terça-feira, 29 de abril de 2008

Não dá para acreditar! (2)


A propósito deste post e desta notícia, recebi de um leitor que se identifica como Miguel o seguinte comentário:


«Quem diz que a multa é pelo facto da junta não comprar gasóleo é o jornalista. A lei diz algo um pouco diferente:
Decreto-Lei 62/2006:
Artigo 7º
3 - Os pequenos produtores dedicados devem comunicar à Direcção-Geral de Geologia e Energia (DGGE) e à Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC), até ao final dos meses de Janeiro, Abril, Julho e Outubro, as quantidades de biocombustíveis e ou de outros combustíveis renováveis por si produzidas no trimestre anterior, bem como a identificação dos consumidores e das respectivas quantidades que lhes tenham sido entregues.
4 - O reconhecimento como pequeno produtor dedicado está sujeito a despacho conjunto do director-geral de Geologia e Energia e do director-geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo.
Artigo 14.º
1 - Constitui contra-ordenação punível com coima de (euro) 500 a (euro) 3740, no caso de pessoas singulares, e de (euro) 2500 a (euro) 44891, no caso de pessoas colectivas:
a) A violação das quotas mínimas previstas no n.º 2 do artigo 5.º;
b) A violação do disposto nos n.os 1, 3 e 4 do artigo 6.º;
c) A violação do disposto no n.º 4 do artigo 7.º e no artigo 11.º;
d) A violação do disposto no n.º 1 do artigo 9.º;
e) A violação do disposto no n.º 1 do artigo 10.º
2 - A negligência e a tentativa são puníveis.
Artigo 15.º
A instrução dos processos de contra-ordenação, instaurados no âmbito do presente decreto-lei, compete à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica e a aplicação das correspondentes coimas e sanções acessórias compete à Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e Publicidade, sem prejuízo das competências próprias de outras entidades.»

Cumpre-me comentar o seguinte:

Eh, homem! Isso é que é militância profissional!
Diria que o senhor ainda chega a chefe da tasca, se não corresse o risco de o ter a inspeccionar-me a salubridade da cozinha lá de casa, quando voltar a Portugal.

Confesso que prefiro o novo estilo "Incorruptíveis contra a Droga" do que o mais batido "Ó Abreu dá cá o meu e fica tudo na mesma".
Mas confesso também que deve ser necessária uma personalidade e uma visão do mundo que escapam àquilo que conheço, compreendo e considero saudável, para alguém se devotar à protecção e fiscalização de regulamentações e leis absurdas (a não ser que sejam feitas para proteger os interesses de grandes empresas), só porque existem.
Desculpar-me-á, mas só consigo compreender isso à luz de mentalidades de há mais de 34 anos e 4 dias, ou à luz da consciência de quem é que se está a defender - e, neste último caso, deveriam ser pagos pelas tais empresas e não pelos meus impostos.

Quanto ao sumo da sua objecção, não me irei obviamente dar ao trabalho de pesquisar os outros artigos todos para ver a que é que se referem aqueles que envia.

Em termos legais, a primeira estranheza que se me levanta é como é que uma Junta de Freguesia pode ser considerada um "produtor dedicado" de produtos materiais.
Não sou jurista, mas sei qual é o significado jurídico dessa expressão - e, neste caso, a sua aplicação a uma instituição como essa é uma contradição de termos e um abuso grosseiro.

Acresce que o Presidente da Junta diz no artigo (e ninguém nega) que pediu várias vezes as autorizações, que certamente terão tempo limite para despacho, e estas não tiveram seguimento.
Onde foi recolhida a informação que levou à coima? Nos serviços dos Directores-Gerais que não cumpriram a sua obrigação?

Mas, desculpar-me-á, o cerne da coisa não está para mim em definições de figuras jurídicas e duplicidades de critérios, mas nas próprias regulamentações que vão sendo importadas em catadupas, aparentemente tão irrelevantes que ninguém se dá ao trabalho de as estudar, e no empenho de mostrar serviço inspeccionando o seu cumprimento à letra (ou, neste caso, contra a letra), por absurdo, impossível ou socialmente indesejável que seja.

Mantenho, por isso, as interrogações do post que comentou:
O bom senso meteu férias?
A inteligência ausentou-se para parte incerta?

E, por favor, não me diga que quem tem que inspeccionar o cumprimento legal não tem que reflectir sobre o contexto concreto que inspecciona, tem apenas que aplicar o que está escrito.
Porque isso não é uma atitude de objectividade e independência. É uma tomada de posição e uma ideologia.

10 comentários:

Anónimo disse...

Esse Miguel será um funcionário hiper-consciencioso, ou alguém contratado para isso?
Quanto é que custará ao Estado (a nós) ter um sujeito com formação jurídica a pesquisar blogs e a tentar justificar as imbecilidades da ASAE?

Ivar C disse...

quando li a notícia no Público perguntei a mim mesmo: "será que há mesmo na ASAE pessoas assim tão obstinadas e atoleimadas?". Agora já tenho a resposta... lol.

Anónimo disse...

Não, Não sou da ASAE nem ninguém me paga para comentar...

Mas se nem sequer percebem que a produção de biodiesel deve ser controlada por causa do aumento descontrolado do preço dos cereais e que não basta querer para se poder produzir combustíveis, não vale a pena argumentar mais. O mais cego é aquele que não quer ver.

Anónimo disse...

Para esclarecer mais algumas dúvidas:

Artigo 4.º
Definições
1 - Para efeitos do presente decreto-lei, entende-se por:
a) «Biocombustível» o combustível líquido ou gasoso para transportes, produzido a partir de biomassa;
b) «Biomassa» a fracção biodegradável de produtos e resíduos provenientes da agricultura (incluindo substâncias vegetais e animais), da silvicultura e das indústrias conexas, bem como a fracção biodegradável dos resíduos industriais e urbanos;
c) «Outros combustíveis renováveis» os combustíveis renováveis que não sejam biocombustíveis, obtidos a partir de fontes de energia renováveis, tal como se encontram definidas na Directiva n.º 2001/77/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Setembro, utilizados para efeitos de transporte;
d) «Teor energético» o poder calorífico inferior de um combustível.
2 - São considerados biocombustíveis, nomeadamente, os produtos a seguir indicados:
a) «Bioetanol», etanol produzido a partir de biomassa e ou da fracção biodegradável de resíduos para utilização como biocombustível;
b) «Biodiesel», éster metílico produzido a partir de óleos vegetais ou animais, com qualidade de combustível para motores diesel, para utilização como biocombustível;
c) «Biogás», gás combustível produzido a partir de biomassa e ou da fracção biodegradável de resíduos, que pode ser purificado até à qualidade do gás natural, para utilização como biocombustível, ou gás de madeira;
d) «Biometanol», metanol produzido a partir de biomassa para utilização como biocombustível;
e) «Bioéter dimetílico», éter dimetílico produzido a partir de biomassa para utilização como biocombustível;
f) «Bio-ETBE (bioéter etil-ter-butílico)», ETBE produzido a partir do bioetanol, sendo a percentagem volumétrica de bio-ETBE considerada como biocombustível de 47%;
g) «Bio-MTBE (bioéter metil-ter-butílico)», combustível produzido com base no biometanol, sendo a percentagem volumétrica de bio-MTBE considerada como biocombustível de 36%;
h) «Biocombustíveis sintéticos», hidrocarbonetos sintéticos ou misturas de hidrocarbonetos sintéticos produzidos a partir de biomassa;
i) «Biohidrogénio», hidrogénio produzido a partir de biomassa e ou da fracção biodegradável de resíduos para utilização como biocombustível;
j) «Óleo vegetal puro produzido a partir de plantas oleaginosas», óleo produzido por pressão, extracção ou métodos comparáveis, a partir de plantas oleaginosas, em bruto ou refinado, mas quimicamente inalterado, quando a sua utilização for compatível com o tipo de motores e os respectivos requisitos relativos a emissões.

Artigo 7.º
1 - Entende-se por pequeno produtor dedicado a empresa que, cumulativamente:
a) Tenha uma produção máxima anual de 3000 t de biocombustível ou de outros combustíveis renováveis;
b) Tenha a sua produção com origem no aproveitamento de matérias residuais ou com recurso a projectos de desenvolvimento tecnológico de produtos menos poluentes, utilizando processos inovadores, ou em fase de demonstração;
c) Coloque toda a sua produção em frotas e consumidores cativos, identificados contratualmente.

Luis Moutinho disse...

A utilização de óleos USADOS não causa aumento do preço dos cereais...
... causa diminuição do consumo de combustíveis fósseis.

(Paulo Granjo) disse...

Desculpem o atraso na resposta, mas estava desde ontem à tarde sem internet e não sei se agora não será apenas uma "aberta" passageira.

Faço minhas as palavras do Luis Moutinho.

Quanto a Miguel, comecei ontem a dar uma volta pelos blogs que citaram a notícia, a avisá-los da seu peculiar comentário, mas reparei que só naqueles que afixaram os posts há menos tempo ele não tinha ainda deixado a sua marca.
Já que nos diz não ser da ASAE nem pago para fazer o que está a fazer, suponho que deveremos depreender que a sua motivação é contribuir para evitar a fome no mundo (devida ao aumento do preço dos cereais), através de um apoio militante ao combate da ASAE à reiclagem abusiva de óleos alimentares, em substituição de combustíveis fósseis.
A sua causa é engraçada, embora me pareça um pouco trapalhona. Mas se até Deus criou a luz um dia antes de criar as luminálias, quem sou eu para o criticar?

Quanto às minudências jurídicas e defenicionais (que pela última vez refiro, por serem aquilo que menos me parece interessar no caso), o artigo que cita serve para definir um "PEQUENO produtor dedicado", não "produtor dedicado", que é um conceito pré-existente: uma entidade que tem como actividade exclusiva produzir um determinado bem, cujo destino está à partida contratualizado com outra(s) entidade(s), não entrando no mercado.
Se querem dois exemplos, as empresas de componentes de automóveis que fornecem a Autoeuropa, ou a Hidroeléctrica de Cahora Bassa.
Por isso são necessariamente empresas, conforme explicita o tal artigo - a não ser que sejam trabalhadores à peça, como na economis subterrânea dos sectores do calçado e dos texteis...

Mas isso é o que menos interessa.

E, aliás, confesso que me começa a interessar mais (enquanto potencial estudo de caso ou assunto merecedor de curiosidade) a existência de um Miguel do que as questões envolvidas na própria notícia.

Anónimo disse...

O que me moveu para contestar esta defesa acérrima da Junta da Ericeira foi o facto de que, ao ler a notícia nos ser dado a entender que os gajos da ASAE não percebem nada disto e multam sem razão.
Mas, afinal de contas, e lendo a lei, está lá bem explícito que, para se ser produtor de biodiesel, é necessário ter autorização para tal.

Normalmente as notícias mostram apenas um lado da barricada, e eu gosto de me informar antes de emitir opinião. Neste caso, por mais ridículo que possa parecer a decisão da ASAE, foi a decisão acertada. Por enquanto ainda vivemos num país com leis.

(Paulo Granjo) disse...

OK.

Há valores a que dou bastante mais importância do que ao do Estado de Direito (e aos quais o subordino), mas também o prezo.

Só que, precisamente, o Estado de Direito, para o ser, exige bom senso e sensibilidade social - na legislação, que não deverá ser uma produção quase automática de burocratas, e na aplicação.
Aplicação que, neste caso, segundo os dados que me forneceu, parece também ter sido abusiva. O que é, aliás, uma subversão muito corrente do Estado de Direito, feita supostamente em seu nome.

(Paulo Granjo) disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
(Paulo Granjo) disse...

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