domingo, 14 de outubro de 2007

Antropologia Militar, ou Militarização da Antropologia?



João Pina Cabral, uma referência para mim e muitos outros antropólogos, chamou a atenção de vários colegas para este artigo, acerca da utilização de equipas de antropologia por parte das tropas Norte-Americanas no Afeganistão.

É óbvio que os tempos mudaram desde a II Guerra Mundial, quando houve antropólogos com lata para explicar o “comportamento sádico” dos soldados japoneses com base no seu precoce treino de bacio, ou o “carácter maníaco-depressivo” dos soviéticos (e mesmo as purgas estalinistas) com base no hábito rural de enfaixar os bebés.
No entanto, olhando para algumas tarefas desempenhadas pelos antropólogos mencionados no artigo, já não estou tão certo de que os tempos tenham mudado assim tanto desde os estudos de Jorge Dias acerca dos Maconde, naquele mesmo planalto de Mueda onde a guerra de libertação moçambicana iria dentro em pouco começar. A monografia resultante desses estudos é bastante interessante, mas confesso que aguardo com mais curiosidade o dia em que se tornem públicos os seus concomitantes relatórios para a PIDE – segundo parece, mais substanciais em tamanho e conteúdo.

Devo dizer que, em abstracto, nada tenho contra a prática de antropologia aplicada – tendo essa posição pouco a ver com o facto de ela já ter sido o meu ganha-pão durante alguns anos.
Afinal, a produção de conhecimento nunca é inócua, a menos que ele seja socialmente irrelevante. A partir do momento em que o conhecimento é divulgado, está disponível para manipulação por parte de quaisquer entidades nele interessadas, tendo tal acontecido de forma sistemática e para efeitos tão diferentes como acções emancipadoras, dominações coloniais ou mesmo genocídios.
Sendo assim, porquê deixar a pessoas ou grupos com interesses parciais (e que normalmente apercebem de forma também ela parcial e simplificada as análises e dados antropológicos) o monopólio da aplicação prática desses conhecimentos? Não estarão as pessoas que os produziram em melhores condições epistemológicas e éticas para condicionar esse uso?

Também nada tenho, em abstracto, contra a profissionalização da antropologia.
Confesso mesmo que, por muito que os respeite, tenho uma enorme dificuldade em compreender os argumentos que se opõem à antropologia como profissão, quando os olho de uma perspectiva que extravase o microcosmos académico.
É claro que é socialmente importante, por si só, a existência de uma disciplina científica que equacione a humanidade e os fenómenos sociais na sua diversidade, unidade e nuances, nas suas continuidades e rupturas. É claro que, sobretudo na actualidade, seria óptimo que todas as crianças pudessem, na escola, ter contacto com essa tecnologia de pensamento e essa forma de questionar o mundo.
Mas quem cursa uma licenciatura de antropologia estuda-a para vir a fazer antropologia, não para se formar a si próprio como cidadão mais consciente, ou para exercer de forma mais completa outras profissões, que também elas requerem formação especializada.
Para além disso, pude verificar por experiência própria (e não apenas por wishful thinking), tanto na prática de antropologia “pura” como de “aplicada”, que a sua utilidade social é bem real, que existe espaço para antropólogos fora da academia e que ele deve ser colmatado.

Colmatado da forma que esse artigo nos dá a conhecer?
Isso já é outra conversa.

Mesmo na ocupação do Afeganistão, o envolvimento da antropologia não é novo. Por exemplo, há já um bom par de anos que os meus amigos Alex (antropólogo) e Gielt (cientista político) ensinam, a soldados holandeses a caminho de lá, coisas tão básicas como que um afegão que não nos olha na cara não está necessariamente a esconder alguma coisa mas a ser bem-educado (e que deveremos fazer o mesmo ao falar com ele), que ao perguntar-lhe por talibãs ele identificará todas as pessoas que sabem ler e escrever, ou que normalmente nos fornecerá, como número de habitantes de uma aldeia, um valor redondo que corresponda à sua noção de “poucos” ou de “muitos” e que, se não o fizer, contabilizará apenas os chefes de família. Isto, claro, a par de outros particularismos culturais, cujo conhecimento poderá evitar bastantes asneiras.

Não deixando isto de ser uma manipulação do conhecimento antropológico por parte de forças de ocupação, é, no entanto, essencialmente diferente do empenhamento de antropólogos nessa mistura de engenharia social com “acção psicossocial” (que tão bem conhecemos das “nossas” guerras coloniais) retratada pelo artigo norte-americano.
Não estamos, nesse caso, perante uma Antropologia Militar (que estuda instituições e conflitos armados), mas perante uma militarização da antropologia, tal como foi acontecendo com a física, com a química, com a biologia, com a engenharia, com a economia, com a sociologia, com a psicologia e com as respectivas aplicações tecnológicas.
Mas a diferença é que, ao contrário de todas essas ciências e apesar de algumas escorregadelas que deu no passado, a antropologia partilha hoje um lastro de conceitos, princípios e valores que são contrários à sua aplicação bélica. Mesmo depois de ultrapassados os tiques de preservacionismo cultural, o seu ethos tem a ver com a compreensão, diálogo e respeito (não acrítico) entre grupos que se concebem como diferentes, não com a manipulação do “outro”, sob ameaça armada, para melhor o dominar. Até o envolvimento da antropologia com o colonialismo, feito apesar de tudo sob condições bem diferentes em grau e em qualidade, é objecto de uma generalizada e assumida crítica ética.

A ética, contudo, nunca é abstracta, absoluta e intemporal, por muito que filósofos a busquem como tal, há séculos. É, à imagem de tantas outras coisas, também o resultado de relações de poder e da negociação entre as interpretações valorativas e políticas de agentes sociais que estão situados em posições diferentes nessas relações de poder.

Que esse empenhamento de antropólogos "embedded" no exército dos Estados Unidos possa salvar vidas e facilitar o trabalho de ocupação, não tenho dúvidas.
Que, num tempo e num país que chamou “Patriot Act” a um conjunto de leis de excepção que limita fortemente os direitos de cidadania, essa actividade seja considerada de interesse nacional e um dever patriótico pelas instituições e indivíduos nela envolvidos, tão pouco será de espantar.
Que isso é uma violação da antropologia tal como a vivemos e concebemos, é também certamente verdade.

Está para a antropologia da mesma forma que a produção da bomba atómica está para a física, com a agravante de que esta última não partilha o ethos humanista que nos atribuímos.

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