quinta-feira, 13 de março de 2008

Excertos de "Um Amor Colonial" (1)


«Um dia estou na Praça do Chile a tomar um café ali nos Perus, à espera do meu carro que estava a lubrificar. Vejo uma garota passar na rua e fiz-lhe um olhar daqueles olhares... pronto, que a gente faz. E ela sorriu! Eu levanto-me imediatamente, pago a conta, vou atrás dela e começa aqui uma história que desenrola por um período de sete anos!
Persigo a miúda, a miúda apanha um eléctrico, eu entro no mesmo eléctrico e a miúda cumprimenta o cobrador. Dá-lhe um beijo, um beijo de familiar. Mas é claro, eu não conhecia o sujeito de lado nenhum. Mais tarde, venho a saber que era o pai dela, o cobrador do eléctrico! Entretanto a miúda vai até o Terreiro do Paço e desce. Eu desço também.
Ela atravessa a Praça do Comércio e vai apanhar o carro eléctrico que vai para o Dafundo e a Cruz Quebrada, que partia do Terreiro do Paço. Ora, quando o eléctrico parte para uma viagem, vai vazio. Então, ela senta-se num banco, os outros bancos estavam todos vazios e eu fui-me sentar ao lado dela! A miúda ficou muito atrapalhada. Passado um bocadinho, assim que o eléctrico arranca, levanta-se e muda de lugar. E pronto, eu fiquei no mesmo sítio, mas sempre numa de perseguir. A coisa continuou, eu sempre a ver onde é que ela ficava, e quando ela chega ao Dafundo, desce. Ela desce, eu desço também.
Aí, a miúda começa-me a desviar a atenção. Mete para uma casa comercial, sai, vai para outra, e eu sempre a persegui-la sem perceber o que é que se passava. De um momento para outro, não sei como é que aquilo acontece, eu vou ver numa casa comercial onde é que está a miúda e a miúda não estava lá! E eu disse para mim: «Não! A miúda deve estar escondida, ou qualquer coisa». Bom... isto fez com que eu andasse um dia inteiro atrás dela e perdi-a de vista.»
(capítulo 4)

6 comentários:

AGRY disse...

Do que li, sugere que estamos na presença de alguém que domina as técnicas de bem escrever novelas, é isso?
Nesta altura, uma amiga minha já lhe teria perguntado: e depois..depois?
Para descrever as coisas banais, as coisas simples, que acontecem um pouco a todos nós também é preciso talento. Suspeito que o tenha. Eu? Nem por isso

(Paulo Granjo) disse...

Não. Isto não é ficção e o mérito do discurso não é meu. Eu só seleccionei e editei 3 cassetes de entrevistas e dei aso a que elas acontecessem.

O que é mais espantoso é que o homem (o Sr. Álvaro Pereira, nascido em Angola, com 1001 profissões passadas e, até lhe terem roubado há uns meses tudo o que havia no restaurante-bar da Universidade Eduardo Mondlane, concessionário do mesmo) está a falar, não está a escrever!

É espantoso, também, que toda a gente que leu o livro completo gostou, o pessoal das editoras também, mas depois o livro «é difícil de classificar» (mesmo para quem leu "Os Filhos de Sanchez"), isto parece literatura e o autor não é conhecido aí «só tem notoriedade no mundo científico, não aparece na televisão nem namorou com o Pinto da Costa», pelo que adorariam publicar, quanto mais não fosse para o terem na sua estante pessoal, mas é uma edição «de alto risco», exigindo subsídio.

A mim não me parece que seja assim, mas eles é que têm experiência. Devem ter razão.

Mas é estranho que pudesse escolher entre várias editoras para publicar a minha tese de doutoramento (que não é propriamente leitura de praia) e esteja a ser tão difícil ver um livro destes impresso.

Enfim... É um desabafo.

AGRY disse...

Estamos na presença do velho dilema!
Os defensores,o mercado e a sua sacri
lização.
Em países "independentes" vão surgindo, aqui e ali, editoras malditas que funcionam com estas marginalidades. Em Moçambique, ou em Portugal, as coisas não serão nada fáceis.
Abraço
Agry

(Paulo Granjo) disse...

Pois.

Por acso, até existe uma editora quase sem distribuição (embora não "maldita", que essas inventam os seus canais de divulgação alternativos e acabam por chegar a quem mais vale a pena que cheguem) que estaria interessada.
Só que acho um desperdício de esforço e um desrespeito pelo homem que isto fosse acabar num armazém ou vendido a peso, sem que sequer os eventuais interessados soubessem que existia.
Para além de que a história toda não são só amores. Também dá para aprender (e/ou relembrar) muito acerca do que era a Lisboa do "Estado Novo" e as colónias portuguesas.

Isabela Figueiredo disse...

Sabes uma coisa, isto agora esquecendo a questão literária (que não é despicienda!): detesto o discurso destas amálgamas de cultura machista que toda a vida me perseguiram, que conheço bem. Não consigo ler isto sossegadamente enquanto mero documento. Para mim, tudo isto está ainda demasiado próximo. Não sei se podes compreender-me. Penso que não, porque és homem, e o mundo dos machos, sinceramente, é cão.
Um abraço.

(Paulo Granjo) disse...

Por muito que te possa surpreender, compreendo muito bem.

Aliás, parte do meu fascínio por esta história (de que só estão uns bocadinhos) vem destas práticas e visões predatórias - por as ter encarado como uma coisa datada, um documento de outros tempos. Pelos vistos, é bem possível que me tenha enganado, que a coisa não pertença quase à arqueologia.

De qualquer forma, o homem em questão não é só isto. É também o gajo que passava tardes a brincar com a rapariga, nus e sem nunca conseguir pensar em sexo (coito, masturbação, you name it) por o pai dela a ter tentado violar. Ou que foi salvo de um coma alcoólico numa boite onde bebia sozinho (no dia em que ela partiu de Luanda para Moçambique), por uma prostituta que nunca tinha visto, e que com ela manteve uma amizade sem sexo, para não se confundir com um cliente. Ou que, quase 40 anos depois, chorou ao contar a tal partida.

Talvez não dê para que o tires do mundo cão, mas é pelo menos contrastante.

As pessoas são contraditórias. Até nos valores que misturam e nas formas como sentem.
É por isso que prefiro estas histórias no discurso directo, quando elas de facto mexem com quem as conta. Ao pé delas, poucas personagens literárias são mais do que um esboço a duas dimensões.

Percebes esse meu fascínio, também?

Mas, de facto, apercebo-me agora que seleccionei para aqui meia dúzia de pontos de viragem da história e que, com isso, quase ficou uma caricatura da pessoa - que está viva e bem viva.