Umbhalane pediu-me para comentar e enquadrar uma notícia recente que dá conta do clima de medo entre os albinos de Dar Es Salaam, devido a assassinatos de que têm vindo a ser alvo, para que partes dos seus corpos sejam utilizadas em feitiços de enriquecimento. Uma notícia divulgada pelo Carlos Serra.
Sinto-me sempre um bocado desconfortável quando tento explicar, em poucas palavras, as razões culturais de fenómenos chocantes como este, porque pode ficar a impressão de que, por essas razões existirem, estamos a desculpar aquilo que acontece.
Esclarecendo que não é disso que se trata, vou então tentar corresponder ao pedido.
Aviso os leitores, no entanto, que a própria explicação é chocante.
A inclusão de partes de cadáveres humanos nos mais poderosos tratamentos e amuletos destinados a obter e manter riqueza ou poder é uma prática existente em toda a África austral, relacionada, por exemplo, com as mortes e roubos de orgão não transplantáveis de que temos notícia de vez em quando.
A razão para essa prática é dupla:
Em primeiro lugar, é suposto que esse tipo de tratamento se "paga em sangue" (com mortes) ao longo do tempo, sendo a morte da pessoa cujo corpo é utilizado o primeiro pagamento ao espírito que vai trabalhar para garantir riqueza e/ou poder a quem o encomendou.
Em segundo lugar, a integração de partes do corpo do defunto responsabiliza-o com o trabalho desse espírito.
Em Moçambique, que eu saiba, não existe uma predileção pelo uso de albinos nestes tratamentos e amuletos, mas é de esperar que isso possa vir a acontecer a curto prazo.
Isto porque, por um lado, a circulação transfronteiriça de novas técnicas mágicas costuma ser muito rápida e porque, por outro lado, as crenças que servem de base a essa predileção pelos corpos de albinos também existem aqui.
Há um respeitado colega que atribui a crença de que os albinos não morrem, mas apenas desaparecem, à recusa social da sua posição liminar de não serem "negros" nem "brancos". Esse aspecto é pertinente hoje em dia, mas a crença tem raizes mais antigas e razões mais complexas.
É suposto que os gémeos e os albinos resultem de um mesmo fenómeno: foram atingidos por um raio dentro do ventre materno; os gémeos partiram-se em dois e os albinos resistiram, mas ficaram queimados, perdendo a cor.
Em resultado disso, ambos se tornam "demasiado quentes" e "trovoadas sem chuva", sendo um perigo para a harmonia social, para a saúde pública (são kuhisa) e para a fertilidade da terra. Por isso (tal como os abortos, os nados-mortos e as respectivas mães) não podem ser enterrados em terreno normal, pois "secam a terra".
Os gémeos devem ser enterrados em terreno húmido e (para sua segurança) o gémeo sobrevivente deve tratar o falecido como se ele tivesse desaparecido. Não pode ir ao funeral, não pode chorar por ele e, se alguém lhe perguntar pelo irmão, deve dizer que se ausentou para longe.
Concentrando em si (ainda mais do que os gémeos, pois resistiu ao raio) o poder celeste, a ligação ao céu e a ameaça de seca de uma forma suprelativa, o albino é suposto nem sequer poder ser enterrado, mas desaparecer. Os seus familiares mais próximos devem enterrá-lo em segredo, também em terreno húmido, e agir como faz o gémeo sobrevivente, negando a sua morte.
O albino é, de acordo com estas crenças e práticas, a pessoa com mais poderes disruptores e a maior ameaça de "secar o chão", secar a fertilidade e a sobrevivência colectiva.
Ora o enriquecimento individual é visto, tradicionalmente (aliás, à imagem do poder que não redistribui o bem-estar), como um abuso que requer feitiçaria e que é feito à custa da comunidade. Quem enriquece para si próprio "seca" a riqueza à sua volta.
De acordo com esta lógica, então, o uso de partes de corpos de albinos nos tratamentos e amuletos de enriquecimento e/ou poder é uma mais-valia para a sua eficácia.
Por tudo isto, repito, temo que as más notícias que nos chegam da Tanzânia nos poderão começar, em breve, a chegar de dentro de Moçambique.
Convém que os albinos, os restantes cidadãos e os poderes públicos se preparem.
sábado, 14 de junho de 2008
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
5 comentários:
Obrigado Paulo.
Não dá para mais nada, no momento.
Grande abraço.
Fico, então, à espera de comentários mais substanciais.
Abraço
Paulo
Já sei que estou em falta.
Tem um artigo no Blog do Prof, com um comentário de Egídio Vaz, à maneira.
Abraço
Muito interessante, de facto.
Discordo que o costume seja merecedor da apologia que ele faz, ou que se veja a submissão de indivíduos (menores ou não) ao que os mais velhos e/ou poderosos consideram ser o "bem colectivo" como algo "progressista".
Mas desconstroi completamente o discurso catastrofista de quem olha para os costumes dos outros e não se quer sequer dar ao trabalho de entender de que é que está a falar, antes de "denunciar".
Perfeitamente de acordo, Paulo.
A apologia é, de facto, extemporânea.
E o costume está no seu estádio de desenvolvimento próprio.
Mas é interessante...e também porque se trata do meu "Povo" - os Senas.
Enviar um comentário