O que aqui fica escrito deverá chocar a maioria dos leitores, pois habituámo-nos a pensar o acto de matar em situação de guerra segundo a lógica de vitimação do agressor que, afinal, serve de base à noção de stress pós-traumático de guerra (SPTG).
As conversas que fui mantendo com ex-soldados portugueses das «guerras coloniais» pintam, no entanto, um quadro bem diferente. Eles referem dificuldades de adaptação à “vida normal” e dominam a retórica de vitimação do SPTG mas, depois de algumas cervejas, não é dos pesadelos, do medo de morrer ou da repugnância moral de matar que falam quando mencionam o choque do regresso (embora tenham sentido tudo isso, pelo menos nalgum momento), mas do violento contraste entre a liberdade e poder sentidos na guerra e a subalternidade e insignificância sentidas na paz.
É uma história recorrente o jovem que sai de um lugar repressor e reprimido, dá consigo num sítio onde experimenta coisas novas e tem poder de vida e morte sobre outros seres humanos, regressando a um sítio onde tudo parece igual e é esperado que se submeta a qualquer patrãozito, polícia ou notável local. Figuras de autoridade que considera insignificantes, pois não experienciaram a sua abertura de horizontes nem o seu poder de infringir as mais graves interdições sociais, sendo louvado por isso e podendo decidir quando o fazer. Relações de submissão que, pelo esvaziamento da sua anterior legitimidade e pelo seu contraste com o poder antes sentido, são agressoras e suscitam reacções agressivas, «anti-sociais».
Esta sensação agressiva de se passar, abruptamente, de um ser poderoso e determinante para outro socialmente subalterno e irrelevante radica, afinal, num dado que tendemos a procurar esquecer: que matar sob aplauso público, por muito emocionalmente violento que possa ser para o indivíduo que o faz (antes, durante e/ou depois do acto), é uma situação de poder praticamente sem paralelo na vida de quase todos os indivíduos. E que, para muitos (atrever-me-ia a dizer que para quase todos), a percepção desse poder suscita prazer, mesmo que o próprio acto de matar o não faça.
A guerra é uma situação liminar e de excepção, mas também o linchamento o é.
E também no linchamento é assumido (particularmente pelos indivíduos que nele assumem papeis mais activos, mas em última instância por todos) o poder extremo de decidir da vida ou da morte e de executar essa decisão, sendo esse acto socialmente proibido, agora, caucionado de forma aparentemente unânime pela comunidade que, no momento, parece ser a única que importa: a que é abrangida pelo acontecimento.
Por seu lado, o orgulho no acto realizado, evidente nas descrições de pessoas que até podem apressadamente alegar que não participaram nele de forma directa, justifica que (pelo menos como hipótese) se conclua o círculo de similitudes: mais do que como um «mal necessário», o linchamento parece ser vivido como uma afirmação pela positiva, como um assumir de poder – não tanto sobre a vida do suposto criminoso, mas sobretudo sobre a vida de quem o mata e da comunidade que considera sua.
Assim, ao prazer do poder em abstracto junta-se (tal como na “adivinhação”, na “previsão” e na acção “mágica” ou “técnica” sobre o futuro e a incerteza) o prazer de superar a humilhação de se ser um joguete do acaso e de forças que nos transcendem.
Em certa medida, então, podemos dizer que o linchamento constitui uma extensão das vertentes agradáveis da experiência traumática de guerra. Mas com a agravante de a consciência daquilo que está em causa nesta situação de excepção em tempo de paz ser bem mais imediata para os que nela participam do que costuma ser para os membros de uma força beligerante.
Os paralelos entre os dois fenómenos e a recente experiência de guerra em Moçambique poderiam levar-nos a perguntar: será que nas áreas onde os linchamentos ocorrem existe uma elevada concentração de veteranos de guerra?
Essa eventual correlação poderia ser estudada, confirmada ou infirmada. Mas, para complicar as coisas, nem a sua provável existência chegaria para confirmar o argumento, nem a sua inexistência o infirmaria.
De facto, se tanto a guerra como o linchamento criam o excepcional poder de matar sob aprovação social, não temos que pressupor que a experiência de guerra predisponha ao linchamento ou lhe seja necessária – a dinâmica deste último é suficiente para criar efeitos semelhantes aos da morte guerreira.
Por outro lado, matar em situação de guerra não é o único referente para a sensação de poder transmitida pela morte sob aplauso público. Existe também em Moçambique uma reafirmada estética da morte e do castigo físico públicos, que será o objecto do próximo post.
As conversas que fui mantendo com ex-soldados portugueses das «guerras coloniais» pintam, no entanto, um quadro bem diferente. Eles referem dificuldades de adaptação à “vida normal” e dominam a retórica de vitimação do SPTG mas, depois de algumas cervejas, não é dos pesadelos, do medo de morrer ou da repugnância moral de matar que falam quando mencionam o choque do regresso (embora tenham sentido tudo isso, pelo menos nalgum momento), mas do violento contraste entre a liberdade e poder sentidos na guerra e a subalternidade e insignificância sentidas na paz.
É uma história recorrente o jovem que sai de um lugar repressor e reprimido, dá consigo num sítio onde experimenta coisas novas e tem poder de vida e morte sobre outros seres humanos, regressando a um sítio onde tudo parece igual e é esperado que se submeta a qualquer patrãozito, polícia ou notável local. Figuras de autoridade que considera insignificantes, pois não experienciaram a sua abertura de horizontes nem o seu poder de infringir as mais graves interdições sociais, sendo louvado por isso e podendo decidir quando o fazer. Relações de submissão que, pelo esvaziamento da sua anterior legitimidade e pelo seu contraste com o poder antes sentido, são agressoras e suscitam reacções agressivas, «anti-sociais».
Esta sensação agressiva de se passar, abruptamente, de um ser poderoso e determinante para outro socialmente subalterno e irrelevante radica, afinal, num dado que tendemos a procurar esquecer: que matar sob aplauso público, por muito emocionalmente violento que possa ser para o indivíduo que o faz (antes, durante e/ou depois do acto), é uma situação de poder praticamente sem paralelo na vida de quase todos os indivíduos. E que, para muitos (atrever-me-ia a dizer que para quase todos), a percepção desse poder suscita prazer, mesmo que o próprio acto de matar o não faça.
A guerra é uma situação liminar e de excepção, mas também o linchamento o é.
E também no linchamento é assumido (particularmente pelos indivíduos que nele assumem papeis mais activos, mas em última instância por todos) o poder extremo de decidir da vida ou da morte e de executar essa decisão, sendo esse acto socialmente proibido, agora, caucionado de forma aparentemente unânime pela comunidade que, no momento, parece ser a única que importa: a que é abrangida pelo acontecimento.
Por seu lado, o orgulho no acto realizado, evidente nas descrições de pessoas que até podem apressadamente alegar que não participaram nele de forma directa, justifica que (pelo menos como hipótese) se conclua o círculo de similitudes: mais do que como um «mal necessário», o linchamento parece ser vivido como uma afirmação pela positiva, como um assumir de poder – não tanto sobre a vida do suposto criminoso, mas sobretudo sobre a vida de quem o mata e da comunidade que considera sua.
Assim, ao prazer do poder em abstracto junta-se (tal como na “adivinhação”, na “previsão” e na acção “mágica” ou “técnica” sobre o futuro e a incerteza) o prazer de superar a humilhação de se ser um joguete do acaso e de forças que nos transcendem.
Em certa medida, então, podemos dizer que o linchamento constitui uma extensão das vertentes agradáveis da experiência traumática de guerra. Mas com a agravante de a consciência daquilo que está em causa nesta situação de excepção em tempo de paz ser bem mais imediata para os que nela participam do que costuma ser para os membros de uma força beligerante.
Os paralelos entre os dois fenómenos e a recente experiência de guerra em Moçambique poderiam levar-nos a perguntar: será que nas áreas onde os linchamentos ocorrem existe uma elevada concentração de veteranos de guerra?
Essa eventual correlação poderia ser estudada, confirmada ou infirmada. Mas, para complicar as coisas, nem a sua provável existência chegaria para confirmar o argumento, nem a sua inexistência o infirmaria.
De facto, se tanto a guerra como o linchamento criam o excepcional poder de matar sob aprovação social, não temos que pressupor que a experiência de guerra predisponha ao linchamento ou lhe seja necessária – a dinâmica deste último é suficiente para criar efeitos semelhantes aos da morte guerreira.
Por outro lado, matar em situação de guerra não é o único referente para a sensação de poder transmitida pela morte sob aplauso público. Existe também em Moçambique uma reafirmada estética da morte e do castigo físico públicos, que será o objecto do próximo post.
2 comentários:
Boa!
Bem-(re)vindo!
Glad you like it.
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