sexta-feira, 18 de abril de 2008

Poder, Morte e Linchamentos - intermezzo 3/4

No seminário que hoje ocorreu na UEM, o meu querido colega Alexandre Mate colocou aquela que será, parece-me, a pergunta fulcral quando olhamos para o actual surto de linchamentos peri-urbanos em Moçambique, que já vai em 28 casos consumados em 2008:

Nos anos posteriores à independência, quando um ladrão era detectado num bairro peri-urbano de Maputo, era perseguido, detido e espancado colectivamente. Isto era feito com intuitos claramente punitivos, mas sem qualquer intenção de matar; depois disso, a pessoa era entregue à polícia, sendo esta atitude considerada "tradicional".
Porquê e como é que se passou deste modelo de comportamento punitivo para o linchamento?

Na linha de raciocínio da minha comunicação no seminário (que aqui tenho vindo a afixar e cujo último post divulgarei em breve), sugiro duas pistas, talvez complementares, para procurarmos a resposta a esta pergunta essencial:

1. A dominação colonial, embora utilizasse extensivamente a punição corporal como pena contra actos considerados inaceitáveis e a aliasse à prisão, baniu as execuções capitais - excepto, claro, sob a forma de secreto homicídio de resistentes nacionalistas. Era esse o quadro de referências punitivas após a independência.
Os referentes militaristas (também eles ligados à história e luta do movimento de libertação nacional chegado ao poder) re-introduziram então a pena capital, incluindo sob a forma de fuzilamentos públicos - e a posterior guerra civil veio ainda reforçar isso, conforme indico no post anterior. As referências punitivas alteraram-se.

2. Os anos posteriores à independência foram marcados, sobretudo em meio urbano e peri-urbano, por um nível excepcional (e frequentemente abusivo e quase totalitário) de controle social, exercido a partir de consignas estatais/partidárias mas executado por estruturas políticas comunitárias. A isso aliava-se a sensação popular de que, concordasse-se ou não com cada uma das decisões do poder instituído, este se preocupava com a população e a ouvia.
Se é que os linchamentos correspondem, conforme sugiro, a uma afirmação e reivindicação de poder sobre a protecção e o futuro da comunidade, uma tal afirmação e reivindicação é socialmente pertinente no momento presente, mas não na altura.

Neste quadro, é claro que se pode sempre repetir que o linchamento, particularmente com pneu a arder, foi importado do Soweto, na África do Sul. Isso será factualmente correcto. Mas darmo-nos por satisfeitos com essa alegação é esquecer que só se importam (e, sobretudo, se espalham) as inovações culturais que façam sentido, face às condições sociais existentes. É necessário procurar para além das explicações que nada explicam.

Adenda a 21/4: com o linchamento de duas mulheres (caso muito raro, fora das zonas rurais) o número de linchamentos consumados este ano subiu para 30.

Adenda a 22/4: a contabilidade macabra aumentou hoje para 31.

Adenda a 29/4: 32...

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