SUBVERSIVOS E VÍTIMAS (II - deportados desaparecidos )
Imagem 2. Relações simbólicas entre gémeos, albinos, prisioneiros e “improdutivos”
Que aconteceu a esses milhares de pessoas, apelidadas de improdutivas, delinquentes ou prostitutas?
No início, havia de facto alguns campos de trabalho onde podiam ser colocadas a fim de desempenhar trabalhos pesados, e ainda havia espaço nos campos de reeducação.
Em breve, todos esses lugares estavam sobrelotados e o estado não conseguia organizar novos, pelo que as pessoas eram simplesmente deixadas longe das suas zonas de residência. Primeiro, em aldeias; depois (como aconteceu a um ícone do bairro do Xipamanine, um homem que regressou do Niassa caminhando milhares de quilómetros), eram largadas no meio do mato, numa província onde os leões são muito comuns.
A maioria dos deportados nunca chegou a receber transporte de volta para as suas cidades. Assim, a menos que eles ou as suas famílias tenham conseguido transporte pelos seus próprios meios, ou morreram ou continuam a viver nas regiões onde o estado os deixou. Para as suas famílias e vizinhos, eles desapareceram.
Curiosamente, nem os cidadãos comuns nem os simpatizantes internacionais que observavam as transformações em Moçambique (Urdang - And Still They Dance) apontaram as óbvias semelhanças entre as primeiras justificações colonialistas para o trabalho forçado (Ennes - Moçambique, Relatório Apresentado ao Governo) e o discurso acerca do trabalho que legitimava a Operação Produção, ou sequer o paralelo entre ela e a Lei do Passe/política dos Bantustões do apartheid sul-africano.
Na década de 1980s, aquilo que apontavam era o enorme número de pessoas que eram tratadas injustamente, mesmo de acordo com os princípios da Operação Produção. Só mais tarde esses princípios começaram a ser vistos popularmente como um abuso em si próprios, mas sem suscitarem analogias históricas locais – embora antigos responsáveis com quem tive oportunidade de falar acerca do assunto procurem justificar a Operação através de uma outra analogia histórica, designadamente as restrições à circulação interna e ao estabelecimento nas cidades que vigoravam na USSR.
Mesmo assim, os deportados são vistos, em termos gerais e na grande maioria dos casos individuais, como pessoas normais que simplesmente se tornaram vítimas de uma utilização abusiva do poder político. A Operação Produção acabou por perdurar como um acontecimento colectivamente traumático, que apenas os subsequentes horrores da guerra civil permitiram minimizar na memória das pessoas.
Ao perguntar a pessoas de diferentes bairros de Maputo o que aconteceu a esses deportados que nunca regressaram, nunca recebi uma resposta que mencionasse água, solo molhado ou crocodilos.
Em mais de 30 entrevistas e conversas informais acerca deste assunto, encontrei também um leid motiv comum, mas que é muito diferente daquele que referi no caso dos prisioneiros políticos desaparecidos: de acordo com essas histórias, ou essas pessoas continuaram a viver no Niassa; ou foram comidas por leões; ou morreram por qualquer outra razão e foram sepultadas de acordo com os costumes vigentes nessa província.
Estas pessoas do sul de Moçambique não conhecem realmente as características dos tais costumes funerários do Niassa que mencionam, mas partem do princípio que se tratará de enterros em solo seco. Um tal fim é, não obstante, visto como lamentável, pois supõem que o ritual seja diferente do seu e, portanto, estranho para os deportados falecidos, e porque os espíritos dos defuntos ficarão sozinhos no Niassa, sem a companhia dos seus parentes vivos e mortos.
Devo sublinhar que esta narrativa recorrente acerca do destino dado aos cadáveres é muito significativa porque, conforme Feliciano (Antropologia Económica dos Thonga do Sul de Moçambique) já salientou, quando um forasteiro morre deverá ser sepultado em solo húmido, “à cautela”, pois para a população local é fácil ver que o defunto não é um albino, mas nunca se pode ter a certeza de que ele/ela não é um gémeo, ou a mãe de alguém que seca a terra.
Partir do princípio de que as pessoas do Niassa não tomaram essa habitual precaução para com forasteiros que, afinal, estavam numa posição estigmatizante é, portanto, uma forte declaração (embora talvez não consciente) de que eles não a deveriam tomar. É, de facto, uma reivindicação de que os deportados não merecem ser enterrados como gémeos ameaçadores.
Também os relatos públicos do homem do Xipamanine que há pouco mencionei eram duplamente significativos, pois constituíam testemunhos da sua experiência pessoal e, ao mesmo tempo, reconfigurações dessa experiência à luz das expectativas e consensos da audiência.
Quando ele atravessou o país a pé, teve também que passar rios a vau, de forma a evitar postos de controlo nas pontes. Essas travessias e o concomitante perigo de crocodilos eram momentos impressionantes das suas narrações, mas nunca atribuía aos crocodilos a morte de outros deportados, embora mencionasse com frequência a sua morte por parte de leões e o terror que a todos suscitava a possibilidade de tal lhes acontecer.
Verificamos então que, em completa oposição aos prisioneiros políticos desaparecidos (ver imagem 2), os deportados desaparecidos na Operação Produção – que também foram presos e mandados para longe pelo estado, sob condições e acusações estigmatizantes – são sistematicamente representados como tendo sido enterrados em solo seco ou comidos por predadores terrestres, mesmo se é provável que alguns deles se tenham na realidade afogado, ou sido comidos por crocodilos.
Num contexto retórico e conceptual em que os prisioneiros políticos são equiparados a gémeos/albinos, os deportados desaparecidos são, assim, veementemente apresentados como não-gémeos/albinos.
Uma das consequências deste facto é que a imagem projectada sobre os prisioneiros políticos desaparecidos não pode ser apenas uma afirmação do seu desaparecimento.
Uma segunda consequência é que se torna necessário clarificar os sentidos atribuídos às diferenças entre estes dois grupos de pessoas desaparecidas, para que possamos compreender o sentido dessa imagem.
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