Antes de mais, descansem que estamos bem!
Aproveitámos este fim-de-semana alargado (não pelo Carnaval, mas pelo Dia do Herói Moçambicano) para dar um salto à África do Sul, em cumprimento das exigências do peculiar Visto que nos obriga a sair do país de tanto em tanto tempo.
Terça-feira, lá regressou a minha família num transfer do Kruger Park, junto com o respectivo condutor e 4 simpáticos turistas portugueses. Atravessámos a fronteira pelas 10h30m, mas nenhuma autoridade nos avisou de qualquer acontecimento anormal - como, por exemplo, os tumultos que desde as 7 da manhã estavam a virar Maputo do avesso.
E a verdade é que chegámos à portagem da Matola sem nada vermos de estranho senão uns polícias que, para os lados da Casa Branca, pareciam estar a chatear algum vendedor de pneus que não pagara "refresco".
Mas a portagem estava fechada. Sobre a cidade, viam-se várias colunas de fumo. Pensámos primeiro num incêndio, embora fosse estranho que estivesse a ocorrer ao mesmo tempo em zonas tão afastadas. Ficámos a saber o que se passava quando telefonei para a senhora que nos ficara com a cadela, a avisar que a iríamos buscar mais tarde do que o previsto.
- Ai, doutor! Nem pense em vir! Estão a fazer greve por causa do aumento dos "chapas" e não deixam os carros passar, na cidade toda. Aqui, já queimaram carros e no Alto Maé um rapaz levou um tiro e não se sabe se vai conseguir viver.
Com o "garrafão" da portagem cada vez mais cheio, lá convencemos o condutor a recuar para a estação de serviço mais próxima. Volta para trás, regressa para a frente, e a zona continuava a parecer calma. Também o posto de gasolina parecia calmo, pelo menos até os 3 seguranças privados que lá estavam evacuarem precipitadamente o dinheiro da caixa...
Por sugestão da Marta, tinha entretanto tentado telefonar, sem sucesso, para uns amigos que moram ali perto, num condomínio mais ou menos seguro. Quando finalmente consegui resposta e declaração de boas vindas, o pessoal concordou em procurar lá abrigo.
Foi uma decisão acertada. Uma hora depois, essa mesma estação de serviço teve que ser ocupada pela tropa. E um amigo que preferiu ir em frente, através daquilo que na altura era uma estrada coalhada de carros imobilizados, chegou a casa com dois pneus rebentados à pedrada(!), embora tivesse passado as barricadas numa coluna rodeada de carros da polícia que disparavam gás lacrimogéneo, espingardas e kalashs indiscriminadamente para as bermas.
Nós regressámos, afinal, por onde já tinhamos passado duas vezes na última meia-hora, sem nada ver de ameaçador. Desta vez, um grupo de mulheres começou a gesticular na outra faixa e, antes de percebermos se aquilo era amigável, gozão ou hostil, vimos um pneu a arder no meio da nossa faixa e entrou-nos um pedregulho por um vidro dentro.
- Deitem-se! Ninguém está ferido?
(Ou, na primeira frase solta pela Marta, «Everybody lie down!»)
Sim, um dos portugueses estava ferido, mas não era grave. As pedras continuavam a cair mas, felizmente, apenas acertavam na chapa e o condutor manteve a velocidade e o controlo do carro, ao contornar os pneus em chamas.
Chegados ao cruzamento, lá conseguimos dar as voltas necessárias para chegar ao portão certo e convencer o segurança a deixar-nos entrar.
Já dentro, ficámos um bocado aparvalhados - eu, um pouco menos, pois tinha andado entretanto a servir de scout pedestre, por o primeiro portão do condomínio estar fechado. Cada um viu se estava mesmo bem, a minha filha chorou por fim um pouco, surpreendentemente pouco, e não estávamos à espera de mais do que a relativa segurança daqueles muros.
Era não contar com a hospitalidade e solidariedade da esposa do meu amigo (que por acaso tinha voado em trabalho nesse dia), que a todos abriu as portas de casa e todos tomou à sua guarda.
Pouco depois, acompanhando as notícias que davam conta da dimensão dos tumultos e ouvindo a confusão ali mesmo ao lado, já torneávamos eventuais preocupações com a precaridade da nossa segurança comentando (aqueles que os conheciam), os ruídos que nos chegavam.
- Olha: agora já não é gás lacrimogéneo e caçadeiras. São tiros de pistola.
- Ah! Agora são rajadas de kalashnikov!
Antes do jantar, já a nossa anfitriã (apoiada pela Marta, que durante umas horas falava inglês com os moçambicanos e português com os sul-africanos) tinha conseguido o impossível: camas para aquela gente toda, na sua casa e em mais duas. O que tinha começado como uma experiência assustadora e bem perigosa começou a parecer-se (apesar do perigo iminente que continuava a existir) com um contratempo relativamente pouco desconfortável.
Pela hora de jantar, os restantes telejornais trataram extensivamente o que se estava a passar. A estatal TVM gastou uns 90% do tempo a falar das ultrapassadas cheias do Zambeze.
A meio da noite, soubémos que as novas tarifas de transporte tinham sido suspensas.
Quarta-feira, com os tumultos também suspensos, voltámos a casa, fazendo slalong entre os restos de pneus, blocos de cimento arrancados sabe-se lá de onde e bocados de árvores que continuavam no meio das ruas. Em frente ao mercado de Malanga, as vendedoras varriam a estrada, para recriar um ar de normalidade que atraísse clientes.
Olhando para as pessoas nesse dia, nada parecia ter acontecido - a não ser por não se verem chapas em circulação e por, aqui e ali, alguns homens meio esfarrapados terem uma expressão de dignidade pouco habitual, os comerciantes paquistaneses tratarem de forma menos brusca os seus empregados e os condutores cumprirem as regras de trânsito.
Maputo era uma cidade bem mais simpática, nesse dia, do que costuma ser.
2 comentários:
Oh doutor não use o termo esposa!
Oh anónimo(a)... Já antes me chegaram rumores de que a palavra "esposa" anda mal vista, mas não me disseram porquê. Como estou sempre sedento de aprender, quer aproveitar para nos explicar?
Até agora, sempre me soou mais possessivo e assimétrico "a minha mulher", quando do outro lado se diz "o meu marido".
É claro que o caso muda de figura se se generalizar a expressão "o meu homem", que muitas vezes ouvi em contextos rurais portugueses e sempre me pareceu muito bonita.
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