Carlos Serra tem vindo a divulgar as respostas de crianças de escolas primárias às perguntas (feitas numa pesquisa que coordena) sobre: (1) o que se deve fazer a um ladrão?; (2) o que se deve fazer a um feiticeiro?
A resposta que aqui reproduzo é uma das mais soft, pois aos ladrões "só" se devem cortar os dedos, e não matá-los.
Não consigo deixar de pensar numa pesquisa anterior muito "badalada", que incluía intervenção social - o mega-projecto sobre Justiça em Moçambique, tribunais "formais" e comunitários, direito local e pluralidade jurídica, coordenado há alguns anos por Boaventura Sousa Santos.
No seminário em que foram apresentados os seus resultados, alguém insistiu para que um participante no projecto dissesse também algumas palavras. A contra-gosto, o colega lá teve que reconhecer que todo o processo lhe tinha deixado mais dúvidas no fim do que no início, onde tudo parecia bonito.
E contava. No terreno, veio ter com ele um régulo, dizendo que tinham um problema criminal e perguntando como devia tratar do assunto.
- De acordo com as vossas regras e costumes. É esse o nosso objectivo.
- Está bem. Então, queimamos a feiticeira.
Assisti, um par de anos depois, ao julgamento em tribunal comunitário de um caso de violência doméstica.
Como, farta de ser agredida ao longo de anos, a mulher tinha feito da última vez o acto inconcebível de se virar ao marido, passou, em poucos minutos, de queixosa a suspeita de feitiçaria.
Reunido um tribunal especializado acerca deste novo assunto, foi também rapidamente declarada culpada, com base em meios de prova de que me recuso a falar aqui.
Há duas perguntas que não me saem da cabeça:
Qual será a contribuição (e quota-parte de responsabilidade) do projecto de Boaventura para a quase unanimidade de respostas linchatórias que a equipa de Carlos Serra está agora a receber das crianças?
Em que medida é que projectos interventivos bem intencionados, que se julgam emancipatórios e respeitadores da diferença de abstractos povos "puros", de "bons selvagens", não funcionam como aprendizes de feiticeiro com consequências potencialmente terríveis?
Nas páginas finais deste artigo, tinha feito algumas reflexões, no abstracto, acerca deste tipo de questões.
Mas o concreto doi mais. E mata.
6 comentários:
Perguntas dificeis.
O homem novo, afinal não existe!
Talvez o homem evolutivo, não?
Um dos grandes dilemas das ciências sociais é tentar saber se elas próprias devem (apenas) limitar-se a observar e compreender o seu objecto de estudo ou se podem avançar para aquilo que muitos designaram, por exemplo, como uma “sociologia da acção”? Se esta questão é, por si só, difícil de responder, em abstracto, torna-se ainda mais difícil se a aplicarmos a este caso concreto.
Como não conheço o estudo coordenado por BSS, nem o impacto que este teve na sociedade moçambicana, por isso pode parecer despropositado tecer mais comentários; todavia, vou arriscar algumas “reflexões” de leigo nesta matéria:
A discussão das questões culturais é um campo minado, “pantanoso”, repleto de armadilhas diversas, que muitas vezes são incompreensíveis quando observadas por “investigadores” de outra cultura.
É possível opinar sobre questões de natureza cultural (como esta) sem incorporar os nossos próprios juízos de valor (naturalmente variáveis de cultura para cultura)?
A carta universal dos direitos humanos (a qual subscrevo por completo) não será apenas um valor cultural do mundo ocidental ou de alguns humanistas espalhados pelo mundo (e por isso mesmo, longe de ser verdadeiramente universal)?
Se o estudo de BSS foi realizado há alguns anos, dificilmente produziu efeitos (pelo menos directos) sobre as representações destas crianças. Provavelmente nem conhecem o estudo (o que não significa que não estejam sujeitos à sua influência).
É também preciso considerar que quem responde a determinados questionários/inquéritos tende a fazê-lo de uma forma “politicamente correcta”, ou seja, afirma aquilo que julga que o entrevistador espera ouvir dele/a (e isto nem sempre corresponde verdadeiramente àquilo que a própria pessoa pensa). Para além disso, sabemos que as afirmações/atitudes (agressivas neste caso) nem sempre podem ser consideradas como predictoras do comportamento. (Atenção que não estou a afirmar que o Carlos Serra não considerou este aspecto)!
Um exemplo “cumezinho”... Por vezes o meu filho, quando estamos os dois a brincar, também me diz: “vou-te dar um tiro”! (apesar de eu lhe dizer, sempre, que não gosto de tiros, nem da conversa dos tiros)... Depois quando lhe pergunto num tom mais sério, intimista e cúmplice se ele era capaz de me dar um tiro, ele responde: “Não pai, é só a brincar” e dá-me um abraço! O problema dos ladrões e das feiticeiras daí, é que, se calhar, “não é só a brincar”!
Quando ponho a hipótese do impacto do estudo coordenado pelo Boaventura, não estou a sugerir que os investigadores andaram a ensinar as pessoas que linchar é bom!
Estou a sugerir que a enfatização (com chancela científica e estatal) do valor contra-hegemónico e particularista das formas "locais", "populares" e "tradicionais" de resolução de conflitos pode ser relevante para a aceitabilidade, recrudescimento e/ou reinvenção de fenómenos como este.
Que, nalguns casos, podem até ser "tradições" recentíssimas. A seguir à independência, não se linchava em contexto peri-urbano (e duvido muito que isso fosse um fenómeno corrente em contexto rural); a "justiça popular" era dar uma carga de pancada ao ladrão e entregá-lo depois à polícia.
E sugiro que esses estudos, por bem intencionados que sejam, se baseiam numa falácia:
numa visão homogénea e "pura" das sociedades africanas (o "bom selvagem", ou o "bom pretinho", organizando-se harmoniosamente de acordo com a sua sabedoria ancestral, embora um pouco "contaminada" pela hegemonia ocidental), como se estas não tivessem classes sociais, grupos de status e de género, que reproduzem historicamente o seu poder de forma bastante violenta - como em qualquer outro lado, quando os outros meios falham.
O que conduz a que, em nome do justo combate à hegemonia ideológica "ocidental", se legitimem e reforcem as hegemonias dos grupos dominantes locais - sobre os grupos dominados locais. Se legitimem e reforcem as injustiças sociais.
No caso das "justiças populares", isso pode conduzir também (é a minha dúvida/sugestão) ao reforço das formas de punição, controlo social e imposição de interesses dos grupos dominantes - mesmo que também aceites e adoptadas pelos dominados, pois é isso (entre outros significados) a hegemonia.
Quanto aos direitos, pela minha experiência e pelo que pude ler, qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, gostaria de usufruir de todos os direitos inventados em todas as sociedades, mesmo que variem aqueles que lhe parecem essenciais e acessórios.
Mas quase todas essas pessoas gostariam também de manter os privilégios (grandes ou pequenos; mesmo uma mulher do grupo mais subalterno de uma sociedade patriarcar os tem, quando se torna mão ou sogra) que restringem direitos de outros.
O problema quando pensamos o assunto numa perspectiva de estrito respeito cultural é, creio eu, esquecermos que os direitos das pessoas são essencialmente um fenómeno político, um resultado provisório e mutável de lutas e negociações de poder entre grupos assimétricos, cuja codificação na "cultura" e na "tradição" é, também, um instrumento de luta de poder e uma tentativa de a congelar no status quo de um momento.
O terreno está minado, mas mais minado fica se não tivermos isto em conta.
Quanto à investigação-acção, nada contra.
Há é um risco muito mais elevado de nos tornarmos, quase sempre involuntariamente, em "aprendizes de feiticeiros".
Daí, a responsabilidade muito maior que devemos sentir em fazê-la com muita cautela, modéstia e análise aprofundada das complexidades do terreno que pisamos.
O bem intencionado e compreensível fascínio por aquilo que é popular e exótico, ou até pelo facto de as instituições "indígenas" funcionarem (Como qualquer antropólogo minimamente competente sabe, claro que funcionam! Se não, já não existiam nem elas nem as comunidades que regulam!), por si só, costuma ser muito mau conselheiro.
Caro Paulo,
De modo nenhum li nas suas palavras que pretenderia afirmar que “os investigadores andaram a ensinar as pessoas que linchar é bom”. Se foi isso que leu nas minhas palavras garanto-lhe que não era isso que queria dizer ou insinuar. Até porque estou totalmente de acordo com todas as suas afirmações no comentário anterior e admito muito seriamente que o estatuto dominante do conhecimento científico possa até ajudar a legitimar estas práticas de violência e de injustiça social nas sociedades africanas.
Só fiquei com uma pequena dúvida... conheço apenas parcialmente o trabalho de BSS, mas, apesar disso, fiquei convencido que seria difícil ele e a sua equipa partirem do princípio que as sociedades africanas seriam homogéneas e “puras”. Enquanto sociólogo não quero acreditar nisso, mas se assim foi parece-me um “erro” grave de apreciação. Como não conheço o estudo (mas estou quase tentado a conhecer) aquilo que afirmei sobre o trabalho de BSS é apenas uma intuição (e não o dado objectivo).
Antes que me volte a “bater” admito desde já que, provavelmente, estou a opinar sobre assuntos para os quais não tenho a mínima competência... talvez eu tenha perdido uma boa oportunidade para ter ficado “calado”!
Pelo contrário, João!
Por um lado, o entusiasmo algo agressivo do meu comentário anterior não é consigo (e muito menos contra si), mas com pressupostos e práticas com que me vou cruzando.
Por outro, se estas questões não fossem polémicas já estariam há muito ultrapassadas.
Quanto mais discussão, melhor.
Quanto ao resto, poderei ter caricaturado um pouco.
Mas apenas um pressuposto (mesmo que não consciencializado) de que as sociedades "outras" são internamente indiferenciadas e uma visão essencialista da cultura (que não veja os direitos culturalmente codificados como um resultado de relações de poder e dominação) permitem legitimar teses de submissão global dos direitos às particularidades culturais, como no livro do BSS acerca do assunto.
E só isso e um encantamento algo ingénuo com as "culturas populares" (que pretenda ignorar tanto a existência de hegemonias internas quanto a sua subordinação a culturas locais dominantes) justifica, primeiro, encantamentos com os Tribunais Populares em tempos de Operação Produção e de reintrodução da chicotada como punição legal (veja-se revista "Justiça Popular") e, depois, o estímulo à pluralidade jurídica.
Ou, pelo menos, assim me parece.
Numa questão que, repito, é polémica.
Ontem estive a assistir a uma intervenção do BSS e lembrei-me desta nossa conversa...
Apesar do tema da intervenção dele não ser sobre este assunto, fiquei convencido que ele defende a diversidade cultural, aliás, acabou mesmo por afirmar isso expressamente. Isto de algum modo pode ir ao encontro das críticas que o Paulo lhe fez.
Apesar das timidas criticas que lhe fazem ("nos corredores") sobre o seu autoritarismo lá no CES (ao que parece justas), confesso que gostei bastante da palestra dele!
Enfim... contradições!
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