segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

O rabo do lagarto

Alberto João Jardim não pára de me surpreender.
Deu para quase nos habituarmos ao comportamento bronco, agressivo, aldrabão e demagógico, de godfather e tiranete. Mas de pouco perspicaz (ou politicamente criativo) o homem não tem nada.
O aparente absurdo de se demitir "em protesto" e recandidatar, por indigno que seja e ridículo que soe, é um golpe de mestre.
Agora é a última altura em que, no quadro financeiro criado, AJJ ganhará eleições - e estou quase certo de que as ganhará, sem que o discurso histérico do "ataque à Madeira" precise, sequer, de ser decisivo.
No termo normal do mandato, as bases do seu poder (a "obra" sem olhar a meios, que alguém há de pagar, a distribuição de benesses, a punição financeira, profissional e social de todos os vagamente insubmissos) estariam destruídas. Seria a derrota por apodrecimento natural, com pequenas e grandes traições à mistura.
Assim, serão mais 4 anos. Mais alguns de poder e, entretanto, a possibilidade de "fazer a agulha" para fundos estruturais de hiper-periferia e a hipótese de que a situação se altere a nível nacional.
AJJ não está a fazer teatro. Está a jogar a sua sobrevivência da forma mais eficiente que consigo imaginar.
Ferido de morte, golpeado onde há muito se sabia estar o ponto fraco do seu pedestal, ainda esperneia.
Espero sinceramente que seja, já, o abanar do decepado rabo do lagarto.

domingo, 18 de fevereiro de 2007

Aprendendo o perigo e a ser um de nós. Integração profissional na indústria de refinação

Em memória de Luís Manuel Simões (1958-2007)

in Revista Lusófona de Educação, 9 (2007)

Partindo da observação participante da laboração na refinaria de Sines, este artigo expõe a forma como os trabalhadores aprendem e apropriam o perigo laboral, através de um processo auto-organizado de “participação periférica legítima”, e discute as capacidades e potencialidades que os conhecimentos e as noções nele reproduzidos apresentam para a gestão do perigo tecnológico – no contexto estudado e num âmbito mais geral. O equacionamento desta questão torna-se legítimo e necessário pelo facto de o processo de aprendizagem e integração profissional que foi observado ter efeitos directos sobre a percepção da ameaça (reproduzindo uma visão não probabilística do perigo conducente a atitudes baseadas no “princípio da precaução”), na limitação dos perigos decorrentes da tecnologia manipulada e na neutralização de factores sociais que os potenciam.

Leia "Aprendendo o Perigo e a Ser Um de Nós. Integração profissional na indústria de refinação"

sábado, 17 de fevereiro de 2007

Adeus, "Lico"

Ser o filho mais novo tem uma coisa terrível. É a probabilidade de, a certa altura, irmos assistindo à morte dos nossos irmãos.
Tinha perdido um deles há anos, tinha apanhado um segundo susto entretanto e, esta madrugada, perdi um segundo irmão - o Luís.
A repetição não ajuda a naturalizar a morte, ou a aliviar o choque da sua chegada - por natural que ela sempre seja e por muito esperada que, neste caso, ela fosse.
Doi sempre da mesma maneira.
Não falarei mais disto. Mas os posts "Ser antropocoiso" 2 e 3 terão que esperar. O próximo post será um artigo cuja aceitação para publicação me chegou, também, hoje de manhã. Um artigo que será publicado em memória de Luís Manuel Simões.

Adeus, "Lico".

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Ser antropocoiso

Há antropólogos de todos os tipos e feitios.
Mesmo se, depois do Holocausto e da vergonha do racismo "científico", poucos passaram a ser os maduros dedicados a medir crânios, a lista é infindável:

Houve-os que contribuíram, acrítica ou afincadamente, para as dominações coloniais e houve-os que as puseram em causa ou contra elas agiram, levando a histórias de expulsões e mesmo assassinatos às mãos da "secreta" do apartheid.
Há aqueles que reclamam estudar "sociedades", outros "culturas", outros "relações" ou "dinâmicas" sociais e outros ainda os "universais humanos" - podendo cada uma dessas expressões representar coisas bem diferentes para cada um deles.
Há os que olham os "outros" para discorrer acerca dos "seus", os que deles falam com chico-espertismos de "topa-tudo", os que lhes pretendem "dar voz" (muitas vezes a sua, reduzindo o espaço para a deles), os que os fazem desaparecer em elegantes abstracções.
Há os que acreditam poder pensar e sentir como o "outro", os que o buscam compreender num processo demorado de presença e relação, os que questionam a tal de observação participante (quantas vezes por serem incapazes de a fazer sem superficialidade ou sem serem rejeitados), os que analisam do sofá, com ou sem uma pontual e breve visita de cortesia a uns quaisquer "indígenas".
Há os notários ou defensores de "mundos evanescentes", os intérpretes da mudança, os prosélitos da justiça, os crentes na neutralidade do seu trabalho e, mesmo, os passadores de "certificados de indígena".

Que é, então, ser antropólogo?
Em que é que o facto de eu o ser se torna relevante para o que for ficando escrito neste blog?

Resposta em breve.

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Cheguei agora, de votar Sim



Cheguei agora a casa, de votar "sim".
Sem indecisões ou dúvidas, que já não se tinham posto há 8 anos, nem sequer há uns 27 - quando era o único homem (ou jovenzinho) no meio de não sei quantas mulheres, protestando à porta da Boa Hora contra um julgamento por aborto.
Agora, como então, a minha motivação imediata foi acabar com os julgamentos e eventual prisão de mulheres que se viram obrigadas a abortar. Também sou sensível à questão de saúde pública e não me são indiferentes os vários tipos de negociata em torno do aborto clandestino.
A razão essencial para o meu voto não foi, contudo, nenhuma dessas. E, por ela não ser necessariamente "boazinha" para muita gente, a calei durante a campanha. Que, entre tanta táctica mainstream de marketing no campo do "sim", não me viessem os amigos acusar de ter um efeito contraproducente.

O ponto onde, antes de mais, se sustenta a minha posição a favor do "sim" é fácil de enunciar: reconheço a cada mulher, e só a ela, o arbítrio sobre o uso do seu corpo e da sua fertilidade.
Isto inclui, claro, em que alturas e circunstâncias ter filhos, ou recusar-se de todo a tê-los. Isto independentemente, também, da situação da mulher ser ou não trágica em termos financeiros, emotivos ou sociais.
É para mim um direito essencial, e basta - em qualquer altura, mas sobretudo nestes tempos em que recrudescem as tentações de policiamento sobre a vida, o corpo e as formas de os viver.

Repugna-me, pelo que tem de excessivo, de ignorância e/ou de miséria, a utilização do aborto como método de contracepção, em vez de último recurso. Mas antes albergar na lei e nos serviços de saúde tais excepções do que punir a sexualidade alheia - pois é disso que, em última instância, se trata.

domingo, 4 de fevereiro de 2007

Interrogações sobre a globalização no quotidiano

in Vértice, 90 (1999)

A palavra “globalização” tornou-se parte integrante do nosso discurso corrente. Aparentemente, é clara, tal como clara parece ser a existência de um processo novo e actual que através dela designamos. É também uma ideia comum (mesmo que aceite de forma implícita) que ela conduz a uma uniformização cultural à escala planetária.Esta aparente clareza suscita e merece algumas interrogações.Tendo como pano de fundo o impacto da globalização no quotidiano, irei aqui discutir implicações dos fenómenos de contacto e troca cultural, questionando qual o poder uniformizador da globalização e em que medida ela é (ou pode ser) manipulada pelas culturas não hegemónicas. Antes, sugerirei que nos interroguemos a que ponto e em que acepção é a globalização actual diferente em grau ou em qualidade de fenómenos anteriores.

Leia "Interrogações sobre a globalização no quotidiano"

Quando a Identidade é um Perigo - mutações identitárias na refinaria de Sines

in Etnográfica, VI, 1 (2002)

Pode uma mutação nas identidades socio-profissionais tornar-se um factor de perigo industrial? Inesperadamente, sim. Um grupo de trabalhadores fulcral na refinaria de Sines, o dos “operadores de consola”, está em pleno processo de recusa de uma identidade “operária” e de construção de uma alternativa. Busca-a por oposição a outro grupo, considerado indiscutivelmente operário, e enfatizando as vertentes técnica e hierárquica das suas funções. Ao fazê-lo, distancia-se da visão não-probabilística do perigo e do quadro de representações e valores que os operários inculcam nos novatos, e que servem depois de base aos mecanismos de precaução que aplicam e à neutralização de outros factores sociais de perigo. De um obstáculo à indução de perigos acrescidos, os operadores de consola parecem estar a tornar-se, por este processo, num factor que a favorece.

Leia "Quando a Identidade é um Perigo - mutações identitárias na refinaria de Sines"

A Mina Desceu à Cidade - memória histórica e a mais recente indústria moçambicana

in Etnográfica, VII, 2 (2003)

A recente implantação em Moçambique de uma grande fundição de alumínio, com tecnologia de última geração, não tinha à sua espera um vazio conceptual acerca do trabalho e dos seus perigos. As referências para a interpretação popular e operária desta fábrica - a Mozal - não vieram contudo das indústrias já existentes, mas da memória histórica acerca do trabalho mineiro na África do Sul, que se sucede desde há mais de um século. Essa memória modela não apenas a imagem pública da empresa mas, com base nela, a própria avaliação que os operários fazem dos perigos laborais e do seu trabalho. Como consequência, perigos concebíveis como semelhantes aos do trabalho nas minas são enfatizados e objecto de cautelas aparentemente excessivas, enquanto diminui a vigilância para com os restantes. Também o emprego é visto, à imagem da migração mineira, como uma situação transitória e bem paga, destinada a criar condições para uma vida melhor, noutro lugar.

Leia "A Mina Desceu à Cidade - memória histórica e a mais recente indústria Moçambicana"

Há uma cultura do risco?

Do livro “4 olhares sobre a cultura”, editado pela Cooperativa Cultural Popular Barreirense (2006)

Leia "Há uma cultura do risco?"

Working at Mozal: the construction of a “border culture”

Comunicação à conferência "Re-thinking worlds of labour. Southern African labour history in international context", Wits University, Joanesburg (2006)

Leia «Working at Mozal: the construction of a 'border culture'»

Quando o conceito de “risco” se torna perigoso

in Análise Social, 181 (2006)

Os dados de uma pesquisa na refinaria de Sines indicam que a utilização impressiva da noção probabilística de “risco” pode induzir novos perigos na laboração, enquanto visões não-probabilísticas das ameaças se revelam empiricamente mais adequadas e potenciadoras da segurança. Se as limitações da análise probabilística se tornam mais evidentes nos contextos tecnológicos complexos, não menos preocupantes são os efeitos de sentido que resultam da hegemonia do conceito de “risco” e as consequências do papel que este assume nas relações de poder entre tecnociências, empresas, Estado e cidadãos, ou que resultam da sua aplicação impressiva por parte destes últimos. Com parcial responsabilidade na reprodução dessa hegemonia durante as últimas décadas, deverá caber hoje às ciências sociais um papel central na crítica do estatuto epistemológico da noção probabilística de “risco” e das suas consequências sobre a esfera política, o perigo e a segurança dos cidadãos.

Leia «Quando o Conceito de "Risco" Se Torna Perigoso»

Wining back our good luck: bridewealth in nowadays Maputo

in Ufahamu, 32, 3 (2006)

Previously translated as “bridewealth”, south Mozambican lobolo is often reduced to an archaic economical transaction that vilifies the woman and regulates descent. A case recently observed in Maputo rather presents it as a “traditional” toll which allowed the couple to overpass problems arising from innovative conjugality, by manipulating ancestors’ spirits’ role. Departing from this case and from the historical and synchronic variation of lobolo, it emerges as a polysemic institution, adaptable to very different and changeable needs.It’s also seen as a dignification source to individuals and their families, presenting unique abilities of descent legitimation and control over uncertainty – factors that reinforce its continuity, regardless of what will happen to the hegemonic gender ideology.

Read "Wining Back Our Good Luck: bridewealth in nowadays Maputo"

Leia artigo ( in Travessias) que serviu de ponto de partida para Lobolo em Maputo - um velho idioma para novas vivências conjugais, Porto, Campo das Letras, 2005

Limpeza ritual e reintegração pós-guerra em Mozambique

in Análise Social, 182 (2007)

A eficaz reintegração social dos veteranos e de outras pessoas envolvidas na guerra civil de Moçambique foi inseparável da performance generalizada de rituais de limpeza, descritos no artigo. A eficácia desses rituais, reinventados nas últimas décadas, deve-se em grande medida à coerência que mantêm com os sistemas locais de interpretação do infortúnio, com o problema que pretendem resolver e com procedimentos previamente conhecidos e respeitados. O seu papel superou a reintegração individual, tendo contribuído para a aceitabilidade dos antigos inimigos enquanto «pessoas como as outras» e da competição democrática por meios pacíficos, em substituição do confronto militar.

Leia «Limpeza Ritual e Reintegração Pós-guerra em Moçambique»

Read shorter version in English «The Homecomer: postwar cleansing rituals in Mozambique», in Armed Forces & Society, 33, 3 (2007)

Determinismo e caos, segundo a adivinhação Moçambicana

Tradução de artigo publicado em Etnográfica, XI, 1 (2007)

Embora seja habitual assumir que os sistemas de interpretação do infortúnio desenvolvidos na África austral são deterministas, a noção de caos determinístico parece ser mais adequada para compreender os princípios subjacentes à adivinhação moçambicana através do tinhlolo. Esse sistema é baseado numa estrutura determinista, pretende explicar e regular a incerteza, mas o seu output é caótico devido à complexidade dos factores envolvidos, incognoscíveis na sua totalidade e caracterizados por agência. Entendê-lo como um sistema de domesticação do aleatório legitima novos campos comparativos de âmbito mundial (incluindo com a noção probabilística de "risco") e altera o foco do estudo de fenómenos de tipo Ngoma, dos seus mecanismos de reprodução enquanto cultos de aflição para as lógicas e visões do mundo que lhes estão subjacentes.

Leia «Determinismo e Caos, segundo a adivinhação Moçambicana»

Read orginal english version: «Determination ans chaos, according to Mozambican divination»