quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Farsas e tragédias

in Domingo

Numa altura em que o norte de Moçambique é desflorestado em grande velocidade por explorações madeireiras rapaces e descontroladas, as actuais retóricas acerca de uma tal de “Revolução Verde” (que não é a da Líbia) traz-me sempre à memória uma velha anedota e uma ainda mais velha citação.A coisa acaba sempre, assim, por cair um bocado no jocoso.

Esse tom passa bastante pelo post que se segue e, para vos convencer a lê-lo, começo pela anedota:

O patrão de uma lojeca de esquina repreendeu o empregado por ter dito a um cliente que não tinha o produto que ele pedira.

- A gente nunca diz que não tem! Não temos isso, mas temos sempre outra coisa que serve muito bem para o que o cliente quer. É preciso é convencê-lo.

Pouco depois, dizia o empregado a uma cliente:

- Pois… papel higiénico de momento não temos. Mas, para o que a senhora deseja, temos aqui uma lixa nº3 que é um mimo!

O que possa ser a tal de “Revolução Verde” (para além do que em seguida explicarei), ninguém sabe porque ninguém diz.

O que se sabe, porque é a única coisa que entusiasticamente se fala e diz planear, é que ela é, nem mais nem menos, a produção extensiva de bio-combustíveis para um mercado internacional que se espera em crescimento exponencial – sendo de pressupor que isso só possa a ser feito tanto pelos camponeses, em detrimento da produção alimentar, como em grandes farms, estas provavelmente instaladas em terrenos de onde os camponeses sejam corridos, em troca de locais a que nos EUA se chamariam “reservas”.

Não interessa se o representante local da FAO disse, com pezinhos de lã (pois, por aqui, só falam com botas cardadas o Banco Mundial e o FMI), que isso agravaria os problemas de fome e segurança alimentar. Não interessa se os velhos teóricos periféricos do subdesenvolvimento, embora não tenham criado receitas eficazes para resolver o problema, apontaram bastante bem as suas causas e mecanismos de reprodução – incluindo, em lugar de destaque, estes grandes projectos/desígnios de monoculturas para exportação sem valor alimentar local.

É, pelo menos na retórica, um imperativo de Estado – apadrinhado, claro está, pelos ditos BM e FMI – e isso basta.

Convém notar que a agricultura é, em Moçambique, uma coisa um bocado chata para as estatísticas.

Embora produtos agrícolas de primeira necessidade sejam, no essencial, a única coisa que o país produz para além de electricidade (Cahora Bassa), alumínio (Mozal), consultorias para as ONGs e, agora, madeiras nobres (enquanto as houver), e embora uma parte não negligenciável dessa produção acabe por ser comercializada, é-o nessa cena antiquada que passa ao lado de lojas registadas, impostos e controle estatal. Sobretudo, ao pessoal (seja produtor ou comprador) dá-lhe para comer esses bens económicos, que por isso não podem ser exportados.

Mas há sempre, como saída, a grande lição do patrão da lojeca, tão bem aprendida pelo seu empregado:

- Não temos petróleo (até ver), mas vamos cobrir o país de futuros bio-combustíveis!

- Não temos a colonial produção compulsiva de algodão (de que tão justamente se disse todo o mal que havia a dizer), mas teremos a “globalizada” Revolução Verde!

( Como antes se poderia ter dito:

- Não temos a Lei do Passe do apartheid, mas temos a Operação Produção! )

Entretanto, novas nostalgias e substituições se perfilam, num outro registo, como prefigura o artigo que ilustra esta diatribe (clique nele para aumentar):

- Já não temos Campos de Reeducação, Aldeias Comunais e deportações para o Niassa, mas temos uma nova Revolução (Verde) para organizar o desorganizado povo!

- Não mandamos em nós, mas mandamos nos camponeses!

Chega agora a citação:

O velho Marx tinha dito, no “18 de Brumário de Louis Bonaparte” se a memória não me atraiçoa, que a história se repete, uma vez como tragédia e a segunda como farsa.

Creio que o meu amado barbudo se enganou:

As réplicas farsolas podem ser muito mais do que uma. Podem até tornar-se um hábito.

E essas farsas podem facilmente transformar-se em tragédias.

sábado, 26 de janeiro de 2008

(Re)Parabéns, Irene Pimentel!




Isto é resultado de uma mistura de nomadismo profissional, globalização da informação e terceiro-mundismo:

Como a coisa aconteceu quando me estava a instalar em Maputo, ainda de malas às costas e sem acesso à net, só há minutos atrás fiquei a saber da atribuição do Prémio Pessoa 2007, numa casual referência cruzada durante uma navegação acerca de outro tema. E deu-me um enorme prazer sabê-lo.

Muitos parabéns, minha "comadre" Irene Pimentel!

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

«It’s just the starting engine» - The status of spirits and objects in south Mozambican divination



A current complete tinhlolo set (image 1)


Tenho-me esquecido de ir actualizando os Artigos XXL - ou seja, aqueles que vão sendo publicados em papel.
Uma das razões é o trabalho que dá reformatar as notas e inserir as imagens uma a uma...

Cá fica um deles, a publicar no livro Divination on South-Saharan Africa, editado por Wouter van Beek e Philip Peek na Brill Publishers.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Até as mortes, meu Deus?


O tratamento noticioso das actuais cheias no centro de Moçambique cada vez me deprime mais.
Deixei escrito, há 4 dias atrás, que uma morte é uma desgraça absoluta. Os números são indicadores importantes (uma coisa é morrerem 7 pessoas, outra é morrerem 7.000) mas, em termos humanitários, apenas isso.
Entretanto, ficaram-se ontem a saber, pelo jornal Notícias, as causas de morte das 7 pessoas contabilizadas como vítimas das cheias. 4 morreram devido a arrastamento pelas águas e 3 por ataques de crocodilos, quando pescavam e tomavam banho.
Fiquei a saber que, ou as pessoas não pescam nem tomam banho quando não há cheias, ou até os mortos se manipulam.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Terra à vista

foto Notícias


Com a diminuição das descargas de Cahora Bassa, a água vai baixando no Zambeze e a crise parece estar passada.

Volto a louvar o Instituto Nacional de Gestão de Calamidades, pela abordagem prospectiva e atempada da situação.
Comentava hoje um colega, de forma algo blasé, que são previsíveis as zonas que irão alagar. Sê-lo-ão, certamente; mas para transformar essa previsibilidade em resposta eficaz é necessária planificação, organização e competência.
No dia em que (dream on...) essas características passem a estar presentes, ao nível exigível, nas instituições públicas - aqui ou noutros países, incluindo as estruturas de protecção civil - deixarei de me sentir na obrigação de as louvar.

A partir de agora, lá voltará o pessoal a casa - nuns 20.000 casos, segundo as estimativas iniciais, a reconstruir.
Voltarão também as polémicas citadinas acerca da suposta "burrice" e "casmurrice" das populações zambezianas.
Depois de cada cheia nesta zona, as instituições estatais costumam dar apoio em cimento, chapas de zinco e comida, a quem construa casas em alvenaria nas zonas altas. As pessoas têm, pelo seu lado, que fazer os tijolos e construir, o que não é complicado face às tipologias de habitação e aos saberes existentes.
Acontece que grande parte das pessoas costumam receber os materiais e ir construir em zonas alagáveis, apesar das acções de sensibilização.
Para alguma gente discutindo o assunto na poltrona da sua sala, afinal, «eles (e/ou os respectivos régulos) estão mesmo a pedi-las».

É esquecer, para além das razões simbólicas e micro-políticas, uma coisa simples: Sobretudo para populações ribeirinhas, porque é que se havia de partir os rins a cultivar terras secas e pouco férteis, quando estão ali disponíveis terrenos de aluvião, já bem conhecidos?
Depois, já mostrava Adolfo Yañez -Casal, no seu livro Antropologia e Desenvolvimento: as aldeias comunais de Moçambique, quando uma pessoa se desloca a pé para fazer trabalhos agrícolas, a distância é uma variável essencial da racionalidade económica. A partir de certa altura, o tempo gasto na ida e vinda à machamba torna-se contraproducente. Ou seja, cultivar à beira rio implica não morar a grande distância da margem.

Com tanto dinheiro correndo para tantos estudos (quer os das sucessivas "modas" academico-oénegéticas, sempre repetitivos entre si, quer os mais absurdos que imaginar se possa), talvez fosse esse o estudo que realmente valesse a pena: como resolver este problema, a contento da segurança e das necessidades das populações?
Talvez se viesse a ver que alguns saberes antigos, como a dupla residência sazonal, mereceriam ser recuperados. Ou talvez se descobrisse, entre as pessoas, o germe de novas soluções.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Tragédia das calamidades

foto Savana

Fui hoje almoçar a uma conhecida esplanada de Maputo, que parece concebida para fazer com que os sul-africanos de origem europeia se sintam em casa.
Excepcionalmente, para um domingo de verão, não havia muitos representantes dessa digna e autoproclamada tribo africana. Em compensação, na mesa ao lado terminavam a sua refeição 3 italianos e 2 franceses.
Chegada a (sua ) hora do whisky e da cigarrilha, começaram a discutir com alguma gulodice, primeiro nas suas línguas respectivas e depois em inglês, all together, a quantidade de fundos que as suas conhecidas e respeitadas ONGs iriam conseguir angariar, «para depois das águas baixarem».
Que fique claro: aqueles homens não estavam a discutir (ao contrário do que noutras vezes ouvi abertamente a outra nacionalidade, acerca de outros assuntos) quanto dinheiro iriam conseguir meter no próprio bolso. Quanto a isso, suponho, bastar-lhes-ão os salários hiper-inflaccionados e o nível de vida que nunca poderiam ter nos seus países respectivos. A questão era dinheiro para projectos dirigidos pelas suas organizações.
A certa altura, um mais novato ou ingénuo disse algo que todos estavam carecas de saber e de ter em conta: «Depende muito da forma como o problema for apresentado nos media europeus».

No sentido original da palavra (grego e dramatúrgico), há uma tragédia com as calamidades, talvez também em muitos outros sítios, mas certamente aqui. A sua origem está no facto de, tirando as vítimas directas, quase toda agente beneficiar com elas.
O governo ganha mais fundos internacionais e mais tolerância para com o incumprimento de compromissos ou metas assumidas (tem apenas que gerir com cuidado a intervenção de ONGs e organizações internacionais, ou depois é difícil livrar-se da sua presença no terreno).
A todos os níveis da administração, há quem ganhe com a abundância de meios financeiros e materiais ali à mão de semear, em alturas de confusão que justificam todas as discrepâncias entre o recebido e o utilizado no terreno.
Nos bairros populares, ainda hoje famílias pobres mas com alguma capacidade de pequeno investimento vivem da revenda à peça de "fardos das calamidades" oferecidos em solidariedade para as vítimas das cheias de 2000 e seguintes, mais tarde vendidos em leilões oficiais ou por quem então os desviou.
Os seus ainda mais pobres clientes têm com isso acesso a peças básicas de vestuário a preços comportáveis.
As ONGs reforçam os seus meios, conseguem sustentar e justificar as suas pesadas e caríssimas estruturas (caras não apenas com estrangeiros; para que não roube, paga-se a um contabilista local um salário líquido de 3.000 dólares, num país em que o salário mínimo é de uns 65), podem apresentar relatórios quantitativamente impressionantes e capazes de escamotear a ausência de resultados ou efeitos preversos por que, na maioria dos casos, se costuma pautar a sua acção corrente - e, afinal, legitimar a sua existência e custos.

Mas, para isso, uma boa calamidade é, como desnecessariamente salientava o novato da mesa ao lado, uma calamidade grande e descontrolada.

Pergunto-me se será por isso, ou por mera avidez mediática pelo sangue, que as primeiras reportagens internacionais foram factualmente erradas e, aparentemente, tão exageradas.
Pergunto-me se será por isso, ou por previdência em relação ao possível evoluir da situação, que, com uma previsão inicial (e aparentemente pessimista) de 90.000 vítimas, chegou ao porto da Beira comida para 250.000 pessoas.
Pergunto-me se será por isso que os números de evacuados flutuam tanto e que, somando os números de todos os campos de reassentamento mencionados nos media, se fica tão longe dos 63.000 oficiais.
Pergunto-me se será por isso (e pelo parágrafo anterior) que se fazem grandes parangonas com a suposta instigação dos régulos (assim, no generalizado) ao abandono dos campos de reassentamento e regresso a zonas alagadas, quando é apenas mencionado um caso, numericamente irrelevante.

Neste quadro, também, espanta-me que um vice-director do INGC responda aos media que os meios disponíveis ainda são suficientes, quando o seu governo acabara de conseguir, de estados estrangeiros, que o orçamento de combate a estas cheias venha a subir de 3,2 para 32 milhões de dólares.
Honestidade? Ingenuidade política da parte de alguém que raciocine essencialmente como técnico?

sábado, 19 de janeiro de 2008

Voltemos ao que interessa

foto Savana

Uma morte é uma desgraça absoluta. Sete mortes, são 7 desgraças absolutas - e tudo o mais se torna contabilidade.
No entanto, no meio das confusões mediáticas acerca da cheia actual (desde a cidade de Tete submersa, inventada pela BBC, à încongruência de números e à sensação de quase rotina transmitida em jornais moçambicanos), há uma coisa que se vai tornando evidente e muito me agrada salientar:

O Instituto Nacional de Gestão de Calamidades parece dispor dos meios suficientes para lidar eficientemente com a situação e estar a abordá-la da forma mais correcta. As intervenções e as evacuações estão a ser sobretudo preventivas, prospectivas e atempadas - ou seja, estão a ser feitas antes de a ameaça sobre cada zona específica se transformar em alagamento e em pessoas sob perigo imediato, ou a flutuarem mortas sobre as águas.

É uma questão de opção estratégica, bom senso e organização.
Numa frase que deve ter deixado arrepiados os negociantes das calamidades e os sôfregos de "ficarem na fotografia" com tragédia alheia em pano de fundo, o director do referido Instituto declarou que «a nossa aposta de momento é evitar uma catástrofe humanitária». Antecipando-se a ela, acrescentaria.
Embora seja essa a sua obrigação, aplaudo entusiasticamente (até pelo facto de os poderosos terem obrigações não querer dizer que elas sejam cumpridas, e muito menos com eficiência) e fico satisfeito, pelas pessoas afectadas.

Confesso a minha curiosidade em, qualquer dia, conhecer este homem. Cheira-me que se preocupa bastante mais em estudar os dossiers, planificar e rodear-se de colaboradores competentes do que em pavonear sinais exteriores de poder. A ser esse o caso, espero que uma atitude tão contrastante não lhe venha a trazer dissabores.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Novo record



33 graus dentro de casa.


Como é que vocês querem que eu escreva alguma coisa inteligente ou interessante, para aqui ou para outro lugar?

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Dilema alimentar


Preparava-me eu, ontem, para grelhar este colorido peixe-papagaio quando me assaltou a dúvida:
Como-o ou emolduro-o?

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Tempestades e feitiços

Quando estava a fazer o passeio do xi-xi com a cadela, ontem à noite, viu-se um vago relâmpago muito ao longe, sem sequer se ouvir trovão. Chegou, no entanto, para começarem a cair umas pinguitas de água e, talvez um minuto depois, uma chuvada monumental. O costume.
O que não era costume foi chegar, fugindo à chuva, e encontrar fechada a porta exterior do edifício onde vou habitando.
Cadê o guarda, que é a única pessoa a ter essa chave? Batendo desesperado à porta, encharcado que nem um pinto, espreitei pela adjacente parede de tijolos ocos "decorativos" e lá descortinei essa instituição local. Encolhido, tentava esconder-se atrás da porta.
Foi preciso apelar à minha esquecida voz de ex-oficial de artilharia e berrar, em desespero: «Abra a merda da porta!»
Atabalhoadamente, abriu e balbuciou qualquer coisa. Tinha acumulado 3 cadeiras de plástico contra a porta, como num filme de desenhos animados.

Qualquer pessoa que conheça um pouco da escrita etnográfica acerca desta parte do mundo perceberá logo este terror por uma tempestade, mesmo tão distante, e as quase infantis medidas de protecção. O nosso bom guarda terá feito ou encomendado um feitiço qualquer e, como tal, tornou-se o alvo preferencial dos raios e das ameaças espirituais tempestuosas.

Suponho que muitos leitores, incluindo colegas, achem este incidente do quotidiano muito exótico, interessante e excitante.A mim, molhado até aos ossos e sabendo o que a casa gasta, só me ocorreu pensar: «Santa paciência!...»E, depois, resmungar entre dentes um pouco caridoso «Rai's partam!»

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Bom 2008!

Ano velho: 36 graus à sombra, 28 dentro de casa.
Ano Novo: 36 graus à sombra, 28 dentro de casa.

Mas alguma coisa esperamos, sempre, que mude.
Que, para todos vocês, mude para melhor.
Nós, por cá, todos bem.