domingo, 25 de novembro de 2007

Sentença (in)Sana


Fiquei tão embasbacado que preferi esperar para ver. Viu-se mais alguma coisa, mas o essencial manteve-se.

Há juízes capazes de considerar justa causa para despedimento (ou não renovação de contrato) de um cozinheiro o facto de ele ser seropositivo, com base na opinião tipo "eu cá acho que..." de médicos assumidamente não especialistas da matéria, um deles numa situação de conflito de interesses, e ao arrepio do que é consensual em termos científicos.
Mais: aplicando o princípio precaucionário de forma pioneira na jurisprudência portuguesa, considera que o caso "não tem a ver com riscos conhecidos, mas com a possibilidade desses riscos" - princípio que, sabe-se lá, talvez comece a ser aplicado aos campos electromagnéticos, às empresas potencialmente poluidoras ou perigosas e, talvez, à venda de automóveis, que apresentam sempre a "possibilidade do risco" de rupturas mecânicas ou avarias electrónicas casuadoras de acidentes, possivelmente mortais.

Embora nunca tenha acontecido, é de facto imaginável que um cozinheiro seropositivo se corte, derramando, sobre uma saladinha, sangue em quantidade suficientemente copiosa para contagiar alguém e que, sem que ninguém dê por isso, o dito acepipe seja servido em tempo recorde a um cliente cego e sem olfacto, de tal forma que o virus ainda esteja vivo quando o tal sangue lhe toca na ferida que tem na boca.
É curioso, no entanto, que este zelo precaucionário só se aplique a indivíduos fragilisados, e nunca aos grandes interesses económicos.É curioso, também, que juízes prefiram acolher opiniões de mesa de café que confirmem os seus medos e idiossincrasias do que pareceres especializados que as contrariem.

Veio-se a saber mais tarde que, afinal, no julgamento original não tinham sido apresentados pareceres especializados, mas impressa da internet a informação disponibilizada pela agência estatal norte-americana que se dedica à prevenção e controle de doenças. O que mostra que, até para restabelecer a mais elementar justiça, é preciso ter dinheiro para pagar um advogado minimamente competente.
Quanto ao recurso para a Relação, o tribunal jura a pés juntos que não foi pedida a revisão dos factos dados como provados (que o tal senhor é seropositivo e que pode transmitir a sua situação, para além de pela saliva, pelo sangue, suor e lágrimas!) enquanto a outra parte jura que foi para esse efeito que, agora, se anexaram pareceres de especialistas.
Ou alguém mente, ou há incompetência mútua - pois, mesmo que seja verdade que o essencial não fosse pedido pelo advogado, que juízes são esses que têm entre mãos provas claras de que os "factos provados" não podem ser provados e olham para o lado?

Que respeito público esperam e julgam merecer, quando já são a única actividade em que uma declaração oficial de incompetência técnica (o provimento de um recurso, por verificação de erros processuais) não tem quaisquer consequências sobre a capacidade de exercer a profissão?

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