quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Bolívia pós-Mandela

O que fazer quando um presidente com um programa de profunda transformação social enfrenta ameaças separatistas, apelos a que o exército faça um golpe de estado e tem uma base de apoio heterogénea, que vai de grupos revolucionários a organizações feministas e a movimentos nativistas patriarcais?

A resposta de Evo Morales, o presidente boliviano que os cientistas políticos gostam de de não levar a sério (pelos seus gorros andinos, o seu discurso terra-a-terra saudavelmente utópico e o seu uso de simbolismos locais muito directos) foi: «Reforça-se a legitimidade democrática.»

Num cenário em que, mais uma vez, um golpe de estado não estava excluído, realizou-se domingo um referendo acerca da continuidade nos seus cargos do Presidente da República, do Vice-Presidente e, pelo que pude perceber, dos Governadores estaduais.
Evo Morales recebeu, no seu caso, mais de 61% dos votos, o que corresponde a mais 8 pontos percentuais do que aqueles com que tinha sido eleito.
Também pelo que pude perceber, os Governadores estaduais, seus apoiantes ou da oposição, foram também reconduzidos por voto popular, tendo o discurso de vitória do presidente sido um apelo à unidade nacional, à colaboração institucional e uma reafirmação dos objectivos de dignidade e justiça social.

(Escrevi «pelo que pude perceber», porque a notícia já tem uns 3 dias mas não apareceu nos jornais portugueses de referência, pelo menos on-line.
Até compreendo.
Isto de um «ditador» que está sob ameaça de golpe desde que foi eleito recorrer a mecanismos democráticos transparentes - e comummente aceites - para procurar chegar ao fim do mandato e para poder concretizar o programa que claramente conhecem os que votam em si e contra si é, de facto, um bocado chato para a reprodução de lugares-comuns mediáticos e políticos.
Mais ainda se o tipo for um índio com um comportamento público que as pessoas sérias acham folclórico.
Confirmei, entretanto, aqui que foram reconduzidos 6 dos 8 Governadores. A notícia não é, contudo muito clara. Num sítio diz que os Governadores da oposição foram confirmados, no outro que os 2 que perderam a votação eram da oposição.)

Não obstante, o mecanismo não é novo.
Charles de Gaulle recorreu extensivamente ao referendo (para desespero dos partidos franceses de esquerda) a fim de legitimar as suas posições e continuidade no poder, quando as coisas lhe ficavam mais adversas.
Também as nacionalizações e uma redistribuição social mais justa da riqueza nacional eram, até há umas décadas, hábitos do Partido Trabalhista britânico quando chegava ao governo.

A diferença, aqui, é que tudo se passa num país com uma estrutura oligárquica racista, regiões de latifúndio e uma forte presença de interesses económicos do "grande irmão do norte" - o que muda tudo, em termos políticos e na forma como as coisas são vistas.
Para além de que, claro, Evo Morales não é um general com ares aristocráticos que pareça ter engolido uma vassoura.

A diferença que mais me interessa é, no entanto, outra.
Os movimentos políticos que tentaram fazer alterações revolucionárias ou radicais nos seus países tiveram, habitualmente, a tendência de responder à oposição interna e às pressões externas ou com violência e repressão, ou com "fugas em frente".
É toda uma outra escola que vemos surgir em casos como este, quer quanto à abrangência das alianças sociais e políticas, quer quanto à resposta a situações de crise.

É verdade que as condições geopolíticas se têm alterado muito nos últimos 20 anos, mas creio que existe um outro factor aqui envolvido.
O esvaziamento de um centro de hegemonia revolucionária a nível mundial e a facilidade de acesso a informação globalizada parecem ter criado o espaço para práticas revolucionárias muito mais híbridas, flexíveis e culturalmente situadas, mesmo para forças que estão no poder.

Mas a globalização da informação só é útil a este processo se existirem acontecimentos, objecto dessa informação, que sejam eles próprios úteis para a reflexão e construção de novas culturas políticas e de poder emancipador.
Quanto a isso, e sem querer colocar demasiado peso nas costas do pobre homem, parece-me que aquilo que se passa na Bolívia deve muito à prática e exemplo de Nelson Mandela.

Sem comentários: