terça-feira, 11 de maio de 2010

Pecados e Crimes


Enquanto (segundo me vieram jocosamente informar) o Papa se dirige, por entre um arraial de segurança, para o Terreiro do Paço, parei o trabalho que estava a fazer, ao lembrar-me de uma leitura na revista Pública deste domingo.

Nela, eram apresentadas pitorescas informações acerca das alegres debochices de diversos Papas, desde o século X ao dealbar do século XVI.

Para além de ir sendo implícita e explicitamente explorado o contraste entre tamanha rebaldaria e a situação actual, o autor da recolha - um «historiador dos Papas e dos cristãos» de aspecto very british mas que se chama Laboa Gallego - acaba por avançar com um conjunto de frases que permitem perceber porque é que este artigo foi publicado nesta data:

«Antigamente, as pessoas aceitavam que a Igreja fosse, ao mesmo tempo, santa e pecadora. (...) Nós, pelo contrário, adoptámos uma postura boa na teoria, mas impraticável: víamos os sacerdotes todos como santos. (...) Mas isso não é verdade. Somos todos pecadores! (...) Depois do que passámos, vamos passar a ser muito mais humildes. (...) Temos que aceitar, não digo com tranquilidade, mas sim com humildade, as debilidades dos cristãos, dos clérigos e da Igreja.»

É, de facto, neste plano que o Vaticano e várias hierarquias da Igreja católica têm tentado colocar a questão, tanto da pedofilia quanto do seu longo e sistemático encobrimento.

E, curiosamente, parece que tem resultado - pelo menos entre os media e os opinadores de serviço nacionais.
Se não quanto aos próprios actos de pedofilia, pelo menos quanto ao seu encobrimento - reduzido a uma questão moral e de inversão de prioridades de valores, entre o sofrimento e reparação das vítimas e a proteção da imagem da instituição.

A pedofilia e o seu encobrimento não deixam de ser, certamente, questões morais, de valores e até (para quem partilhe essa noção religiosa) de pecado.

Mas, entretanto, a pedofilia e a violação de menores são também, nos países onde ocorreram no seio de instituições católicas, crimes.

E, na ordem jurídica desses mesmos países e de quase todos os restantes, encobrir um crime e conspirar para encobrir um crime são, também eles, crimes.

A Igreja Católica e os seus chefes têm toda a legitimidade para discutir moralidade e pecado, relativamente aos actos criminosos dos seus sacerdotes e ao seu encobrimento desses crimes.
Mas não têm, nem eles nem os poderes públicos seculares, legitimidade para assobiar para o lado e pretender esquecer que é de crimes que se trata.

Ninguém no seu perfeito juízo acredita, hoje, que toda a longa série de encobrimentos de crimes sexuais cometidos por sacerdotes sobre crianças à sua guarda - encobrimentos que chegaram, como não podia deixar de ser, à Congregação Para a Doutrina da Fé e aí foram incentivados - tivesse passado ao lado do conhecimento e concordância do poderoso senhor que então comandava essa Congregação e que agora desfila num carro branco e blindado, Avenida abaixo.

Ninguém no seu perfeito juízo acredita, repito, que aquele então Cardeal não fosse, afinal, o mesmo homem que sistematicamente usou com mão de ferro as suas prerrogativas de comandante da mais poderosa e central instituição ideológica da sua Igreja, mas um pobre banana a quem estas coisas passavam ao lado e a quem o seu próprio braço direito (de então e de agora) escondia instruções criminosas, dadas em nome da instituição que dirigia.

O cargo de líder de uma religião com implantação quase universal merece, necessariamente, todo o respeito institucional que essa posição implica.

Mas seria bom (não! imprescindível.) que, para lá da questão das promiscuidades entre Igreja e Estado a que temos assistido e assistiremos nos próximos dias, as autoridades portuguesas tivessem em mente um dado que não podem ignorar:

Com toda a probabilidade, o senhor que desce a Avenida de papamóvel é, para além de um Chefe de Estado e de um líder religioso, um criminoso.

E que o respeito pelas crenças religiosas, próprias ou alheias, não nos faça tentar ocultar esse facto, de nós próprios e dos nossos concidadãos.


Até por respeito por essas crenças.

1 comentário:

Ricardo Monteiro disse...

O país pára quando tem de acelerar. Os nórdicos - de índole Protestante, cultos, secularizados - devem rir à gargalhada do Portugalinho enfezado que põe sobre a mesa a melhor prata da casa; serviçais de Sua Santidade. O mesmo que até à data não fez mais que despromover o diálogo inter-religioso e consolidar os sectores mais conservadores da Igreja - a carta de Hans kung veio mostrar isso, finalmente. Khron, esse então, deve bater palmas desde o seu quartinho alugado em Bruxelas; ele, e os outros discípulos de Lefebvre.
Há algo de profundamente errado, até de kafkiano, em tudo isto. Talvez o eco do riso macabro que paira sobre nós...