domingo, 30 de setembro de 2007

Camarão à Antropólogo, aka Camarão à Pai

A antropologia tem, por vezes, resultados inesperados. Este é gastronómico.

Quando estudava a refinaria de Sines, convivia bastante com um operador de consola que fazia gala em falar comigo de tudo menos do seu trabalho. O Canotilho é uma pessoa muito assertiva e, durante um jantar em sua casa, soltou no seu estilo lapidar: «Isso de camarão cozido é só do pequeno. Camarão grande é para fritar em cerveja!»
A coisa ficou-me a marinar no bestunto e, na ausência de mais explicações, acabou por resultar na primeira receita que inventei, na tentativa de desvendar esse mistério do "fritar em cerveja".

A coisa faz-se assim:

Descasca-se um meio quilo de camarão de bom tamanho, deixando agarradas a cabeça e a ponta da cauda e dando um corte fundo ao longo das "costas" dos bichos.
Num wok ou numa frigideira alta, põe-se uma talhada de margarina a derreter (suficiente para fritar os animaizinhos, mas não para os afogar), com sal, meia cabeça de alhos cortados às tiras e duas malaguetas, daquelas pequeninas e mal-dispostas.
Quando essa mistura já frita em lume forte, metem-se lá os camarões e viram-se quando necessário, para levarem uma fritura ligeira mas geral, a toda a volta.
É nessa altura que se espreme limão (um pequeno, ou metado de um grande) e se dão umas borrifadelas de molho de soja.
Após umas rápidas voltas que vão homogeneizando o molho, deita-se cerveja (de preferência Super Bock ou, em Moçambique, Manica) até os camarões ficarem submersos. Mexe-se de novo e deixa-se tapado, agora num lume brando mas suficiente para manter fervura.
Quando o cheiro muda e se torna irresistível, ao mesmo tempo que o molho engrossa sem deixar de ser líquido, a coisa está pronta.
Sirva-se com arroz branco ou "à guloso", apenas acompanhado de pão para ensopar o molho.

Este prato, chamado "Camarão à Antropólogo" (era originalmente "à Antropólogo Industrial", mas os convivas achavam que isso dava uma imagem poluída ao assunto), foi crismado "Camarão à Pai" quando não se usam as malaguetas.

Fado do Esgraçadinho, versão Canis Lupus

Joguei rugbi, na minha tenra adolescência.
Primeiro, num aproximativo clube de liceu onde os jogadores-treinadores mais velhos não se deram ao trabalho de verificar o meu ano de nascimento, pelo que tive a sorte de jogar a 3/4 ponta na equipe do escalão seguinte, em vez de andar a martirizar putos com a minha idade mas metade do tamanho.
Depois, num clube à séria, onde treinava a médio de abertura mas quase nunca jogava, por haver um outro que era bem melhor do que eu para o lugar.

Suponho que a simpatia inicial pelo jogo se ficou muito a dever às regulares transmissões televisivas do então Torneio das Cinco Nações, em que um avanço da linha de 3/4 do País de Gales enchia bem mais o olho do que 2 horas de saltos de ski, que os jogos de hóquei em que não se via a bola, ou mesmo que as anuais transmissões da final da Taça de Portugal e do G.P. do Mónaco.
Essa simpatia desenvolveu-se muito, depois, com a sua prática. Talvez pelos ventos revolucionários da altura, tinha deixado de ser uma modalidade de "betos" sobrealimentados, como dizem que de novo é. Dava gozo jogar e tinha aspectos de fair-play quase aristocrático, como o túnel que os vencidos faziam para aplaudir os vencedores (depois retribuído por estes), ou o facto de nunca ter sido aleijado deliberadamente por um adversário - ao contrário da contínua carga de pancada com que fui brindado no meu único jogo oficial de andebol.

Em suma, é um desporto que gosto muito de ver e que gostaria ainda de praticar, se existisse a um nível de solteirosXcasados e eu não me tornasse um segundo Mr. Magoo logo que tiro os óculos.
Por essa simpatia, mais me pareceu desprezível o faduncho armado em torno da participação - tirando esse aspecto, digna e louvável - dos tais de "Lobos" no mundial de rugbi.
«Para mim foi como se fossem campeões» por perderem por poucos com a Roménia? «Foram verdadeiros heróis» por marcarem um ensaio à Nova Zelândia? Haja paciência e decoro!
Uma equipe amadora comportou-se decentemente num desporto que, como quase todos, é profissional. Num desporto em que há selecções cujos jogadores nem sequer jogam em clubes, mas apenas nelas. Óptimo. E então? Embarca por isso um país na retórica dos "pobrezinhos mas honrados", das "vitórias morais", dos "Davides contra Golias", quando são 15 para cada lado e as condições ou se criam ou não podem ser criadas, mas só servem de atenuante e eterna justificação para quem se habitua à mediocridade?

Disse-se que esta campanha mundialista foi uma enorme acção de divulgação do rugbi.
Foi, sobretudo, um hino à auto-complacência e uma reedição do Fado do Esgraçadinho. A mensagem passada aos potenciais novos praticantes da modalidade foi: «Venham ser uns perdedores esforçados, com um g'anda par de tomates, uma g'anda desculpa para as derrotas e um país a apaparicar-vos».
Pode ser que aqueles rapazinhos musculados e os jornalistas entusiasmados (mesmo que não saibam escrever "talonador" ou em que é que isso consiste) se revejam neste filme, tão conhecido de outras eras. Mas quero crer que a chavalada não. Felizmente.

Se a ideia é prestar um serviço à divulgação do rugbi, mais valeria televisionarem em canal aberto os jogos finais do campeonato.Afinal, o que leva putos para o basquetebol é a beleza dos jogos da NBA. Não é a selecção nacional (profissional, elàs) a, muito esforçadamente, quase ganhar jogos.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Birmânia

Não é inesperado e duvido mesmo que alguém acreditasse que não iriam haver cargas, mortos e feridos.
Tão pouco que não fosse presa muita gente para "interrogatório" sob tortura, ainda por cima por mera punição e nem sequer para obter qualquer informação relevante.
A barbárie em estado puro, enfim, de quem sente direito a poder absoluto e o direito de matar e punir com sofrimento quem o questione.

É inaceitável e chocante o que aconteceu, mas mais inaceitável ainda é a prática e a visão de poder que lhe subjaz.
Tendo na memória histórica poucas e curtas ditaduras militares, a par desse particularismo (embora não de todo exclusivo) de termos vivido um golpe militar com objectivos democráticos, temos tendência a vê-las como uma coisa meio folclórica, ou típica de países "ingovernáveis", como se tal coisa existisse. Só acordamos com sangue em directo, como se fosse tolerável o poder de senhores da guerra, obtido e mantido pela posse das armas, nas tintas para qualquer vontade ou consenso de quem não as tem.

Em abstracto, nada disto se torna mais grave pela presença mobilizadora de religiosos. São tão pouco inatacáveis, detentores da verdade ou "reservas morais da nação" como os militares com apetites de poder. Podem até encabeçar chamadas à violência generalizada, em defesa de hegemonias próprias, como as recentes freirinhas timorenses. Na Birmânia, contudo, tiveram o eloquente papel de usar o seu estatuto para demonstrar e expressar o consenso da sociedade - o que é muito e vale muito.

É esse consenso que está a ser reprimido. De uma forma tão mais merecedora da nossa admiração e da nossa solidariedade quanto, como comecei por dizer, as cargas, os mortos e os feridos eram previsíveis - e muito mais para quem desfilou do que para nós.