segunda-feira, 20 de junho de 2011

Citações de café (33)

As coincidências são coisas lixadas.

Primeiro, levava hoje a cadela ao passeio higiénico quando vi chegar, à esplanada de café por onde passava, a mesma criança angolana que havia sido trazida há décadas para Portugal e que, numa reportagem televisiva, tinha visto minutos antes ser levada de visita a Angola, conhecer a sua família biológica.

Logo de seguida, eu (que passo a vida a citar o caso das aldeias perto de Alcácer do Sal onde os vizinhos dos descendentes de escravos dos arrozais não conseguem descortinar-lhes traços africanos, embora reconheçam imediatamente como "mulatos" os forasteiros que os tenham de forma muito menos evidente), ouvi esta frase que lhe era dirigida:

- Mas o preto era muito parecido contigo. Era mesmo teu irmão?

6 comentários:

Chirrime disse...

Professor, ai esta. Um dia, quando o professor ainda estava aqui em Mocambique, eu lia num diario naciona, num texto do escritor Mia couto um trecho assim: quando numa conversa introduzimos o elemento raca, e porque nao queremos chegar a nenhuma conclusao. Este argumento funda-se, a meu ver, na tese patente numa obra do mesmo escritor em titulo - "Cada Homem e Uma Raca." Um olhar sobre os retratos que o professor apresenta ve, penso eu, uma sequencia evolutiva de um ser em tom da pela e a configuracao morfologica/ossea do seu rosto/cabeca. O discurso sobre a raca e apenas um discurso sobre e para fundamentar a diferenca e legitimar o direito que alguns podem reveindicar para se sobre porem aos outros. Quais? Pensamento de Mestre.

José Mestre disse...

Paulo


Vivo em Alcácer há algum tempo,permita-me uma correção.
Não me parece que os habitantes de Alcácer não distingam os moradores das aldeia de São Romão ou Rio de Mouros (julgo que são essas as que refere). Distingue. Há quem fale dos "pretos de São Romão". Mas eles são daqui! Pertencem ao lugar...

Saúde e Fraternidade

(Paulo Granjo) disse...

Há mais outra, mas é disso que se trata.
Em geral será como diz, mas garanto que já vi isso acontecer com alguns casos de habitantes locais e de forasteiros.

Claro que "os nossos" são, antes de mais nada, nossos. Mas o olhar também se treina e selecciona, bem mais que imaginamos, quando se trata de procurar traços fenotípicos - que, afinal, só se tornam relevantes e, por isso, "visíveis" porque somos ensinados a dar-lhes relevância.

E, quanto a este último aspecto, há histórias muito interessantes com crianças "racialmente daltónicas" até que alguém as ensine a não o serem - de que é exemplo a minha própria filha, que teve que chegar aos 5 anos para, depois de duas estadas longas em África, aprender na escola que existem pessoas "castanhas", e reparar pelas fotos que esse é o tom de pele dos seus amigos de Maputo...

É um mundo muito interessante, esse.

Bem-vindo e um abraço.

ASMO LUNDGREN disse...

traços fenotípicos ou atípicos

racialmente daltónicas é fenotípico ou é de expressão ambiental

não há neutralismo nas diferenças

és gordo...és trinca-espinhas és tinhoso és piolhoso

daltonismo em crianças?
adonde

nem sequer precisam ser muito difrentes

aculturação da filha
ou hominização da cadela que pensa que vive com cães

não é daltonismo
resulta da convivência

mas todas as diferenças entre crianças são anotadas

és feia
tens cabelo esquisito
és porca
ser preta ou branca é acessório

descrimina-se sempre pelas diferenças individuais

ó coiso antrópico
de ant trópicos tristes principia

(Paulo Granjo) disse...

Aula grátis:

As classificações (das pessoas e de tudo o que nos rodeia) constroem-se e transmitem-se enfatizando algumas características daquilo que se classifica e não dando atenção a outras. Sem isso não se poderia dizer "cão" ou "pessoa", pois são todos diferentes.

Quando a classificação faz parte da construção de identidades, individuais ou colectivas, esse processo de enfatização de umas características e de "irrelevantização" de outras serve dois vectores necessários para se poder traçar a fronteira entre "nós" e os "outros", que serve de base a uma identidade: é necessário postular (de forma que se torne minimamente consensual) um conjunto de características "comuns" que sejam "nossas", e um conjunto de características "diferentes" que sejam dos outros.

As características seleccionadas podem ser muito distintas, conforme a fronteira identitária que se pretende traçar; mas tem sempre que haver uma enfatização de umas e um fechar dos olhos a outras e alguma aceitação colectiva da sua relevância, para que a identidade resultante possa ser partilhada.

O tom de pele é uma caractérística entre muitas outras de qualquer ser humano, e como tal pode ser enfatizada, subestimada ou ignorada, tanto no processo de classificação como no de percepção (se é que os podemos distinguir de um nível meramente abstracto). Só se torna mais relevante, em termos cognitivos e representacionais, do que o tamanho do dedo grande do pé a partir do momento em que se torne pertinente para estabelecer uma diferenciação, e que a pessoa se aperceba de que essa característica diferenciadora é pertinente para os outros.
Por outras palavras, a diferença de tom de pele, por muito que pareça "meter-se pelos olhos dentro", tem que ser aprendida para que se lhe dê atenção.

Devido a isso e à vivência na minha própria casa, não tenho dúvidas em sustentar que as crianças são racialmente "daltónicas" até que estímulos exteriores (que podem, é verdade, ser muito precoces) as ensinem a ver a cor da pele, quando a olham.

Isto, apesar do turbilhão classificatório e identitário em que as crianças pequenas vivem.
Porque quando chamam (ou para que chamem) a outra "gorda", "feia" ou "preta", essas classificações têm que ter sido aprendidas a montante e ser objecto de negociação social.
Ser "gordo" é uma qualificação quantitativa e ser "feio" é quantitativa. Mas em ambas foi necessário aprender a relevância (quanto mais não seja, enquanto insulto) e ambas necessitam de suscitar consenso exterior, pois a sansão, ao chamar-se "gordo" ou "feio" a quem os interlocutores achem "magro" ou "bonito" é o ridículo.

Streetwarrior disse...

Concordo absolutamente.

Por comparação.

Um adjectivo de comparação num grupo de crianças, pode não ter a mesma expressão adjectiva, para um outro grupo de crianças socialmente distante, onde uma das crianças do 1º grupo seja situada e o utilize como adjectivo, positivo ou negativo.

A criança (ou o adulto mas falamos de crianças) aprende a intensidade dessa adjectivação mediante o ambiente onde está inserida.

Estarei correcto no meu pensamento?