quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Verdes sementes revolucionárias



Ontem, o oficioso jornal Noticias trazia de novo à primeira página a "Revolução Verde", com mais alguns dados para além da sua vertente bio-energética que comentei aqui, a partir de uma conferência de imprensa oficial.
Embora fosse declarado que os planos estão decididos, não foi adiantado em que consistem. Não obstante, foi destacada a organização doadora (Agra, uma respeitável organização internacional presidida por Kofi Annan e financiada pelas fundações Rockefeller e Gates) e duas outras áreas de actuação: fertilizantes e sementes melhoradas.
Aliás, como se pode ver no site da Agra, já há mais de um ano estão a ser financiadas, com um total de 328.495 USD, duas empresas moçambicanas que se pretendem dedicar a este último assunto - uma delas, curiosamente legalizada 3 meses depois de começar a receber subsídio e a outra sem qualquer referência na net.


O tema fertilizantes, certamente pertinente, é de momento um pouco sensível, depois de, na 2ª semana de Janeiro, ter sido manchete dos jornais o encerramento de uma fabriqueta de mistura de produtos químicos para adubos que funcionava em condições desumanas de segurança e vínculo laboral, sendo propriedade de pessoas que ocupam elevados cargos públicos. Abstenho-me de deitar mais lenha na fogueira.


Quanto às sementes melhoradas, permitam-me que partilhe convosco a eventual utilidade da minha experiência como antropólogo.

Por todo o mundo (à excepção, talvez, da rizicultura intensiva) os camponeses tomam um cuidado comum: cultivam ao mesmo tempo produtos diferentes, se possível em terrenos com características distintas e, para os produtos que são a sua base alimentar, com sementes diferentes. A diversidade pode ser tão grande como a que é ilustrada no início deste post.

A razão para isso não é, obviamente, preguiça nem preocupação de não interferir com a natureza, pois é mais difícil cultivar dessa forma e porque toda a agricultura é uma actividade de selecção e manipulação da natureza.

A razão é que dessa forma se podem precaver, com meios tecnológicos disponíveis e gratuitos, de pragas e incertezas climatéricas.Se estas ocorrerem, os camponeses aumentam a possibilidade de que parte dos diferentes produtos alimentares cultivados (e, dentro de cada um deles, parte das variedades de sementes que utilizaram) lhes resistam, não perdendo toda a colheita e salvaguardando-se da fome.

Não usam, assim, uma lógica de risco (que consiste em "pôr todos os ovos no mesmo cesto", decidindo apostar no resultado mais vantajoso, mesmo assumindo a possibilidade de grandes perdas), até porque perder toda a colheita pode representar a morte ou, pelo menos, a completa miséria.

Como que fazem um seguro a si próprios; usam uma lógica de precaução, em que abdicam de uma parte da maior rentabilidade possível mas minimizam as possíveis perdas, através de meios ao seu alcance. Não o fazem por serem estúpidos, mas precisamente porque não o são - e porque têm a experiência histórica não só de como se salvaguardarem, mas também de grandes campanhas que amiúde falharam e os deixaram sozinhos para resolverem os problemas que elas criaram.

Parece-me pertinente e urgente que, em vez de se encarar esta atitude camponesa como uma "mentalidade retrógrada", se pare para pensar e, eventualmente, aprender com elas antes de se deitar fogo à mata.

"Sementes melhoradas" podem, de facto (e dependendo de como forem melhoradas), aumentar a produtividade e a resistência a determinadas pragas e doenças.

Mas, por um lado, a tecnologia disponível, embora impressionante, não resolve tudo. Por outro lado, a especialização de uma planta segundo determinados critérios e objectivos fragiliza-a necessariamente segundo outros.

Então, para além da dependência do fabrico e atempada distribuição das sementes, e para além do sempre problemático controlo rigoroso da sua qualidade, um outro problema bem grave pode surgir:

Fragilidades das plantas a inesperadas variações climatéricas e pragas, exigindo o uso de pesticidas (com a falta de dinheiro para os comprar, a contaminação de solos/águas e os prováveis envenenamentos por sobredosagem que lhe estão associados) ou, simplesmente, provocando uma catástrofe alimentar por perda generalizada das colheitas. Ou seja, a dinamização da economia industrial e comercial, mas a dependência e a fome nos campos.

Isto, para não falar dos possíveis perigos decorrentes dos produtos trangénicos, tecnologia que, quase certamente, acabaria por ser utilizada mais tarde ou mais cedo, até pelo confortável campo de experimentação que África pode constituir para as transnacionais agro-alimentares.

Algo tem de facto que ser feito, não apenas para estimular e apoiar a produção agrícola e a segurança alimentar, mas também para fazer chegar às comunidades rurais os produtos básicos não-alimentares de que carecem.

Mas estou a pedir que se meçam os perigos e implicações reais antes que, num embevecimento modernizador e numa injustificada crença na infalibilidade tecnológica, as boas intenções provoquem uma catástrofe.

2 comentários:

Anónimo disse...

Peço esclarecimento:

Rizicultura é mesmo excepção?
Que razão indica para que seja excepção.

Obrigado. Muito interessante.

António Mabote

(Paulo Granjo) disse...

Caro António:

Não posso afirmar com certeza que nas zonas onde a base alimentar e agrícola é a rizicultura não se passe aquilo que descrevi acerca de outros contextos camponeses (daí o "talvez").
Apenas posso dizer que não tenho conhecimento de referências aprofundadas a esse fenómeno, caso ele exista.
Se conhece algum caso pessoalmente (ou alguma referência bibliográfica), agradeço muito a dica.

Caso esse fenómeno de diversificação de culturas, terrenos e sementes não exista mesmo em zonas de rizicultura intensiva, podemos pensar em hipóteses plausíveis para o compreender:
A cultura do arroz é muito exigente, em termos de mão-de-obra e de infraestruturas de irrigação e drenagem - cuja construção e manutenção depende em muitos contextos camponeses de sistemas de trabalho comunitário.
Esse tipo de exigências devem limitar bastante a possibilidade de cultivar a altitudes diferentes, em solos com características diferentes, etc., e mesmo a disponibilidade de tempo e mão-de-obra para outras culturas alternativas. Nada disso teria implicações, contudo, sobre o uso de sementes diversificadas.

No entanto, esta é apenas uma hipótese (não um facto), acerca de uma possível excepção que não sabemos sequer se o é.

Aliás, estou agora a lembrar-me ("culpa" sua) que no filme «Os Sete Samurais», do Akira Kurosawa, os camponeses a quem os bandidos roubaram grande parte do arroz têm sorgo (ou trigo, já não me lembro bem) para comer, embora isso seja visto pelas outras pessoas como um sinal de grande miséria.
Sendo o cineasta quem é, esta é uma indicação de que algum tipo de "seguro de colheitas" (afim daqueles que indiquei no post) é ou era feito no Japão. Possivelmente, de forma mais limitada e discreta do que em contextos camponeses centrados noutras culturas agrícolas - e talvez por isso a ausência de referências bibliográficas.

Muito obrigado pelo seu comentário. Como vê, foi muito útil para mim.