O sociólogo e bloguista moçambicano Carlos Serra convidou-me a comentar esta reportagem da TV Globo, sobre os curandeiros em Moçambique.
Aqui fica o comentário:«Conforme acontece frequentemente com reportagens que pretendem explorar o exotismo, parece-me que o mais merecedor de comentário nesta peça da TV Globo não está no que nela é dito mas naquilo que, sendo essencial, está dela ausente. Coisas essenciais que, por serem desconhecidas dos jornalistas, são substituídas pelos seus próprios pressupostos, marcados por lógicas bem diferentes – como, neste caso, interpretar à luz dos números da oferta a procura de médicos tradicionais.
Confesso o meu
franco cepticismo perante a afirmação de que, mais de 20 anos depois da guerra
civil, os médicos ainda serão menos de 600 em Moçambique. A afirmação de que os
seus colegas tradicionais atingem os
250.000, por seu lado, já me parece pertencer ao mundo das impossibilidades
práticas, quer para a sua subsistência com uma média de 80 potenciais
pacientes, quer por muitos outros indicadores, incluindo o cartão da AMETRAMO
que me foi concedido em 2007, como sócio honorário, e que arvora o número
7.533.
Mas o essencial,
sugeria no início, não é a credibilidade desses números. O essencial é que só
em áreas muito afastadas de zonas urbanas (e que não são objeto da reportagem)
as pessoas poderão recorrer a médicos
tradicionais por ausência de alternativas. Ou sequer por razões financeiras
ou por estarem mais à vontade com eles.
Se as suas
consultas (por adivinhação) são mais baratas do que as dos médicos
academicamente reconhecidos, os tratamentos são geralmente mais caros e demorados.
E se a sua proximidade (cultural e de estilos de vida) com os pacientes tende a
ser maior, também suscitam maiores receios, quer pelos poderes espirituais que
reclamam e lhes são atribuídos, quer pelo medo do paciente de ficar dependente
deles. Assim, não se vai ao nyanga ou
ao ché por ser mais fácil do que ir
ao médico, mas apesar de ser mais difícil e assustador.
Porque se vai, então?
Como em
virtualmente todo o lado, em Moçambique (e mais ainda nas zonas urbanas) as
pessoas têm contacto com diversos sistemas que interpretam e dão sentido aos
acontecimentos ocorridos e ao incerto futuro. Uns têm origem científica e
materialista, outros religiosa, outros supersticiosa, outros ainda foram
desenvolvidos regionalmente, envolvendo fatores explicativos espirituais e
materiais. Podendo reger-se de forma quase exclusiva por um desses sistemas, é
mais comum que cada pessoa recorra conjunturalmente a um ou outro (conforme a
pertinência que ele tenha para lidar com o problema com que a pessoa se
confronta e conforme os interesses que a movem) e/ou que os combinem de forma
sincrética mas bastante coerente.
Apesar dessa
multiplicidade e contínua negociação de sentidos (e num quadro enformado por
ela), é seguro afirmar que um desses sistemas
de interpretação e domesticação do mundo e da incerteza se destaca como
dominante, entre a larguíssima maioria da população: aquele que foi
desenvolvido regionalmente e é considerado “tradicional”. É também esse que
permite compreender o recurso aos médicos
tradicionais e a sua importância social. Não apenas para resolver questões
de saúde (que, de acordo com essa perspetiva, são apenas uma variante
particular dos problemas sociais), nem tão pouco para apenas sarar aquela
manifestação física de doença da qual se sofre.
De acordo com esse
sistema de explicação e domesticação dos infortúnios, de facto, nem o estar
doente nem o sofrer desgraças têm origens exclusivamente naturais. Estamos
permanentemente rodeados por inúmeros perigos materiais, mas não é normal nem natural estarmos doentes ou sofrermos acidentes. Se as relações de causalidade
material explicam como esses
perigos ocorrem, é ainda necessário explicar o porquê de eles terem coincidido no espaço e no tempo com
aquela pessoa específica, tornando-a vítima de uma desgraça ou doença.
Segundo esta
visão dos infortúnios, o tal “porquê” pode decorrer de uma de três razões
sociais: ou a vítima foi ignorante, negligente e/ou incompetente ao lidar com
aquele perigo; ou foi alvo de feitiço (normalmente, devido a inveja ou
vingança); ou os espíritos dos seus antepassados estão desagradados e
suspenderam a proteção que lhe devem contra os perigos, para alertar a vítima para
a necessidade de os ouvir através da adivinhação ou transe de um nyanga.
Dessa forma, se
alguém contrai HIV sem saber da sua existência, sem saber como se proteger do
contágio ou por, sabendo-o, não costumar usar preservativo, isso é normal. Mas
se a vítima costuma usar preservativo e, daquela perigosa vez, excecionalmente
não o usou e ficou infetado, é necessário averiguar as razões espirituais ou
mágicas que fizeram com que não o usasse.
Isto quer também
dizer que as razões da doença podem não se esgotar (e, na maior parte dos
casos, considera-se que não se esgotam) nela própria e que curá-la não se
limita à cura da sua manifestação física. A existirem razões espirituais ou
mágicas subjacentes à doença, os mais eficazes comprimidos ou raízes não
resolvem por si só o problema pois, curada aquela manifestação de doença, outra
ainda mais grave se seguirá. Para além da cura imediata da enfermidade (e,
quanto a essa parte, recorrer-se ao hospital ou ao quintal do nyanga depende em grande medida da
eficácia que se atribui a cada um deles, na cura daquela doença específica), é
necessário detetar e curar a razão que lhe subjaz. Isso é especialidade
exclusiva dos médicos tradicionais,
envolvendo não apenas tratamentos e medicamentos, mas também a resolução do
conflito social com os vivos ou os mortos que foi diagnosticado como causa
última, tendo esse diagnóstico merecido consenso por parte do paciente e dos
seus familiares.
Para além da
superioridade terapêutica que lhes é atribuída nalgumas áreas (epilepsia, asma,
aftas, por exemplo), é esta a razão fundamental para o recurso aos médicos tradicionais por razões de
saúde. Isto ocorre num quadro de conceções holísticas e em que, conforme
sustenta o meu colega Emídio Gune, a maioria das pessoas não consideram estar a
recorrer a sistemas de saúde diferentes, mas a diferentes prestações de
cuidados de saúde – tal como não se vai a um cardiologista para brocar um
dente, a um médico para tomar uma injeção, nem a um enfermeiro para ser
submetido a uma cirurgia.
No entanto, o
sistema de interpretação que tenho vindo a comentar fornece ainda duas outras
razões de peso para o recurso aos médicos tradicionais, mesmo que os
medicamentos sejam ministrados pelos seus colegas academicamente reconhecidos. Por
um lado, é assumida a possibilidade de o feitiço ou os antepassados poderem
bloquear a eficácia dos medicamentos ministrados, pelo que a segurança de um
tratamento, mesmo hospitalar, implica que se anule o primeiro ou se apaziguem
os segundos, conforme o caso. Por outro lado, curada a doença e as suas causas
imediatas e subjacentes, o paciente deverá ver protegidos o seu corpo e espírito
contra eventuais novos ataques futuros. De novo, em ambos os casos, especialidades
exclusivas dos médicos tradicionais.
A frequente e não
declarada coexistência de procedimentos terapêuticos (e não, ao contrário do
que afirma a reportagem, uma população que maioritariamente nunca terá visto um
médico) não deixa de apresentar riscos, tanto por duplicação e sobredosagem,
quanto de anulação mútua dos efeitos farmacológicos. Essa é, creio, mais uma
boa razão para que os motivos do recurso urbano aos médicos tradicionais sejam
compreendidos, na sua lógica e ontologia, e para que seja lançado um efetivo
diálogo tendo em vista o estabelecimento de protocolos de procedimentos que
sejam mutuamente aceitáveis nesses casos extremamente recorrentes, em vez de se
fazer de conta que eles não existem ou importam.
Por fim, gostaria
de deixar uma nota de reflexão àqueles que possam considerar que, na prática
dos médicos tradicionais, só os conhecimentos
botânicos de provada eficácia farmacológica são válidos. Mesmo para quem não
partilhe de todo a visão da saúde, doença e cura que expus, nem tão pouco valorize
e importância dos processos psicossomáticos, há um aspeto pragmático da ação
terapêutica dos tinyanga que
dificilmente pode ser desvalorizado:
Um diagnóstico que
envolva feitiçaria ou antepassados implica quer a aceitação consensual de que o
conflito que lhe subjaz existe e é relevante, quer a mobilização do paciente,
da sua família e mesmo (se possível) dos seus opositores para a sua superação e
para o restabelecimento da harmonia entre as partes. Muitas vezes, isso não é
conseguido. Mas, quando o é, o médico
tradicional torna-se também um agente essencial de saúde social – ou, na visão
holista que partilha com os seus pacientes, de saúde tout court.»Se estão interessados em aprofundar estes aspetos, podem dar uma vista de olhos nos meus artigos "Saúde e doença em Moçambique", "Ser curandeiro em Moçambique: uma vocação imposta?" e "O que é que a adivinhação adivinha?".
1 comentário:
gostei muito da noticia e que isso e muito importante pq ninguem sabe da espiritualidade de ninguem que e um dom de deus Atenciosamente Elivan(ciclistaUltramaratonista natural de BananeirasPb residente em Joao Pessoa
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