segunda-feira, 2 de novembro de 2009

O Rosa e o Laranja

(e etc.)

Nos tempos de Stendhal, jovens provincianos que fossem ambiciosos, chico-espertos e fura-vidas como o protagonista de O Vermelho e o Negro tinham dois caminhos para, espezinhando aqui, traindo ali e sacaneando acolá, tentarem chegar àquilo que considerassem "subir na vida": a carreira militar e a carreira eclesiástica.

Nestes sombrios tempos de classes em vez de ordens, em que a tropa voltou a ter lepra e até a Opus Dei se arma em selectiva, o caminho escolhido pelos modernos gémeos do Julien Sorel é só um, embora com duas vias paralelas (que não obstante, veja-se o nosso primeiro, se podem cruzar antes do infinito): o Rosa e o Laranja.

Se o aspirante a grande homem teve a ventura de nascer periférico, integra desde bem cedo uma juventude partidária governante (mudando se naquela não estiver a dar) e vai treinando as suas potencialidades espezinhadoras, traidoras e sacaneadoras até chegar, com reduzida concorrência, ao pináculo distrital da coisa.
Jovem com horizontes mais largos do que o enriquecimento de clocher, numa Câmara assim como assim já ocupada por algum tubarão de aquário mas com dentes afiados, não faz concorrência a essa fauna. Antes lhe demonstra a sua modéstia e utilidade, acabando por entrar para o parlamento, num dos últimos lugares elegíveis lá do sítio.

Nova liga, novo jogo.
E lá busca este Heroi do Nosso Tempo gémeos cúmplices, contra inevitáveis gémeos inimigos, e algum patrono por conta de quem vá mordendo umas canelas (ou, de preferência, barrigas-da-perna) e calcando alguns cadáveres.
Se o patrono é bem escolhido, há boas hipóteses de que a coisa esteja lançada. E nem foi preciso perder tempo e concentração com essas mariquices dos estudos - que, para os mais formalistas, poderão sempre vir mais tarde a ser feitos, por fax, que dá muito mais jeito.

Entrementes, o capital de influências vai-se alargando e, se não for trucidado antes disso pelos seus semelhantes, a alternância democrática lá lhe abrirá um lugarzinho no governo - e, com um bocado de sorte e dentadas certeiras, sem ter que ser assessor antes de secretário de estado, ou secretário de estado antes de ministro.

A chatice é que essa mesma alternância (ou alguma calinada mais escandalosa) de lá o tirarão e que, normalmente, as capacidades que lá o meteram não chegam para lá voltar.

É galo, mas é a vida.
Resta capitalizar todo esse percurso e conhecimentos (pessoais).
Para os mais megalómanos, à frente de empresas mirambolantes ou com o lucro assegurado por favorecimentos estatais.
Para os mais modestos ou queimados, uns discretos lugares de gestores públicos, assegurados por cavalheirescos adversários ou por solidários correlegionários - que, as mais das vezes, se tornaram difíceis de diferenciar.

Mas há sempre a possibilidade de ter mais olhos que barriga, ou de não ter perdido os hábitos mixurucas dos velhos tempos de ascensão e ribalta.

E lá acaba o pobre Sorel da Merdaleja, apesar de todas as tentativas de adversários-e-correlegionários para olharem noutra direcção, por deixar apodrecer em público a galhinha dos ovos de ouro, ou por ser gravado pela bófia a pedir subornos para mexer uns cordelinhos.



E será que não há por aí nenhum Stendhal disponível, para fazer deste O Rosa e o Laranja um grande romance para as gerações vindouras?

5 comentários:

analima disse...

Gostei muito do texto. Este "O Rosa e o Laranja" transformar-se-ia rapidamente, com toda a certeza, num clássico de todos os tempos. Já estou a ver as edições de luxo, encadernadas com gravações “a resíduos” nas lombadas.

(Paulo Granjo) disse...

Escreva-o, escreva-o!

analima disse...

Longe de mim candidatar-me a esta tarefa hercúlea. Não teria capacidade para descobrir e acompanhar as peripécias do herói desta história.

(Paulo Granjo) disse...

E algum de nós, comum dos mortais, tem?
A inventividade destas personagens é, de facto extraordinária - mesmo se o guião geral é recorrente.

analima disse...

Tem razão. E a verdade é que o rosa e o laranja têm estado na moda mas tenho a certeza que, se introduzíssemos outras cores no título, o "guião geral" se manteria.