domingo, 10 de agosto de 2008

Lobolo em debate

A palavra lobolo designa, simultaneamente, uma instituição matrimonial, a cerimónia de casamento que lhe corresponde e os bens que, nela, são entregues pela família do noivo à família da noiva.

As formas de casamento que lhe são semelhantes (chamadas bridewealth em inglês) foram consideradas pelos seus primeiros observadores uma «compra de mulheres».
Foram depois visto como uma retribuição pela perda da capacidade de trabalho da mulher por parte da sua família, ou mesmo pelos seus «serviços sexuais» (sic).
Na antropologia, os bens entregues à família patrilinear da noiva são hoje consensualmente encaradas como uma retribuição pelo facto de os filhos que vierem a nascer do casal não lhes irem pertencer, mas à linhagem do marido.

Os estudos feitos acerca dessas instituições seguiram diferentes perspectivas e enfatizaram diferentes aspectos nelas envolvidos. Elas foram vistas, para além daquilo que já referi, como garantias de acesso do grupo "doador" a esposas para os seus homens, como instrumentos de controlo dos mais jovens pelos mais velhos, como formas de transferência de recursos ou até, quando o lobolo é sistematicamente pago "a prestações", como um sistema de segurança social que distribui o risco por diferentes famílias (aqui), ou como objecto de luta política em tempos de transformação revolucionária (aqui).

No caso de Moçambique, os estudos mais recentes enfatizam um aspecto anteriormente deixado na penumbra: o papel central não apenas dos parentes vivos, mas também dos espíritos dos antepassados.
Um dos autores que o fazem salienta que o lobolo estabelece uma ligação entre os vivos e os antepassados que cria ou restabelece a harmonia social e inscreve o indivíduo numa rede de parentesco e aliança (aqui).
Outro (este vosso criado), sustenta que esse putativo envolvimento dos antepassados legitima ideologicamente a descendência e, no quadro das visões locais de domesticação da incerteza, é um instrumento de protecção do casal contra os perigos e infortúnios (aqui, aqui e aqui).

Nessa perspectiva, sem deixar de ser um fenómeno económico, de poder e de regulação social, o lobolo (que é muito variável, mutável e adaptável) tem duas mais-valias muito importantes sobre as restantes formas de casamento disponíveis: legitima, como elas, a relação matrimonial e eleva o estatuto dos membros do casal, mas também regula a descendência e o aleatório.

Isso não o torna menos objecto de polémicas, na sociedade urbana.
Este post-forum resulta do interesse da Samya em compreender como se lida com a descendência em caso de concubinato e quais são as consequências económicas do lobolo no caso dos casamentos poligâmicos.
Darei, na caixa de comentários, as minhas contribuições para a esclarecer e espero o mesmo da vossa parte. Tal como espero que muitas outras dúvidas, polémicas e diferentes interpretações tenham aqui um espaço profícuo.

3 comentários:

(Paulo Granjo) disse...

Samya:

Dando o pontapé de saída, as duas questões que colocaste têm consequências muito diferentes em termos legais ou "tradicionais"/consuetudinários.

Uma das poucas leis portuguesas imediatamente alteradas a seguir à independência foi a abolição da figura dos filhos ilegítimos. Legalmente, qualquer filho de um homem tem direito ao seu apelido (sobrenome) e a herança.

Pelas "leis linhageiras", no entanto, o recheio da casa de um defunto é saqueado pelos seus parentes patrilineares (coisa que ainda acontece) e só tem direito ao apelido e à pertença à linhagem (com os direitos e deveres inerentes) quem resulte de um casamento legitimado por lobolo.

É frequente, em contexto urbano, homens casados manterem relações pontuais ou de concubinato que podem levar, a prazo, à manutenção de duas ou mais famílias (embora, ao contrário da poligamia local, sem formalização e às escondidas da esposa legítima e da comunidade).
Dependendo do carácter das pessoas envolvidas e da capacidade de pressão da mulher e sua família, essas relações de concubinato podem vir a ser formalizadas através do lobolo, o que não só legitima os filhos em termos linhageiros, como transforma a concubina em esposa.
Aliás, numa excepção à regra que é socialmente aceite, acontece os filhos de um defunto pagarem o lobolo da sua mãe, para regularizarem a posteriori a situação matrimonial deles, a sua pertença à linhagem paterna e apaziguarem antepassados. Para o fazer, contudo, é necessária a concordância dos parentes do pai, que os representam na cerimónia e assumem, com isso a plena integração deles na sua linhagem.

Em última instância, tudo é negociável e exige a criação de consensos entre os vivos - pressupondo-se a concordância dos mortos, pois acredita-se que, caso contrário, eles boicotariam a cerimónia.

(Paulo Granjo) disse...

Quanto à segunda questão (quais as consequências económicas do lobolo em caso de casamentos poligâmicos), seria bom que especificasses melhor o que queres saber, pois temo dizer-te apenas generalidades.

No casamento poligâmico, a ordem cronológica dos lobolos estabelece as relações hierárquicas entre as esposas e senoridade entre os seus filhos, levando as primeiras, em contexto rural, a posições diferentes na ecomomia familiar.
No entanto, os direitos económicos quer das esposas quer dos seus filhos são, teoricamente, equitativos.

A organização da economia familiar é muito variável. As mulheres podem ter machambas e celeiros separados, ou conjuntos. Só as habitações e cozinhas são, por norma, diferentes.

Também é suposto que a(s) esposa(s) existente(s) concorde(m) com novos casamentos e, até, que participe(m) na escolha da noiva - o que, entre outras coisas, lhes daria algum controle sobre os recursos necessários ao lobolo, visto que estes se têm vindo a individualizar desde a sua monetarização.
No entanto, o segundo desses direitos é muito raro e o primeiro é, na prática, bastante fictício.

Se o novo lobolo (ou o primeiro deles) for pago "a prestações", as consequências são mais complexas, pois o homem fica em obrigação para com os sogros, podendo ser-lhe exigidas ajudas regulares em trabalho ou espécie até completar o pagamento. Se já tem esposa(s) e filhos, todo o grupo poderá ser envolvido solidariamente nessas "ajudas".

Por fim, o levirato é teoricamente a regra "tradicional" mas, na prática, mesmo no campo é percentualmente pouco praticado.
Após uma relação sexual cerimonial entre o cunhado e a viúva (durante o ritual de limpeza de luto desta última), é normalmente substituído pela obrigação de apoio à viúva e, sobretudo, aos seus filhos, como um "segundo pai".

Bem... é o que me ocorre. Se fizer uma pergunta mais específica, poderei tentar responder, ou apelar aos leitores para que o façam.

samya disse...

Oi Paulo, muito obrigado pelas tuas respostas, ja imprimi tudo e vou aproveitar pra ler tudo agora no caminho do trabalho. As questões de dote em geral me interessam muito, mas que tudo esse sistema de dote onde eh o noivo ou sua familia a "pagar pela noiva", estou recolhendo material sobre esse tipo de dote e como não conhecia nada sobre o Lobolo, você foi de grande clareza.
Muito obrigada de novo pela sua atenção e boa semana.