. A Primeira Guerra Mundial (ou, se preferirem outra mais próxima, as Guerras Coloniais/De Libertação).

Porque, sobretudo, há que dizer:
Coitado do homem que morreu a defender os interesses do patrão!
Coitado do homem que o matou, a defender, mais do que o coiro, o camião e a entrega do patrão!

Nova Constituição?

Está a levantar justificada celeuma o lapso freudiano de Cavaco Silva, ao chamar «Dia da Raça» ao 10 de Junho, como nos tempos da outra senhora.

Bem... Não se abespinhem tanto.
Quando se elege para Presidente da República um político que justificou o facto de nunca ter levantado um dedo ou uma palavra contra o fascismo por «ter que trabalhar» ("a minha política é o trabalho"), coisas destas podem acontecer.

Mas vi aqui uma coisa que poderia ser a solução para este tipo de problemas.
Em 1926, um historiador brasileiro propôs uma Constituição com um artigo único:

«Todo brasileiro fica obrigado a ter vergonha na cara.»

Bastaria substituir "brasileiro" por "português".
E daí, talvez não. Parece que este pessoal do poder não é muito de cumprir leis.

35 anos de atraso

Para matar as saudades do presidente do meu país, que ainda julga que hoje é o "Dia da Raça", aqui deixo a Valsinha das Medalhas, de Carlos Tê e Rui Veloso.

Já chegou o 10 de Junho
O dia da minha raça

Tocam cornetas na rua
Brilham medalhas na praça

Rolam já as merendas
Na toalha da parada
Para depois das comendas
E ordens de torre-e-espada

Na tribuna do galarim
Entre veludo e cetim
Toca a banda da marinha
E o povo canta a valsinha

Encosta o teu peito ao meu
Sente a comoção e chora
Ergue um olhar para o céu
Que a gente não se vai embora

Quem és tu donde vens
Conta-nos lá os teus feitos
Que eu nunca vi pátria assim
Pequena e com tantos peitos

Já chegou o 10 de Junho
Há cerimónia na praça
Há colchas nos varandins
É a guarda que passa

Desfilam entre grinaldas
Velhos heróis de alfinete
Trazem debaixo das fraldas
Mais índias de gabinete

Na tribuna do galarim
Entre veludo e cetim
Toca a banda da marinha
E o povo canta a valsinha

Encosta o teu peito ao meu
Sente a comoção e chora
Ergue um olhar para o céu
Que a gente não se vai embora

Quem és tu donde vens
Conta-nos lá os teus feitos
Que eu nunca vi pátria assim
Pequena e com tantos peitos

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Patrões são outra loiça

Vai caricato o lock-out de parte dos patrões da camionagem.

Piquetes de "greve", com ameaças de apedrejamento, violência física e danos nas viaturas de quem não quer paralizar.
Com a falta de «apoio generalizado da classe», ameaças de que irão «entupir completamente Lisboa e Porto» e declarações de que não vão «incendiar camiões e pontes como os espanhois mas temos que vencer esta luta» - que são, elas próprias, ameaças de que o poderão fazer. Mesmo que talvez mais do estilo "agarrem-me se não vou-me a eles!".

Que faz o nosso primeiro, tão cioso de ordem pública e tão lesto a ordenar cargas policiais sobre, por exemplo, reais piquetes de greve frente aos aterros sanitários? Apela ao diálogo com a associação empresarial do sector, ao arrepio de todo o seu hábito e estilo, relativamente a reivindicações de trabalhadores.

Entretanto, no Público, os patrões de camionagem passaram já oficiosamente a "camionistas". Portanto, os banqueiros deverão passar, em breve, a ser chamados "bancários" no jornal.

Estou a repetir-me, mas isto é obsceno.

domingo, 8 de junho de 2008

Vá lá, amigos, não façam lock-out...

Em Portugal, os patrões das transportadoras rodoviárias preparam-se para paralizar a actividade a partir de 2ª feira.

Não é preciso ser constitucionalista para saber que uma "greve" de patrões (conhecida por lock-out) é proibida desde 1976, nunca tendo esse artigo da Constituição sido posto em causa, nas infindáveis revisões que lhe foram sendo feitas.
Parece, no entanto, que só os sindicatos se lembram desse aspecto irrelevante dessa Lei irrelevante.

O governo parece não ter ninguém que perceba de leis, nem ter centenas ou milhares de técnicos e acessores jurídicos.
Perante essa acção ilegal de patrões, limita-se a pedir-lhes uma atitude responsável, para poder continuar calmamente as negociações.

As cargas policiais, as requisições civis, os processos disciplinares, são para os trabalhadores que exerçam o seu legal direito de greve, face à arrogância negocial do patronato privado ou estatal. Para a ralé, enfim.
Ao patronato que anuncia ir quebrar a lei, pede-se paciência, que a gente lá vos dará o que vocês querem.

Isto já não é uma questão de um governo estar mais à esquerda, ao centro ou à direita.
Isto é pura obscenidade política e social.

(Entretanto, o Público on-line deu em chamar "trabalhadores" aos empresários, no título e na legenda da foto deste artigo...)

A Senhora das Especiarias

A Samya, que suponho ser brasileira vivendo na região de Paris e trabalhando no Museu do Homem (o que seria um sonho meu, mesmo detestando museus, não fosse este post dela), fechou O Labirinto de Arianna e continua no Sonhos Coloridos (fotos) e n'A Senhora das Especiarias (textos).

Deste último, transcrevo um post que dedico àqueles que sonham fazer da Europa uma fortaleza fechada e triste:

«Esta semana alguns amigos extrangeiros não europeus que vivem aqui na França receberam, assim como os franceses e outros europeus a declaração do imposto de renda. Tudo isso seria banal se não fosse por um pequeno mas decisivo detalhe: eles são clandestinos no pais e não têm a menor esperança de ser regularizados a não ser que mude o governo ou que consigam um casamento com um cidadão europeu.

Como explicar a essas pessoas, que trabalham, que têm filhos na escola mas que não são considerados cidadãos, que estão a pagar impostos que serão usados entre outras coisas para pagar aposentadorias de franceses que votaram para um candidato que prometia entre outras aberrações "expulsar todos esses extrangeiros que se aproveitam do estado social francês". Esta falando de quem cara-palida?

Estou na Europa a pouco mais de dez anos, com o passar dos anos, com a idade mais avançada e com essa experiência impagavel que é o contato com o outro eu sei que me tornei uma pessoa melhor.

Mesmo depois de todos esses anos e uma feliz regularização ainda vive dentro de mim uma rebelde passional e idealista que as vezes por cansaço ou comodismo, tenta me abandonar e eu vou la, agarro o bicho com unhas e dentes, choro e grito e peço a ela que não va, porque iria junto a minha dignidade como cidadã, minha realidade como ser humano.

Não quero viver em paz se o meu vizinho dorme com medo de ser acordado pela policia, quando o unico crime é o de ser o outro, o que assusta porque a cor da sua pele é diferente, porque se ajoelha diante de um outro deus, porque sua lingua é escrita com um outro alfabeto.

E me sinto responsavel a cada dia, porque tenho a sorte de ter um passaporte europeu e isso me faz aos olhos da lei um pouco menos diferente, um pouco menos perigosa.

Acredito piamente, que cada um de nos, extrangeiros não europeus que aqui estamos, temos que fazer tudo, o possivel e o impossivel para que esta situação mude. Não temos o direito moral de nos acomodarmos com nosso papelzinho, com nossa carta de identidade.

O outro sou eu. Ponho meus documentos, minha educação, meu tempo disponivel, a serviço de quem tem o mesmo direito mas menos reconhecimento social e civil. E tenho verdadeiro horror, desprezo e raiva de quem não faz o mesmo.»

sábado, 7 de junho de 2008

A ouvir golos em Maputo

Acabei de ouvir os 2 golos do Portugal X Turquia.

Ouvir, porque me convenci, lá por alturas do intervalo, que nem a televisão estatal moçambicana (detentora dos direitos cá no burgo) nem a RTP África ou Internacional iriam transmitir o jogo.
A primeira, deve ter achado mais importante o Suiça X República Checa, talvez pela importância da Missão Presbeteriana na história da Frelimo e da libertação nacional.
As outras, devem ter achado que não se justificava pagar à TVI para assegurar a transmissão internacional (não haverá nenhuma cláusula de interesse público nestes casos, tão perto do 10 de Junho de tanta coisa?), mantendo a habitual programação "para-emigrante-que-é-imbecil-e-quer-é-fado-e-vira" e/ou "para-preto-que-come-o-que-a-gente-lhe-der-e-que-se-lixe".

A piada é que não tenho rádio. Ouvi os golos em rádio on-line no computador - um canhão para matar moscas.
Apesar de tudo, um pouco menos ridículo do que ficar sentado frente à televisão sem imagem, a ouvir a RDP através da TV Cabo...

O drama é que não sei se os golos foram bons ou não. Só que o senhor que gritava golo berrava muito tempo, ficava a meio com uma voz aflautada e, no fim, rouca. Suponho que faz parte, quer tenha sido uma jogada histórica ou um frango num atraso para o guarda-redes.
Também não sei se o jogo foi bom ou não. Só sei que a voz dos senhores galopava, fosse o que fosse que comentassem, que se contradiziam e que não faço ideia se posso confiar naquilo que eles acham, estando eles com aquele speed todo.

Suponho que são limitações de já se ter visto, na televisão lá de casa, o homem descer na lua em 1969...

Já agora, peço a quem viu que me diga como foi.
Eu fiquei sem imagem. Como este post.

Para outra gente na minha situação, aqui estão os golos, cortesia do Ridwan. Obrigado.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Mais 2 autistas no clube

Ontem, mais de 200.000 pessoas manifestaram-se em Lisboa, contra a revisão do Código do Trabalho.

O nosso primeiro comentou que os números não o impressionam.
O ministro do trabalho já tinha dito que não iria alterar a lei, independentemente do número de pessoas que estivessem na manifestação.

É oficial! O autismo pega-se e já aí anda uma epidemia.
Reparem que estes dois foram infectados pouco depois de Mugabe e da Ministra da Educação.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Citações de café (7)

- Não se preocupa que as tradições estejam a mudar?! Então o trabalho dos antropólogos não é preservar as tradições?

- Não. Os antropólogos não são geleiras de culturas.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

As palavras faltam

A polícia zimbabuéana deteve novamente Morgan Tsvangirai.

Ouvi na CNN e não acreditei que fosse possível, confirmei e é verdade.

Faltam mesmo, as palavras. Pelo menos aquelas que possam ser publicamente legíveis.

Leiam antes as palavras da notícia e leiam outras. Por exemplo, estas, estas, estas, estas, estas, estas, estas, estas, estas, estas, estas e estas.

Linchamentos e aprendizes de feiticeiro

Carlos Serra tem vindo a divulgar as respostas de crianças de escolas primárias às perguntas (feitas numa pesquisa que coordena) sobre: (1) o que se deve fazer a um ladrão?; (2) o que se deve fazer a um feiticeiro?
A resposta que aqui reproduzo é uma das mais soft, pois aos ladrões "só" se devem cortar os dedos, e não matá-los.

Não consigo deixar de pensar numa pesquisa anterior muito "badalada", que incluía intervenção social - o mega-projecto sobre Justiça em Moçambique, tribunais "formais" e comunitários, direito local e pluralidade jurídica, coordenado há alguns anos por Boaventura Sousa Santos.

No seminário em que foram apresentados os seus resultados, alguém insistiu para que um participante no projecto dissesse também algumas palavras. A contra-gosto, o colega lá teve que reconhecer que todo o processo lhe tinha deixado mais dúvidas no fim do que no início, onde tudo parecia bonito.
E contava. No terreno, veio ter com ele um régulo, dizendo que tinham um problema criminal e perguntando como devia tratar do assunto.
- De acordo com as vossas regras e costumes. É esse o nosso objectivo.
- Está bem. Então, queimamos a feiticeira.

Assisti, um par de anos depois, ao julgamento em tribunal comunitário de um caso de violência doméstica.
Como, farta de ser agredida ao longo de anos, a mulher tinha feito da última vez o acto inconcebível de se virar ao marido, passou, em poucos minutos, de queixosa a suspeita de feitiçaria.
Reunido um tribunal especializado acerca deste novo assunto, foi também rapidamente declarada culpada, com base em meios de prova de que me recuso a falar aqui.

Há duas perguntas que não me saem da cabeça:

Qual será a contribuição (e quota-parte de responsabilidade) do projecto de Boaventura para a quase unanimidade de respostas linchatórias que a equipa de Carlos Serra está agora a receber das crianças?

Em que medida é que projectos interventivos bem intencionados, que se julgam emancipatórios e respeitadores da diferença de abstractos povos "puros", de "bons selvagens", não funcionam como aprendizes de feiticeiro com consequências potencialmente terríveis?

Nas páginas finais deste artigo, tinha feito algumas reflexões, no abstracto, acerca deste tipo de questões.
Mas o concreto doi mais. E mata.

O ministro, as praxes e os cretinos

Mariano Gago, prometeu denunciar ao Ministério Público todos os responsáveis de universidades e institutos politécnicos que pactuem com praxes violentas, mesmo que por omissão.

Só posso gritar: «Força!»

Cruzei-me com praxes na tropa, denunciei o seu carácter nefasto, degradante, perigoso e gratuíto (e vários casos concretos) no Jornal da CASMO que deus tenha e no livro Casualties in Peacetime – a study on violence and intimidation in the armed forces in Europe, em que colaborei.

Como trabalhador-estudante universitário, lá tive que pregar um par de sopapos num cretino que, depois de obrigar uma colega lavada em lágrimas mimar uma cena de sexo oral com um vibrador, a tentava forçar a masturbar-se publicamente, em cima de uma mesa no hall de entrada do Instituto.

Como professor, o único código estético que exijo nas aulas é que, para assistirem, os alunos vão lavar as palavras "puta", "paneleiro", "burro(a)", "merda de cão" ou outras que lhes tenham pintado na cara.
E, a seguir, o tema da aula torna-se os ritos de passagem, a dignidade humana, o autoritarismo, a submissão, a ausência de valores integradores positivos nas praxes académicas e a sua história - desde o código de auto-policiamento exigido aos estudantes quando, há séculos, a Universidade tinha direito privado, até um sistema de reprodução da submissão, autoritarismo e humilhação, que os próprios "veteranos" de Coimbra aboliram no seu tempo.

Não é muito, mas é o que me foi até hoje necessário.
No entanto, a própria lei me exige que, como qualquer outro cidadão, intervenha caso presencie agressões ou casos graves de coerção. Se não o fizer, não sou apenas moralmente conivente; sou criminalmente responsável por omissão de auxílio.
Para com pobres coitados que aceitem ser humilhados por cretinos naquilo que consideram uma brincadeira pesadota (e para com os próprios cretinos que foram antes pobres coitados), poderemos ficar pelo debate pedagógico ou mesmo um pontual insulto.
Mas perante acções violentas e/ou atentatórias da dignidade que caem sob alçada criminal, quem sabe, nada faz e teria poder para fazer é, também, um criminoso.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Nem quando o gajo for Presidente!

No jogo do diz-que-disse da capital do império, tivemos hoje a notícia de que Hillary Clinton iria reconhecer a derrota nas primárias, e o seu veemente desmentido.

Lembra-me aquela pergunta que o Jon Stewart fez ao Obama, quando o entrevistou no programa:

- E acha que, depois de vencer as primárias, de vencer as eleições e de já estar na Casa Branca, vai descobrir que Hillary Clinton ainda é candidata à nomeação democrata?

- Pode acontecer...

4/6: Afinal, segundo a CNN, Obama já venceu! O que não quer dizer que Hillary Clinton não vá tentar ainda umas jogadas de bastidores, continuando o ridículo e os dirty games dos últimos tempos...

Combate à pobreza

Tractor arrasando machambas plantadas nos terrenos de uma entidade pública, sem aviso prévio a quem as plantou e cuidou, para que pudessem colher o que fosse possível.

Uma das cultivadoras, ao chegar na madrugada seguinte.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Os brinca-na-areia

A sério. Vale a pena ver a publicidade da ESPN à selecção portuguesa para o Euro 2008.

E também o Reflexões de um Cão Com Pulgas, de onde roubei o link.

A morte que Mugabe quiz queimar

TONDERAI NDIRA - 1975/2008

Tonderai Ndira, líder do MDC na região de Harare e "recordista" de detenções e torturas sob o regime de Robert Mugabe, foi assassinado por um esquadrão da morte das forças de segurança zimbabuéanas, algures entre 14 e 21 do mês passado.

O número do jornal The Zimbabwean em que o seu assassinato era relatado (impresso na África do Sul devido à impossibilidade de o fazer com segurança no país) foi queimado junto com o camião que o transportava, por um comando claramente ligado ao regime, que igualmente agrediu o condutor e o seu ajudante.


Os líderes dos países mais influentes da região continuam a insistir nas virtudes da "diplomacia silenciosa", principal responsável por esta situação.

domingo, 1 de junho de 2008

Gémeos, albinos e prisioneiros desaparecidos



Está finalmente em fase de "acabamentos" o artigo «Twins, albinos and vanishing prisoners - a Mozambican theory of political power».

Tentarei disponibilizar logo que possível uma tradução em português.
Entretanto, aqui fica o resumo, esperando pela vossa crítica e sugestões:

Tal como era já mencionado em referências etnográficas há muito conhecidas, os gémeos e albinos são vistos, no sul de Moçambique, como o resultado e causa de calamidades cósmicas.
Eles foram atingidos por raios no útero das suas mães e secarão a terra, a menos que sejam sepultados em terreno húmido, ou simplesmente "desapareçam".
As condições especiais que são impostas às suas vidas e mortes foram extrapoladas, em décadas recentes, para conceber uma categoria inesperada de pessoas: os prisioneiros políticos desaparecidos quer das cadeias coloniais, quer enviados pelo Estado para "Campos de Reeducação" na pós-independência. Contudo, essa imagem não foi aplicada aos chamados "improdutivos" que desapareceram exilados no Niassa, durante a "Operação Produção".
As crenças acerca de gémeos e albinos foram utilizadas para expressar uma avaliação moral acerca do poder político: é socialmente ameaçador pôr em causa o poder estabelecido; mas é ilícito, para um poder legítimo, tomar decisões injustas acerca do povo que está sob sua responsabilidade.