sábado, 4 de outubro de 2008

Bye, Dennis McShade

Não tive o previlégio de conhecer Diniz Machado.
Agora, já não vou ter essa possibilidade.

Diz quem sabe que perdi muito com isso. Aliás, só essa coisa de começar a ganhar a vida a escrever policiais (que claro tinham que ter um autor bem americano, como por exemplo Vernon Sullivan) e escolher para pseudónimo Dennis McShade já diz muito acerca da personagem.

Por vezes, não há nada melhor do que as palavras dos próprios, quando queremos homenagear alguém.
Deixo-vos, por isso, as páginas mais cinematográficas da literatura portuguesa (talvez a par da chegada do protagonista à China, no Mandarim do Eça; mas, n'O Que Diz Molero, é cinema mudo, não é super-produção hollywoodesca). Descubram ou relembrem, mas deliciem-se.

«Chegou uma esquadra», disse Austin, «e aqueles a quem chamavam camones invadiram a cidade, tingindo-a com a brancura das suas fardas. Meia dúzia deles enfiou pela rua acima, passou pelos Vai ou Racha, estes cuspiram para o chão em sinal de desprezo, o Zuca foi atrás deles de braço estendido, esfregando o dedo polegar no indicador, eh, camone, money, money, um camone atirou um monte de moedas ao ar e a miudagem lutou bravamente para apanhar o dinheiro». «Essas excursões a bairros desconhecidos desvendam mundos novos», interrompeu Mister DeLuxe. «Fiz duas ou três desse género e tirei excelentes fotografias». Austin sorriu. «Bem», disse ele, «os camones continuaram a subir a rua, pararam junto do Ângelo, que estava sentado no banco de madeira a experimentar a harmónica, um deles aproximou-se e disse girls, e fez com o braço o movimento respectivo, we want girls, o Ângelo disse girl é a tua mãezinha, estás a perceber ou precisas de explicador?, sim, a tua mãezinha, o camone riu-se para os outros, um deles avançou e fez uma espécie de passe à Fred Astaire, conta quem sabe, e de repente o Ângelo já tinha guardado os óculos e a harmónica no bolso, começou a despachar os camones, enfiou um pela loja de móveis do Ventura, outro foi cair numa das cadeiras da Barbearia Hollywood, exactamente em cima do Pimentel, que estava a ser escanhoado pelo Joaquim Navalhinhas, um terceiro mergulhou no tanque de roupa da Miquelina Fortes, outro ainda foi também remetido para a loja do Ventura, encontrou o primeiro no caminho, vinha de regresso, e estatelaram-se os dois numa cama de casal, o Ângelo com os pés, com as mãos, com a cabeça, vai disto, os camones enfiavam por tudo quanto era porta, positivamente distribuídos ao domicílio, o Zuca diria mais tarde que Ricardito entre Chamas e Bandidos, a sua fita número um, ao pé daquilo não era nada. A certa altura, com os camones, estoicos, a irem e virem, os Vai ou Racha começaram a subir a rua, meteram-se no vespeiro, foi o Pé de Cabra que disse chegou a hora, o Padeirinha ouviu a frase histórica e havia de transmiti-la mais tarde, nunca se chegou a saber a que hora se referia ele, também nunca se chegou a saber se tencionavam ajudar o Ângelo que, de resto, segundo Molero, conta quem sabe, se havia alguma coisa de que ele precisasse não era com certeza de ajuda, ou ajudar os camones, ou apartá-los, simplesmente o Ângelo começou também a despachar os Vai ou Racha, o Gil Penteadinho deu duas voltas no ar e foi aterrar na carroça de couves do Hipólito, o Tonecas Arenas ficou sentado no primeiro andar do andaime de um prédio que estava a ser pintado, entornando uma lata de tinta cor-de-rosa sobre o príncipe-de-gales novo do Joca Farpelas, isto depois de passar pela banca de peixe do Zeca Trampa, espadanando carapaus e lulas por todos os lados, o sombrero, esse, voou e entrou pela janela do segundo andar da Dona Ermelinda, o Bexigas Doidas, que quase tinha sido atado pelo Ângelo a um camone, conta quem sabe que fez um nó com o braço direito de um e a perna esquerda do outro, entrou com ele sem pedir licença pelo Ás de Espadas, Lda., levaram ambos consigo o Rufino, o Aranhiço, o Roque Sacristão e o Vovô Resmungas, que estavam a jogar à sueca, saíram todos um pouco à balda pela porta do fundo, acrescentados do Douglas Fazbancos e do Chico Dominó, que estavam ali a discutir o Sporting-Benfica do domingo anterior, o Pé de Cabra foi de cabeça contra a parede e até fez eco, abriram-me a cabeça, dizia ele, abriram-me a cabeça, o que, segundo Molero, devia ser por demais evidente, o Peito Rente foi chutado com efeito para a tipografia do Celestino, deu duas voltas lá dentro fazendo parar máquinas que estavam a trabalhar e pondo a funcionar máquinas que estavam paradas, alguém tinha espetado uma faca na barriga do Lucas Pireza, talvez um camone, de certeza que foi um camone, diria mais tarde o Zuca, os camones são uns naifistas do caneco, garantia ele, o Lucas Pireza segurava os intestinos com as mãos, falava baixinho para eles, parecia rezar, os camones iam e vinham, espartanos, segundo Molero, até à medula, a certa altura, numa ressaca, levaram com eles, pelo ar, o Metro e Meio, o Ângelo tinha-os juntado todos num molhinho, enfeitou-os com o Metro e Meio, e vai disto, tudo pelo ar, rumo ao Marocas Papa-Milhas, que tinha uma motocicleta cheia de cromados e a mania das curvas rápidas, já tinha atropelado três gatos e duas pessoas, ia a fazer uma bela curva naquele momento, foi contemplado com a colecção de camones coroada pelo Metro e Meio, despistou-se, disse foda-se, foda-se, subiu o passeio, virou de pantanas o mostruário do Raul Pechisbeque, choveram colares de vidro, pulseiras, broches e anéis, o Marocas continuou em prova, descontrolado e tudo, devolveu para dentro de casa o berço que a Gertrudes tinha colocado à porta com o bebé, atravessou a rua aos ziguezagues, embateu na caixa da criação da Mafalda Capoeira e terminou a prova contra o balcão da carvoaria do Galego, lançando o pânico nos elementos do Grupo Excursionista Moscatel, que estavam a beber o seu meio litro da praxe, enquanto as pessoas assomavam alvoroçadamente às janelas, as mulheres gritavam, o bebé da Gertrudes, que era o melhor pulmão lá do bairro, berrava como nunca, o papagaio do Pimentel, que tinha caído do poleiro e dançava suspenso na correia de metal, esganiçava a sua expressão preferida, ó da guatda, ó da guarda, muitíssiomo apropriada, segundo Molero, às circunstâncias, o fox-terrir do Silva Farmacêutico filava um camone pelo fundilho das calças e fazia questão de não o largar, as galinhas da Mafalda Capoeira corriam espavoridas num cacarejar infernal e num dilúvio de penas, o burro do Hipólito zurrava, os gatos da Dona Maria Bicharoco miavam e pulavam, o Alsácia do Tó Peneiras ladrava com aquela fúria só dele, camones entravam por aqui, ex-Malhoas saíam por acolá, às vezes dava certo, parecia que o Ângelo tinha controle sobre a confusão, à distância, o Zuca diria mais tarde que, tirando algumas partes cómicas que pareciam à Charlot, aquilo tinha sido uma coisa iglantónica, o Ângelo era igualzinho a um tal Lone Ranger, só lhe faltava a mascarilha». (...)

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