Fui hoje almoçar a uma conhecida esplanada de Maputo, que parece concebida para fazer com que os sul-africanos de origem europeia se sintam em casa.
Excepcionalmente, para um domingo de verão, não havia muitos representantes dessa digna e autoproclamada tribo africana. Em compensação, na mesa ao lado terminavam a sua refeição 3 italianos e 2 franceses.
Chegada a (sua ) hora do whisky e da cigarrilha, começaram a discutir com alguma gulodice, primeiro nas suas línguas respectivas e depois em inglês, all together, a quantidade de fundos que as suas conhecidas e respeitadas ONGs iriam conseguir angariar, «para depois das águas baixarem».
Que fique claro: aqueles homens não estavam a discutir (ao contrário do que noutras vezes ouvi abertamente a outra nacionalidade, acerca de outros assuntos) quanto dinheiro iriam conseguir meter no próprio bolso. Quanto a isso, suponho, bastar-lhes-ão os salários hiper-inflaccionados e o nível de vida que nunca poderiam ter nos seus países respectivos. A questão era dinheiro para projectos dirigidos pelas suas organizações.
A certa altura, um mais novato ou ingénuo disse algo que todos estavam carecas de saber e de ter em conta: «Depende muito da forma como o problema for apresentado nos media europeus».
No sentido original da palavra (grego e dramatúrgico), há uma tragédia com as calamidades, talvez também em muitos outros sítios, mas certamente aqui. A sua origem está no facto de, tirando as vítimas directas, quase toda agente beneficiar com elas.
O governo ganha mais fundos internacionais e mais tolerância para com o incumprimento de compromissos ou metas assumidas (tem apenas que gerir com cuidado a intervenção de ONGs e organizações internacionais, ou depois é difícil livrar-se da sua presença no terreno).
A todos os níveis da administração, há quem ganhe com a abundância de meios financeiros e materiais ali à mão de semear, em alturas de confusão que justificam todas as discrepâncias entre o recebido e o utilizado no terreno.
Nos bairros populares, ainda hoje famílias pobres mas com alguma capacidade de pequeno investimento vivem da revenda à peça de "fardos das calamidades" oferecidos em solidariedade para as vítimas das cheias de 2000 e seguintes, mais tarde vendidos em leilões oficiais ou por quem então os desviou.
Os seus ainda mais pobres clientes têm com isso acesso a peças básicas de vestuário a preços comportáveis.
As ONGs reforçam os seus meios, conseguem sustentar e justificar as suas pesadas e caríssimas estruturas (caras não apenas com estrangeiros; para que não roube, paga-se a um contabilista local um salário líquido de 3.000 dólares, num país em que o salário mínimo é de uns 65), podem apresentar relatórios quantitativamente impressionantes e capazes de escamotear a ausência de resultados ou efeitos preversos por que, na maioria dos casos, se costuma pautar a sua acção corrente - e, afinal, legitimar a sua existência e custos.
Mas, para isso, uma boa calamidade é, como desnecessariamente salientava o novato da mesa ao lado, uma calamidade grande e descontrolada.
Pergunto-me se será por isso, ou por mera avidez mediática pelo sangue, que as primeiras reportagens internacionais foram factualmente erradas e, aparentemente, tão exageradas.
Pergunto-me se será por isso, ou por previdência em relação ao possível evoluir da situação, que, com uma previsão inicial (e aparentemente pessimista) de 90.000 vítimas, chegou ao porto da Beira comida para 250.000 pessoas.
Pergunto-me se será por isso que os números de evacuados flutuam tanto e que, somando os números de todos os campos de reassentamento mencionados nos media, se fica tão longe dos 63.000 oficiais.
Pergunto-me se será por isso (e pelo parágrafo anterior) que se fazem grandes parangonas com a suposta instigação dos régulos (assim, no generalizado) ao abandono dos campos de reassentamento e regresso a zonas alagadas, quando é apenas mencionado um caso, numericamente irrelevante.
Neste quadro, também, espanta-me que um vice-director do INGC responda aos media que os meios disponíveis ainda são suficientes, quando o seu governo acabara de conseguir, de estados estrangeiros, que o orçamento de combate a estas cheias venha a subir de 3,2 para 32 milhões de dólares.
Honestidade? Ingenuidade política da parte de alguém que raciocine essencialmente como técnico?
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