terça-feira, 4 de novembro de 2008

Reflexões ociosas - 4

Enquanto aguardo resultados das eleições norte-americanas, há um pensamento inconveniente que não me sai da cabeça:

Em Moçambique, Obama não conseguiria sequer ser indigitado como candidato por um dos maiores partidos. É mulato.

7 comentários:

Carlos Gil disse...

acredito pois tenho de acreditar em quem conhece a realidade além desta palavrosa virtual. e ouvi-o - não assim directamente, mas - não só 'lendo-o' a si mas de viva voz de quem vive ou 'lá' ou entre 'lá' e 'cá'.
mas é tão triste sabê-lo, gaita...
"I have a dream" disse o outro. e os nossos? os que germinaram no éden pós 25A e depois machadada a machadada de realidades vão-se esvaindo até sobrar a amargura de ler frases como esta e murmurar: "dói. mas o gajo está certo"? merda para a p--- da realidade e de quem a assassinou :(

abç


ps: quanto aos USA pessoalmente acho que foi dado "um passo de gigante" internamente mas em modo de visualização 'global' não espero mais que o Outro, o "pequeno passo". aí sou pessimista militante

Venus de Melo+ disse...

Infelizmente meu caro, isso é a mais pura das verdades.
Este país ainda está entregue a mentes pequenas... aquelas que ainda pensam e fomentam o tribalismo, o regionalismo... aqueles que ainda acham que quem deve governar deve ser preto e original.
Mentes que nada com conteúdo têm, mas que infelizmente, ainda têm capacidade de pensarem e magicarem maneiras de combaterem a pobreza absoluta a título individual.

Bom, ficarei por aqui antes que me chamem de racionalista e abram um processo com o meu nome na SISE.

Abraço meu

(Paulo Granjo) disse...

Também estou inconfortavelmente céptico em relação à realpolitik que se segue.
Mas, por muito mal que corra, parece-me que será sempre um passo enorme em relação à terrível situação actual.
Para além de que, como diz o Rui Tavares num link aí mais em cima, criou-se com esta coisa um movimento de assunção de cidadania e intervenção. O que, depois daquele país re-eleger o Bush depois de se saber tudo o que já então se sabia (e portanto apoiando Gunatanamo, Iraque sem justificação, o Patriot Act e as torturas), não pode ser irrelevante.

Quanto ao tema do post, garanto que a pouca gente poderá doer mais do que a mim - embora, afinal, não tenha mais a ver com isso do que com as eleições americanas.
Ainda há muito caminho até à fraternidade universal e, infelizmente, parece que se tem estado a andar mais no sentido contrário.
Até, como sugere a Vénus, em relação aos "nossos" que se é suposto governar.

Mas que impressiona, impressiona.

Entretanto, hoje de manhã corria uma conversa interessante acerca disso no "Diário de um Sociólogo". Ainda não fui lá esta noite, mas dêem uma vista de olhos.

samya disse...

E você acha que em algum pais da Africa eles elegeriam um mulato tão descaradamente mulato?

(Paulo Granjo) disse...

Dos outros países de África não sei, Samya.

Em Moçambique, é bem possível que elegessem, se ele chegasse a candidato por um dos dois grandes partidos. O problema é que, em nenhum desses partidos, as elites políticas o deixariam chegar a candidato.

Entre o povão, há discriminação dos "mulatos" (tal como, aliás, muitos "mulatos" discriminam "negros"), mas a questão torna-se muito mais forte nos degraus mais altos da escala social. É aí que, na competição por recursos e lugares, a "negritude" se transforma em última instância num critério de cidadania, no sentido de "total moçambicanidade" e de pleno acesso aos direitos e recursos.

Historicamente, não foi sempre assim. Mas...

Anónimo disse...

E se Obama fosse africano?


Por Mia Couto



Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.

Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos.

Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de "nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.

Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: "E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto.

E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?

1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.

2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.

3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente "descobriram" que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado 'ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.

4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um "não autêntico africano". O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros", dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).

5. Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas – tantas vezes no poder, tantas vezes com poder - a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.

6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado - a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.

Inconclusivas conclusões

Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte.

Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.

A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos - as pessoas simples e os trabalhadores anónimos - festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.

Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.

No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos. Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política. Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.

Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente. É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.

(Paulo Granjo) disse...

Obrigado pela transcrição do Mia Couto. Esclarecedora.