Adam Smith
O porta-voz do partido no poder em Moçambique considerou as manifestações de 5 de Fevereiro, em Maputo, «atípicas e com origem numa mão invisível, que fracassou nos seus intentos de desestabilizar o País».
O meu interesse pela frase não se deve muito à imagem de um povo ordeiro e pacífico (os moçambicanos, que estiveram 30 anos em guerra, primeiro anti-colonialista e depois fraticida, com Campos de Reeducação, execuções públicas e Operações Produção pelo meio), ingenuamente manipulado por tenebrosas, subversivas e desconhecidas forças externas.
Afinal, essa imagem é uma interpretação que até já está bastante vista, desde que Salazar a aplicou às Lutas de Libertação Nacional nas então colónias portuguesas e à resistência anti-fascista na então "metrópole".
Parece-me bem mais curiosa a metáfora da "mão invisível", para designar as tais forças externas, sobretudo num partido reconvertido ao capitalismo liberal.
Seria de esperar que quem a usa num assunto tão sensível se lembrasse de onde tinha ouvido a frase. Foi, claro, em Adam Smith, quando ele teoriza a regulação automática dos preços por parte do mercado concorrencial (com base na oferta e na procura) e, em resultado desta, a selecção entre empresas bem sucedidas e falidas.
Imaginem as interpretações e parangonas de jornais que, com base nisto, se poderiam fazer acerca da origem dos motins na "mão invisível" da economia de mercado, ou em mecanismos automáticos de regulação entre oferta e procura política!...
Talvez, nesse caso, quem falou de "mão invisível" não andasse mais longe da verdade do que Adam Smith, mas tenho algumas dúvidas de que fosse isso que queriam dizer.
Tudo isto me lembra aquela piada russa do puto que, regressando de uma celebração oficial onde ouvira que «caminhamos em direcção ao horizonte radioso do comunismo», foi ao dicionário e ficou a saber que o horizonte é «uma linha imaginária que parece afastar-se à medida que nos aproximamos dela».
A semântica, às vezes, prega partidas ao discurso metafórico dos políticos.
4 comentários:
o que também se retira dos jornais que li no Maputo é o medo que o governo e a frelimo têm da ira do povo. mesmo duas semanas depois dos protestos de 5 de fevereiro continuei a ler apelos dos porta-vozes de governo e partido para que se as pessoas estão insatisfeitas utilizem os mecanismos institucionais para que as autoridades possam lidar com o assunto.
esqueceram-se foi que já poucos confiam que isso leve a algum lado.
Viva, de novo.
Sim. Parece que a ausência de alternativas realmente credíveis e o muito que as pessoas foram suportando ao longo dos anos tornou o poder autista.
À desconfiança das pessoas relativamente a vias institucionais para reclamarem junta-se o facto de nem essas vias serem claras, nem parecer haver muito a esperar delas.
O que é que as pessoas vão fazer? Queixar-se ao Secretário de Bairro? Mandar uma carta ao Presidente do Conselho Municipal? Ao comité da Frelimo? Ao Presidente da República? Ao Banco Mundial?
Esses apelos do poder ficam um pouco hipócritas, não é?
engraçado que coloque o Banco Mundial acima do Presidente da República. poder-se-ia juntar as ONGs de desenvolvimento que são por aí mais que as mães.
Olá.
Como imagina, a ordem dos exemplos não foi casual. Afinal, quem realmente manda, manda - mesmo se, conforme dizia o Samora, para que um feiticeiro entre em casa é preciso que alguém lhe abra a porta.
As ONGs já são outra história. São mais que as mães, sim, mas talvez mais ainda do que imagina. Há em Moçambique mais ONGs registadas do que médicos!
No entanto, se tentam, para além de ganhar a vidinha e fazer umas coisas, estabelecer mini-estados de excepção como as missões protestantes em tempos coloniais, não têm caparro para isso.
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