Na véspera do último aniversário da morte de Samora Machel, assisti no telejornal de uma televisão privada moçambicana ao linchamento pelo fogo de 3 pessoas.
Por pouco, seria em directo. As imagens não estavam quase editadas, o que dava mais de 15 minutos de um homem moído de pancada tentando rastejar para longe dos pneus em chamas onde dois outros ardiam já mortos, apenas para se ir chocar com o círculo de gente de onde saiam outros homens, que lhe batiam um pouco mais e o arrastavam até à fogueira - onde de cada vez se retorcia, até que já não conseguiu sair de lá.
A intervenção dos homens que saiam do círculo, diferentes de cada vez, era saudada por aplausos e gritos dos outros presentes, enquanto crianças dançavam e chutavam terra para cima do homem arrastado.
Seguiam-se entrevistas. Com o senhor bem vestido a quem os 3 jovens (e mais 2 que fugiram) tinham roubado o telemóvel e a carteira, supostamente com 1 milhão de meticais antigos - uns 30 euros, que para ele seriam trocos mas que, para os outros participantes, podiam significar metade ou mesmo um salário inteiro. Também com uma rapariga do bairro, várias vezes assaltada, que explicava a necessidade de assustarem dessa forma os ladrões, face à inacção da polícia. O seu discurso consensual foi, no entanto, entremeado por uma nota de desânimo que não chegava a ser dúvida: já há duas semanas, disse, tinham tido que fazer aquilo e eles nunca mais aprendiam.
Por chocantes que fossem as imagens, o seu tratamento exaustivo como "furo" televisivo, ou o à-vontade de quem dava a cara para justificar aquele brutal homicídio colectivo, chocava-me mais ainda o contraste entre aquelas pessoas, naquele momento, e aquilo que elas seriam todos os dias.
Isto porque não há nada nos cânones sociais moçambicanos - e muito menos num qualquer ethos colectivo local - que incite a tal barbaridade. Pelo contrário, há ainda marcas da brutalidade da guerra e o que deseja toda a gente que ela afectou directa ou indirectamente é mandar esses acontecimentos traumáticos para o mais longe possível.
Aquilo não pretendia ser uma justa punição, socialmente aceitável e legítima. Pretendia ser um recado preventivo a outros ladrões e, para que o fosse, teria que ser excessivo para o acto cometido, desmesurada e inaceitavelmente brutal, embora legitimado pela participação de todos.
Excepto no caso das crianças (que deverão ter retirado desta sua experiência mais lições normativas do que a mera "roubar é perigoso"), as pessoas presentes sabiam não estar a seguir nem uma regra social, nem um comportamento esperado. Independentemente da real euforia que a dinâmica daquela performance macabra nelas suscitou, aquelas pessoas estavam a violentar-se a si próprias, a praticar actos para si repugnantes, tendo em vista um futuro melhor, mais seguro, mais correcto, mais puro.
domingo, 8 de abril de 2007
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