terça-feira, 16 de setembro de 2008

Gémeos, albinos e prisioneiros desaparecidos (5)

SUBVERSIVOS E VÍTIMAS (I - Operação Produção)

Imagem 3. Julgamento de uma mãe, talvez solteira, durante a Operação Produção

Em Maio de 1983, ao informar o país acerca dos resultados do 4º Congresso da Frelimo, o Presidente Samora Machel anunciou que uma das decisões era «limpar as cidades de vadios, marginais, prostitutas e todos aqueles que não trabalham». Nas palavras de Gita Honwana (revista Justiça Popular 8/9: 3), «Assim de iniciou a grandiosa operação pela produção, contra a fome e o desemprego, contra a marginalidade e a criminalidade, pela dignidade do Homem Moçambicano; uma operação que é parte integrante da batalha económica que hoje travamos; uma operação que está sendo uma escola em que também a Justiça através dos seus Tribunais, através da actuação dos seus Juízes, foi aprender uma lição de legalidade».

Para a população comum, contudo, era difícil reconhecer sob uma retórica tão gloriosa os acontecimentos reais que estavam a viver.
Aquilo que recordam e mencionam são as constantes rusgas e postos de controlo, impostos pela polícia e pelas milícias oficiais junto das paragens de autocarro e nas áreas residenciais, as pessoas que não traziam no bolso o bilhete de identidade ou o cartão de trabalho a serem levadas para o Niassa antes que as suas famílias tivessem oportunidade de intervir, as mães solteiras sendo deportadas como prostitutas, os desempregados sendo tratados como criminosos por um estado que era dono da economia mas não lhes conseguia proporcionar trabalho, a humilhação, a dor, o desamparo e a amargura.
Afinal, as pessoas lembram e sublinham as famílias separadas e destruídas, o trabalho forçado, os parentes desaparecidos para sempre, o abuso de poder sobre pessoas normais, sem qualquer tipo de resultados positivos – junto com o aproveitamento do ambiente de delação e depuração para levar a cabo vinganças pessoais.

Quando recuamos no tempo e olhamos para essa realidade através da perspectiva do estado, na revista oficial Justiça Popular, tanto as apologéticas compte rendu dos Juízes Populares quanto os apelos e veredictos publicados como exemplos de jurisprudência são consistentes com as descrições populares que mencionei.

Não foi escrita qualquer lei sobre a “Operação Produção” mas, só em Maputo, foram de imediato criados 38 postos de verificação com o estatuto de Tribunais Populares mas, ao contrário destes, com o poder de sentenciar os acusados a penas de prisão ou de deportação para centros de produção ou campos de reeducação. Nas primeiras semanas, as rusgas e detenções foram tão numerosas que os Juízes Populares nomeados tiveram frequentemente que trabalhar 48 horas consecutivas, decidindo o destino de centenas de pessoas (imagem 3).
Com a acumulação de acusados, as forças policiais começaram a mandá-los logo para os centros de evacuação, de onde seguiam directamente para o Niassa. Foram mais tarde criados grupos de triagem nos postos de verificação, e só os «casos duvidosos» eram levados aos Juízes Populares.
Também acabou por ser implementado um mecanismo de apelo, neste caso baseado sobretudo em juízes com alguma preparação jurídica efectiva.

A revista refere muitas decisões injustas, mesmo de acordo com os critérios draconianos da Operação Produção.
Nas áreas periurbanas, houve camponeses deportados porque, obviamente, não tinham nenhum cartão de trabalho passado por uma entidade empregadora. O mesmo aconteceu a vários trabalhadores empregados, porque muitas empresas tinham os seus registos de pessoal desactualizados (idem: 3-10). Entre os académicos e outras profissões proeminentes, chegou a haver casos de pessoas que foram subitamente demitidas e, ao chegarem a casa, encontraram a polícia à sua espera para as deportar como “improdutivas”.[1] Outras profissões, como os curandeiros e adivinhos, não eram reconhecidas como tal pelo estado e, dessa forma, praticá-las tornou-se uma razão para deportação – tal como acontecia com os biscateiros (idem: 40).

Também os critérios utilizados nos apelos são com frequência surpreendentes.
Um dos exemplos de jurisprudência confirma a deportação para o Niassa de um trabalhador emigrado que esperava em Maputo pela renovação do seu passaporte, baseando-se a decisão no facto de ele não ter um cartão de trabalho da Suazilândia – que não existia – e de, ao contrário do que a polícia política lhe dissera para fazer, não se ter inscrito como alguém que procurava trabalho – o que não era o seu caso, visto trabalhar no estrangeiro (idem: 41).
De facto, apelar podia piorar a situação. Os pais de uma jovem pediram o seu regresso de um campo de trabalho perto de Maputo, pois não era “improdutiva”, à luz das últimas instruções enviadas aos postos de verificação. Mas o juiz de recurso decidiu que, como ela era mãe solteira de dois filhos «perante a total indiferença dos seus pais», era uma «mulher de mau porte» e deveria voltar a ser julgada sob essa acusação, e não como “improdutiva” (idem: 41). Nesta nova situação, foi provavelmente enviada para o Niassa…

As situações mais arbitrárias diziam de facto respeito a mulheres e à acusação de prostituição. Depois de 6 meses de julgamentos sumários e deportações, um Juiz Popular sugere timidamente que talvez seja tempo de «definir claramente prostituição e identificar a sua punição, de acordo com a nossa realidade» (idem: 9), aproveitando para mencionar o caso de uma mulher que foi acusada de prostituição porque se separou de um homem com quem coabitava há vários anos sem ser casada e, vivendo de novo em casa dos pais, começou a relacionar-se com outro homem antes de as «estruturas locais»[2] terem ratificado a sua separação anterior.
Um dos veredictos de recurso teve que sublinhar que «uma mulher não é uma prostituta apenas por ter vivido maritalmente com um português», antes da independência (idem: 42).
E Stephanie Urdang (And Still They Dance) ouviu, numa viagem de estudo através de campos de deportação, queixas sistemáticas de mulheres que diziam estar ali devido a vinganças pessoais de carácter sexual.


[1] Ao contrário dos restantes exemplos que menciono, tomei conhecimento destes últimos casos (que correspondem à punição de inimizades pessoais ou políticas que não encontravam bases legais sob outras acusações) através de comunicações pessoais, e não pelos artigos da revista Justiça Popular.
[2] Num quadro monopartidário que indiferenciava o estado e o Partido Frelimo, esta expressão designava os Secretários de Bairro, os Grupos Dinamizadores e as lideranças locais das organizações de base da Frelimo, com destaque para as de mulheres e de juventude. "Estruturas” acabou por se tornar a designação popular para quaisquer dirigentes do estado ou da Frelimo, do nível central ao local.

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