UMA TEORIA POPULAR DO PODER POLÍTICO
Essa seria, contudo, uma assunção simplista.
Por um lado, seria simplista pelo facto de dois grupos muito diferentes de prisioneiros políticos desaparecidos surgirem amalgamados, nas narrações populares, sob uma mesma equivalência aos gémeos e albinos: os heróis que morreram pela independência (que depressa foi apresentada como sinónimo de revolução socializante); e as pessoas que, sob imputações estigmatizantes, foram acusadas de conspirar contra a independência, o Povo Moçambicano e a revolução.
Em segundo lugar, seria simplista por ser bem sabido que uma detenção como prisioneiro político não derivava necessariamente de uma culpa ou de um acto censurável. Isto é imediato no caso dos resistentes anti-coloniais. Mas a maioria das pessoas concordará também que após a independência, junto com “verdadeiros” pró-colonialistas, contra-revolucionários e ideologicamente heterodoxos, muitos prisioneiros foram detidos apenas porque se queixaram um pouco mais alto de assuntos que também desagradavam aos seus vizinhos e colegas, ou porque tomaram as atitudes “erradas” no momento errado, mesmo que tivessem razão em fazê-lo – como no caso apresentado neste pungente relato de um ex-prisioneiro político:
«Nesse tempo, eu não era contra-revolucionário, nada! Estava feliz com a independência e aceitava como ela era, mesmo as coisas que não gostava.
Por exemplo: se tinha que se fazer dias de trabalho voluntário, porque é que eu ficava de enxada na mão, a capinar e a fazer buracos? Sou mecânico, por amor de Deus! Não sabia usar uma enxada e as outras pessoas não sabiam fazer mais nada. Eu ia ser mais útil a fazer o meu trabalho de graça, naquele dia. Mas nunca me queixei dessas coisas. Não gostava, mas fazia o meu melhor e aceitava. E aceitava a Frelimo mandar, porque nos trouxe a independência.
Mas mandaram-me para o campo de reeducação como contra-revolucionário e sabotador! Foi assim: uma peça importante de uma máquina partiu e o director da fábrica mandou-me fazer uma nova. Disse que não se podia fazer, que era preciso importar. Expliquei que não tínhamos aquele aço e as ferramentas que eram precisas e que, se substituíssemos por uma peça feita por nós, outras iam partir.
O director não sabia nada de mecânica e indústria. Era só um “camarada dedicado da luta armada” e então fui preso como sabotador. Depois, aconteceu o que eu disse. Ele é que foi o sabotador, mesmo. Mas fui eu que fiquei anos no campo de reeducação.»
Assim, a diferenciação popular entre deportados e prisioneiros políticos não decorre dos actos particulares que eles efectuaram (ou não) e da culpa atribuída a esses actos concretos, mas da posição que eles mantêm perante o poder e da avaliação pública que é feita acerca dessa posição.
Por outras palavras, o objecto da avaliação popular, neste jogo de identificação e diferenciação, não é a culpa ou inocência de actos concretos, mas aquilo que é lícito ou ilícito quer na relação das pessoas com o poder estabelecido, quer na forma como esse poder é exercido.
Efectivamente, conforme antes mencionei, os gémeos e os albinos têm outra característica pertinente, no contexto socio-cultural do sul de Moçambique, para além do desaparecimento destes últimos e da sua origem cósmica comum: ambos são ameaças socio-cósmicas que fazem perigar a ordem da reprodução do mundo, nos seus aspectos naturais e sociais.
Dado que o desaparecimento é comum aos deportados e prisioneiros políticos acerca dos quais se contam as histórias que temos vindo a acompanhar, o assunto que é enfatizado nos destinos opostos que são atribuídos aos seus cadáveres é, então, o carácter ameaçador que é ou não reconhecido a cada um dos grupos (veja-se imagem 2).
Assim sendo, a coexistência entre, por um lado, uma equivalência simbólica entre prisioneiros políticos desaparecidos e gémeos/albinos e, por outro lado, a sua diferenciação dos deportados desaparecidos na Operação Produção, expressa um conceito – ou, melhor dizendo, uma teoria – das relações de poder político que mantém interessantes paralelos com as sugestões de Harry West acerca do norte de Moçambique.
Sejam heróis da independência ou ameaças a ela, sejam culpados ou simplesmente pessoas consideradas subversivas pelo poder (não importa quando ou qual), os prisioneiros políticos ameaçam a sociedade global e não apenas aqueles que ocupam o poder. Pessoas normais a que se tornaram vítimas de um abuso de poder generalizado não são ameaças sociais; pelo contrário, são merecedoras de preocupação e consideração públicas.[1]
Em termos mais gerais, de acordo com essa teoria política popular, é ilícito e socialmente ameaçador fazer perigar o poder estabelecido, a partir do momento em que ele é reconhecido como tal, e quem o faz torna-se uma anormalidade social ameaçadora. Fazer perigar o poder estabelecido é fazer perigar não apenas os poderosos, mas também a ordem e equilíbrio sociais.
Entretanto (de forma inseparável, e tão importante como a afirmação anterior), é também ilícito, para um poder estabelecido e legítimo, tomar decisões injustas acerca das pessoas sob sua responsabilidade, em vez de assegurar o seu bem-estar básico, conforme deveria.
As resilientes representações sociais acerca dos gémeos e albinos foram, então, manipuladas para expressar de forma crítica uma visão do poder subtilmente equilibrada, que pode ser muito enganadora se focarmos a nossa atenção em apenas um dos seus pólos. Tudo o que conseguiremos ver, nesse caso, será ou uma atitude dependente e exigente ou (olhando para o pólo oposto) uma resignada e quase automática submissão ao poder.
Quando a tomamos no seu conjunto, contudo, aquilo que vemos é um “contrato social” (Rousseau) que, de facto, é similar a várias descrições de conceitos “tradicionais” de poder político na África sub-sahariana:
Um poder estabelecido pode ser considerado legítimo devido a diversas razões diferentes (neste contexto, a genealogia, a conquista, a legitimidade revolucionária ou eleições democráticas); mas o reconhecimento social da legitimidade do poder, mesmo que consensual, não significa que todas as suas decisões e práticas sejam legítimas, mesmo que sejam realizadas ao abrigo das competências que lhe são reconhecidas.
O reconhecimento público da legitimidade do poder impõe, aos poderosos, responsabilidades para com a protecção e bem-estar da população que governam. Se o poder estabelecido falha a concretização dessas responsabilidades – ou as desrespeita – nas suas acções concretas, essas acções são ilegítimas, embora o próprio poder não o seja.
Assim, focar apenas um dos pólos deste “contrato social” tem consequências mais vastas que o mero equívoco interpretativo ou científico. Pode, também, restringir a capacidade para compreender as dinâmicas políticas correntes.
Após 80 anos de domínio colonial e 33 anos de independência sob governação de um mesmo partido, que nem sequer enfrentou resistências explícitas para mudar de um paradigma socializante para uma política neo-liberal, é muito compreensível que as elites políticas moçambicanas foquem a sua atenção no pólo da resignação e submissão popular ao poder.
Foi por isso, parece-me, que essas elites se mostraram tão surpreendidas pelos violentos motins contra os aumentos de preços que abalaram Maputo no início de Fevereiro de 2008 e declararam que existia uma «mão invisível» externa por detrás deles.
Mas, se parece agora claro, a partir dos dados e interpretações que apresentei, que as velhas representações acerca de gémeos e albinos foram seleccionadas como matéria-prima para expressar de uma forma sistemática uma visão popular do poder e para classificar, em função dela, recentes actores dos acontecimentos políticos, não há nada de “natural” nessa escolha.
A selecção dessa metáfora, em detrimento de alguma das linguagens locais mais habitualmente utilizadas para falar do poder (como por exemplo a feitiçaria), é pelo contrário excepcional e surpreendente.
Provavelmente, tudo começou com esse perturbante acto de desaparecer, que é comum aos dois contextos e parece ter oferecido, aos albinos e gémeos, uma insuspeitada pertinência para simbolizarem questões políticas recentes.
O facto de terem sido seleccionados para esse efeito revela, no entanto, um outro ponto importante: mostra até que ponto são ainda hoje relevantes, no Moçambique urbano e periuburbano, as representações e crenças acerca de gémeos e albinos.
[1] Seria interessante verificar que destino era atribuído pelos relatos populares aos cadáveres das pessoas falecidas em trabalho forçado durante o regime colonial, mas não consegui encontrar referências a esse assunto.
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