segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Gémeos, albinos e prisioneiros desaparecidos (1)

Tenho sido obrigado a traduzir para português o artigo «Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos: uma teoria moçambicana do poder político», que lá anda em publicação pelos States e de que vos falei aqui.
Revendo a tradução, que vai avançada, passou-me pela cabeça: porque é que não vou afixando o texto em fascículos, tipo Séc. XIX, em vez de esperar pela última frase? Pode ser que interesse a alguém...
Aqui fica a primeira leva, correspondente à Apresentação.



Imagem 1. Cemitério da Matola, junto do rio, de uma salina e da Mozal.

Alguns anos atrás, fiz uma visita a Martins Matsolo, o chefe hereditário da região onde foi construída a fundição de alumínio Mozal, perto da capital de Moçambique. Queria auscultá-lo acerca de uma ideia que se estava a espalhar entre os operários dessa fábrica: que, durante a cerimónia que precedeu a sua construção, ele tinha proibido a morte de cobras na área fabril, ou iriam ocorrer acidentes.
Ele disse-me que não era verdade e ficámos a discutir as razões para esse boato, que deriva da crença local em cobras possuídas por espíritos (Granjo, 2008). Como se diz que essas “cobras especiais” vivem em lugares com características especiais, a nossa conversa levou-me a falar do peculiar cemitério da Matola, junto da fundição (imagem 1).

«É um mau cemitério, não é? Quero dizer, mesmo junto ao rio, que até transborda…», perguntei. Ele permaneceu algum tempo em silêncio e, como tantas vezes acontece quando fazemos a um moçambicano mais velho uma pergunta melindrosa, não me respondeu directamente, mas através de uma história sem aparente relação com o assunto, mas fácil de compreender por parte de alguém que domine as referências que a ligam à pergunta.
- Sim... No tempo colonial, a PIDE até costumava esconder ali os prisioneiros que matavam na prisão deles. Não era bem ali, mas mesmo ao lado, mais junto da água.

Foi a primeira vez que ouvi falar de uma ligação simbólica entre gémeos, albinos e prisioneiros políticos. Isto porque, sinteticamente, os gémeos devem ser enterrados em solo húmido ou secarão a terra; os albinos (que têm a mesma origem cósmica) são suposto não morrer, mas desaparecer; e os prisioneiros desaparecidos eram enterrados em terra molhada.
É desrespeitoso enterrar pessoas “normais” em solo molhado, porque isso corresponde a tratá-los como «mortos que secam a terra» – e essa era a razão da minha pergunta. Ao contar-me aquela história, o senhor Matsolo concordou comigo e enfatizou a importância do assunto que eu tinha levantado; mas, ao fazê-lo da forma que o fez, ensinou-me algo de novo.

Esse novo assunto – a equivalência simbólica que mencionei e o sentido que lhe subjaz – é a razão deste artigo.
De facto, existem várias referências etnográficas às restrições sofridas em Moçambique pelos gémeos, albinos e suas mães, e até algumas interpretações antropológicas acerca delas. Se as compararmos entre si e falarmos com as pessoas hoje em dia, parece que essas restrições não mudaram muito nos últimos 100 anos, como tão pouco mudaram as excepções geográficas onde, pelo contrário, os gémeos recebem uma valoração positiva.
No entanto, essas regras resilientes e os conceitos que lhes subjazem eram suficientemente pertinentes para terem sido seleccionadas como uma linguagem para falar e pensar acerca dos prisioneiros políticos desaparecidos, tanto durante o colonialismo como após a independência – embora não, conforme veremos, para pensar acerca dos vários milhares de pessoas que, na década de 1980, foram expulsas das cidades para a remota província do Niassa, acusadas de serem «improdutivas».

A equivalência com gémeos e albinos foi empregue apenas por esses prisioneiros terem desaparecido? Durante algum tempo, pensei que essa explicação era suficiente – pelo menos se lhe adicionássemos as restrições e estigma que os prisioneiros políticos sofreram. Contudo, foram muito mais numerosos os deportados que desapareceram no Niassa, também eles sofreram restrições e estigmatização, mas a equivalência que mencionei não é utilizada no seu caso.

Irei então sugerir que a equivalência simbólica entre gémeos, albinos e prisioneiros políticos desaparecidos não é apenas formal; ela expressa um conceito das relações de poder político em que prisioneiros “subversivos”, mesmo tratando-se de lutadores pela independência, são avaliados como anormalidades sociais negativas e ameaçadoras – ao contrário das vítimas de exílio doméstico por decisão estatal, vista como um injusto abuso de poder.

1 comentário:

Unknown disse...

Olá Paulo, tudo bem?
Meu nome é Ana Flávia, sou brasileira, também antropóloga...
entrei no seu site pesquisando sobre "albinos na áfrica"! Tinha interesse em saber mais devido a um email desses que circulam pela rede, falando dos "terrores" que sofrem os albinos em "toda a África"... esse continente de "curandeiros, feiticeiros e ignorantes" (e coisas do tipo). Queria responder à pessoa que me enviou com informações balisadas sobre a questão. Você teria algum artigo seu, ou alguma referência para me enviar?
Um abraço e obrigada pela atenção!
(será que vc vai ver minha mensagem se eu publicar aqui...?)