O que me faz regressar a esta memória, que também me violenta, poderá parecer estranho (e também desmesurado) a quem ler.
Não foi, desta vez, a actual e terrível banalização do velho princípio de que os fins justificam os meios, acompanhada pela nossa plácida indiferença ou aceitação da tortura e da destruição de direitos individuais em nome de um vago combate ao terrorismo.
Foi algo bem mais comezinho e aparentemente mais inócuo, embora me pareça partilhar os mesmos princípios e poder conduzir aos mesmos desenlaces: a progressiva (re)emergência da pureza como princípio subjacente a actos e decisões políticas, e a sua paulatina aceitação por quem mais razões teria para se arrepiar - a esquerda.
Não me refiro, claro, às denúncias de golpadas, corrupções, compadrios, tráficos de influências e outras canalhices. Penso em dois casos recentes e, repito, aparentemente comezinhos.
Um, é a lei que aí se prepara sobre o consumo de tabaco.
A sua longínqua legitimação social é, claro está, a protecção dos fumadores passivos. Mas, sistematicamente e sem que tal possa ser atribuido a imbecilidade do legislador, alarga os espaços proibidos - e a proibição, dentro deles, de zonas delimitadas de fumadores - a casos que extravasam completamente essa legitimação inicial.
Não se trata já de proteger a saúde de quem não fuma. O resultado final só faz sentido numa lógica de punição sistemática daqueles que se dedicam ao impuro vício de fumar, mesmo em condições que não prejudicassem terceiros.
Tal punição poderá ser aceitável para muitos, que encontram na sua pureza a legitimidade para a decretar. Muitos outros poderão achar que assim se contribuirá para erradicar esse vício impuro, da mesma forma que se acredita que linchementos e pena de morte contribuem para dissuadir o crime. Mas a base (consensual) de legitimidade da lei deixou de existir.
Um segundo caso, um pouco mais antigo, é a justificação pública que dirigentes do Bloco de Esquerda apresentaram para a manutenção em funções da sua presidente da câmara, apesar de arquida num processo.
A diferença entre essa situação e a de outras câmaras em que o BE exigia demissões (e, julgo eu, muito bem) era sintetizável em dois pontos:
1. A senhora em causa não é acusada de utilizar o cargo para favorecer ilicitamente terceiros ou a si própria, mas para desfavorecar um munícipe.
2. O processo em causa seria uma perseguição do tal senhor, que se diz perseguido por não ter obtido um alvará para uma casa de alterne.Pressupõe esta justificação que favorecimento ilícito e desfavorecimento ilícito são coisas de natureza diferente; que desde que alguém não se "encha" abusando do cargo fica supostamente impoluto, e a coisa é muito menos grave. Impuro será meter dinheiro aos bolsos, próprios e dos amigos, enquanto um abuso de poder que seja puro será toda uma outra conversa. Pressupõe também (e espera que quem ouve se solidarize com esses pressupostos) que recusar ilegalmente um alvará para uma coisa tão impura como uma casa de alterne é mais compreensível/desculpável, e que o facto de o queixoso se dedicar a um negócio como esse o descredibiliza a si e à sua queixa.
Punição dos impuros (mesmo que legais), atenuante do ilícito pela pureza e sonegação de direitos e de credibilidade aos impuros (mesmo que também legais e recordando populismos ao estilo "Mães de Bragança"), não nos chegam, nestes casos, de conservadores retrógrados.
Vêm de um governo que, classifiquem-se como se classificarem as políticas que aplica, é de um partido que se reclama de esquerda e vêm de um partido de esquerda onde muita gente - sei-o - não se revê em tais tiradas retóricas e nos pressupostos que lhes subjazem.
domingo, 8 de abril de 2007
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