terça-feira, 7 de abril de 2009

Alarmistas e papões

O aspecto mais terrível do trágico sismo ocorrido em Itália é algo que poderá acontecer em qualquer outro país, desde que esse país disponha dos meios técnicos necessários e de pessoas que saibam interpretar os seus dados:

Havia fortes indicações de que um grande sismo iria acontecer, mas as autoridades mandaram calar o cientista que deu o alarme, por estar a ser (precisamente) alarmista e a causar o pânico entre a população.

O "filme" é de facto tão comum que até já deu origem a um género cinematográfico hollywoodesco, que mete desde tubarões de 10 metros até vulcões e centrais nucleares.
Ou seja, é popularmente credível e esperado (bem mais que um tubarão com o tamanho do velho Jaws) que existam coca-bichinhos com capacidade para detectar grandes perigos iminentes, sejam eles animais, naturais ou tecnológicos, e que as autoridades que deveriam zelar pelo bem de todos os mandem calar, transformando a ameaça em catástrofe devido à falta de informação e preparação.

É comum, nesses filmes, a reacção oficial vir a reboque de interesses económicos mesquinhos ou imediatistas.
Mas não é forçoso que assim seja, nem nos guiões cinematográficos nem na realidade.
A habitual preocupação que o possível pânico público costuma suscitar às instâncias de poder basta para motivar essa reacção de negação e silenciamento.
Porque quem diz 'pânico' diz 'caos', diz incontrolabilidade das massas humanas que se é suposto ter sob controlo.

Talvez esteja aí a chave para compreender um paradoxo dos tempos actuais:

Um pouco por todo o mundo, as autoridades e os interesses económicos escudam-se na incerteza que rodeia a (im)previsibilidade das ameaças naturais e técnicas para, a bem da serenidade pública, desacreditarem ou silenciarem chamadas de atenção para elas; ao mesmo tempo, instigam o pânico em relação a outras ameaças, também elas imprevisíveis, mas mais directamente humanas.

O problema não começou, sequer, com o despertar dos USA para o terrorismo como algo que lhes pode bater à porta.

Já bem antes disso, a leitura da realidade que estava na moda era a tal de "civilização do risco", assustando-nos com um mundo mais inseguro e perigoso do que nunca, mas alegrando-nos por haver quem tenha os instrumentos racionais e técnicos para domar tanta ameaça.

Curiosamente, pouca gente ouvi questionar porque deveríamos nós sentir que vivemos no mais arriscado dos mundos, tendo em conta que (apesar da polulação de novos riscos tecnológicos ou tecnologicamente induzidos) vivemos bastante mais tempo, com muito maior capacidade de responder a doenças e muito menos hipóteses de morrermos à fome, ou de sermos vítimas de violência indiscriminada ou acidentes letais, do que os nossos bisavós ou os nossos contemporâneos de outras paragens.

Talvez esse quase inexistente questionamento tenha a ver com a importância que para nós assume a crença de que podemos dominar o mundo.
Talvez seja por esse susto com os riscos ser politicamente valioso, já que reforça a nossa dependência dos especialistas e dos governantes, e os reforça a eles através da chancela de cientificidade que passa a estar colada às suas protectoras acções e decisões. Talvez...

Mas, num quadro como este, o especialista é bem-vindo se traz a ordem à (bem real) incerteza e ao caos - que, se não é bem real, se afirma como a realidade que existiria caso não existissem também, por um lado, o especialista com meios técnicos para dizer como controlá-lo e, por outro, o reconfortante governante que dá o braço ao especialista para nos proteger.

Se pelo contrário (e com base na sua expertise) o tal de especialista decide ser mensageiro da desgraça iminente, não traz ao poder nem controlo nem legitimidade.
Traz a desagradável evidência da falta de controlo técnico e político sobre a incerteza, a par da ameaça de falta de controlo sobre a população.
Tenha ou não razão (coisa que a incerteza do que está em causa só deixará saber a posteriori) é um alarmista. É alguém que joga com as mesmas regras, mas que só traz, no imediato, desvantagens para os principais jogadores, à luz do seu objectivo de jogo.
É claro que poderia contribuir para reforçar a posição deles (e, já agora, para salvar muitas vidas e bens), ao permitir-lhes demonstrarem uma grande capacidade de gestão da desgraça incerta. Mas ver isso, a partir de uma posição de poder, pode implicar para muitos uma racionalidade e capacidade de análise que seriam sobrehumanas.

Temos, por outro lado, os papões.

E esse mais recente enfatizar das ameaças humanas corporizadas no terrorista estranho (mas que pode estar no meio de nós) é, temo bem, um jogo com objectivos bem mais prosaicos e conciencializados.
É, afinal, espalhar o medo de uma ameaça invisível e de que só poderemos ser protegidos a partir de um controlo centralizado mas geral para, num muito clássico processo de hegemonia, aceitarmos ser controlados muito para além do que aceitaríamos, a bem da nossa segurança.
E pelos vistos resulta.

Talvez, então, o tal paradoxo não seja assim tão paradoxal.
Talvez a instigação do medo tenha, afinal, uma mesma razão última e um mesmo limite: o reforço e legitimação do poder; e o monopólio de estimular e controlar o medo - que não pode transformar-se, pelo contrário, num instrumento de perda de controlo sobre os outros.

*****

Entretanto, Silvio Berlusconi pede aos sobreviventes que encarem a situação como «um fim-de-semana no parque de campismo».

Qual Alberto João, qual quê... Este gajo não existe!

6 comentários:

Carlos Portugal disse...

A propósito, só queria deixar uma nota: a famosa cheia do Tejo de 1967 que vitimou mais de 500 pessoas, sobretudo em zonas
que não costumavam ser atingidas (concelhos de Odivelas, Loures, Vila Franca de Xira e Alenquer) foi prevista pelos serviços de meteorologia, que preveniram a RTP na véspera para alertarem as populações. No entanto, esse alerta nunca foi difundido porque o Presidente da RTP entendeu que esse tipo de notícias causava perturbação no povo da Nação.
O resultado foi o que se viu: a segunda maior catástrofe que já aconteceu em Portugal, sendo a primeira o terramoto de 1755.

(Paulo Granjo) disse...

É bem verdade.
Infelizmente, não temos que recuar ao "Estado Novo" e às suas peculiares figuras para encontrar tais actuações.

Anónimo disse...

Grande artigo! É sempre agradável dar conta que existem pressupostos teóricos generalistas que podem ser adequados a uma realidade particular.(sem que esta deixe de ser específica, claro!)
Análise aguçada, como sempre!
Vera Azevedo

(Paulo Granjo) disse...

Obrigado, Vera. Mas foi apenas uma coisa escrita de uma penada, ao fim da noite.
Embora, depois de relido devido ao seu comentário, não só encontrei uma gralha ("conciencializado"), como a impressão de que a coisa talvez mereça ser aprofundada.

Não a sabia visita da casa. Fico contente por o ser.

Carmo disse...

Venha esse aprofundamento!
E voltando à mediatização do risco, a legitimação do poder faz-se também através da encenação do seu aparente controlo.
O Berlusconi inicialmente recusou a ajuda externa para não dar parte de fraco, mas depois lá deve ter feito contas à vida, ao poder, e achou que um dinheirinho para reerguer o património arquitectónico até dava jeito... já que a calamidade humana, essa estava controlada: os vivos no campismo, os mortos no funeral de Estado. Como ironizava hoje um italiano que não foi à missa: Rezam os papas, os bispos, os arcebipos, as excelências, as eminências, mas Jesus Cristo lá nos enviou o terramoto...
Outra notícia do dia é que a criminalidade grupal subiu e a juvenil desceu, mas como a segunda pode estar integrada na primeira, deve poder concluir-se que a criminalidade no geral subiu... Cá temos o papão alarmista da criminalidade que vai legitimar a violência das autoridades...

(Paulo Granjo) disse...

Boas dicas, Carmo.