Quando estava na tropa (e Loureiro dos Santos também), os generais fizeram correr o boato de que não iriam receber o salário no mês seguinte.
Grande comoção nos gabinetes e corredores ministeriais e, da noite para o dia, o sistema remuneratório foi alterado, com aumentos cuja percentagem crescia brutalmente à medida que subia o posto a que se aplicavam.
Poucos anos depois, começou a falar-se abertamente do direito de organização sindical para os militares - a tal questão que Miguel Sousa Tavares, com a sua sapiência generalista acerca dos lugares-comuns de mesa de café, veio a considerar "coisa terceiro-mundista" na televisão.
As escandalizadas reacções contra a possibilidade de sindicatos para militares basearam-se em dois aspectos:
Por um lado, num artigo inconstitucional da legislação, elaborado para fazer os militares "regressarem aos quarteis", passado o PREC.
Por outro, de forma ideologicamente mais elaborada, apontavam-se especificidades éticas de uma instituição baseada numa cadeia de comando, em que era responsabilidade dos superiores hierárquicos compreenderem, canalizarem e defenderem os interesses dos subordinados.
(Comparado com essas linhas de discurso, o estafado argumento de que a representação sindical poria em causa a disciplina e a eficácia na execução das ordens já fazia figura de parente pobre, pela sua evidente falácia face à realidade observável nos sítios onde essa representação existia.)
É claro que essa ideia dos generais como melhores defensores dos seus homens (extensiva aos oficiais e aos sargentos, relativamente a quem esteja "abaixo" de cada um deles), só parece evidente quando olhada a partir de cima.
As preocupações e interesses socio-profissionais de um general não são os de um major, os de um oficial não são os de um sargento, e os de nenhuma dessa gente são os de uma praça - pelo contrário, são com muita frequência contraditórios ou mesmo opostos. Por muita retórica exótica que se mobilize, nenhum empregado considerará que o gestor da empresa é a melhor pessoa para representar os seus interesses perante o dono. E, sempre que se fala em nome de alguém, para "lhe dar voz", está a retirar-se a esse alguém a própria voz, o espaço para falar em nome próprio.
Mas essa visão paternalista da instituição militar e da cadeia de comando juntou-se à experiência de eficácia da ameaça velada, quando proferida por pessoas com estrelas nos ombros.
O general na reserva Loureiro dos Santos, provavelmente a mais respeitada figura pensante das forças armadas, veio "avisar" que, perante a degradação das condições socio-profissionais dos militares, a "rapaziada mais nova", com mais sangue na guelra e menos experiência, era bem capaz de se meter em aventuras armadas - embora esclareça que «Penso que está fora de questão qualquer coisa organizada, mas [podem surgir] actos um pouco irreflectidos que normalmente as pessoas mais novas são levadas a praticar».
Isto, num quadro em que os actuais Chefes de Estado-Maior se remetem ao silêncio e em que dois ex-Chefes de Estado-Maior (do Exército e da Armada) «partilharam as preocupações manifestadas (...) sobre sinais de descontentamento preocupantes dentro das Forças Armadas».
Portanto, a coisa está má, os paizinhos na reserva assumem o seu ideológico papel de defensores dos seus rebentos (embora Loureiro dos Santos, modestamente, tenha a extraordinária ideia de apontar o Governo como «representante sindical da instituição militar» - assim como o Belmiro de Azevedo é delegado sindical dos trabalhadores do Continente), e fazem-no através dos meios a que se habituaram: as manifestações de desagrado através de ameaças evidentes mas não assumidas de forma explícita.
De caminho, procura legitimar-se a anacrónica "representação por parte dos superiores" e acha-se normal que se negue aos militares o direito de consulta e negociação sobre questões socio-profissionais, mas não a possibilidade de agitarem espantalhos de pronunciamentos armados.
Lições preliminares desta história:
- Não bastam a inteligência, o prestígio e o conhecimento de causa para se evitar ficar enredado em atitudes e raciocínios anacrónicos e socialmente inaceitáveis.
- A recusa de possibilitar aos militares mecanismos adequados de representação socio-profissional tem graves efeitos preversos, mesmo se a ameaça velada de Loureiro dos Santos corresponde mais a uma performance simbólica do que a um perigo real.
- Urge colocar na ordem do dia o direito dos militares a representação sindical, sem dramas ou histerias, como aliás devia há muito ter sido feito.
adenda a 31/10: O CEMGFA pronunciou-se acerca dos problemas existentes, desdramatizando. Não fez qualquer reparo ao tom das intervenções de LS.
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