domingo, 21 de setembro de 2008

Portugal moçambicaniza-se (III)

A FORÇA DA MUDANÇA

Perguntava-me um leitor anónimo, certamente moçambicano, se era verdade que o actual slogan do PS, em Portugal, era mesmo "A Força da Mudança".

É verdade e (tinha eu escrito na caixa de comentários, até ver que a coisa estava a ficar demasiado comprida) isso tem uma história. Uma história nem sempre clara quando é olhada a partir de África e que talvez mereça ser relembrada aqui.

Nos países da Europa onde a social-democracia tem uma acção muito antiga (o que não é o caso de Portugal, onde tão pouco acontece aquilo que direi a seguir), ela era marcada até há uns tempos por uma tradição de regulação estatal da economia, tendo em vista alguma equidade social, a par de uma posição de liberalidade societal em termos da mudança dos costumes.
Quase caricaturando, era como que o seu código genético e identitário, por contraposição a um outro grande partido normalmente existente nesses países, que era por sua vez defensor de um maior conservadorismo social e dos costumes e de uma economia liberal.

(Tudo isto é, claro, relativo, pois um conservador holandês está normalmente à esquerda de um socialista português em grande parte das matérias políticas relevantes para a vida das pessoas, da mesma forma que um republicano da Nova Inglaterra costuma estar à esquerda de um democrata do Texas.)

Há muito que a questão tinha deixado de ser, para a social-democracia europeia, a via de superação do capitalismo (reforma ou revolução), que tinha levado à cisão entre a 2ª e a 3ª Internacionais.
A questão, desde pouco depois disso, passou a ser a gestão mais justa e equitativa do capitalismo. Se quisermos, e passe a metáfora, um "capitalismo de rosto humano".
Era essa a sua tentativa de prática, o seu legado e a sua imagem.

No entanto, com a teorização da chamada "Terceira Via" (de que o inglês Tony Blair se tornou o governante mais evidente), os partidos social-democratas sofreram uma "mutação genética" que os ajudou a aproximarem-se do poder em tempos de maré conservadora e, por sua vez, deixou os conservadores com um problema de falta de espaço político para resolverem, e deixou os países respectivos sem grandes partidos de esquerda.
Basicamente, os "novos" partidos social-democratas mantiveram posições progressistas na área dos costumes e relações societais, mas adoptaram uma política económica que, em vários aspectos, é mais liberal do que os conservadores se atreveram a fazer e exigir, pondo inclusivamente em causa instituições e pressupostos que se tinham tornado marcas civilizacionais da Europa Ocidental - devido, entre outros, á luta e acção das gerações anteriores de sociais-democratas.

É claro que, quando as mudanças políticas são tão fortes e nessa direcção, não adianta escamoteá-las. Mesmo se não fossem (que eram) argumentos eleitorais para cativar essa figura fantasmagórica do "eleitorado de centro", seria sempre necessário enfatizá-las e transmiti-las como uma corajosa mudança da sociedade, para que ela não entre em colapso.
Afinal, onde existiu ou existe, o "estado social" começou a ser morto por conservadores, mas são "terceira-viistas" com label social-democrata que avançam com o seu enterro.

Portugal nunca foi governado segundo uma política social-democrata "à europeia", nem alguma vez teve um estado social.
E a própria retórica e prática terceira-viista chegou à governação quando não era eleitoralmente necessária para que o PS a ocupasse. Foi mais uma questão de ser a esquerda da moda, "maningue moderna", por parte de um dirigente sem cultura de esquerda (social-democrata ou outra), chegado ao leme de um partido que estava desesperado por voltar ao poder. Foi a aplicação de uma receita que tinha resultado eleitoralmente noutros lados, não fosse dar-se o caso de Santana Lopes conseguir ressuscitar durante a campanha eleitoral.

Mas, quando depois as coisas não correm por aí além, mais necessário se torna apresentar a mudança de orientação política (em vários aspectos, Cavaco Silva governou, no seu tempo, "à esquerda" do actual governo) como uma necessidade e desígnio nacional, que corajosamente é prosseguida, se necessário contra tudo e contra todos, por quem "tem tomates" para isso.
Daí, agora, "A Força da Mudança".

O anónimo moçambicano que suscitou este post ter-se-à apercebido de alguns paralelos engraçados com o seu país.
Mas a situação parece-me muito diferente.

Quando a Frelimo aplicou o slogan d'A Força da Mudança, em 2005, a sua passagem de partido marxista-leninista para executor de políticas ultra-liberais já tinha sido paulatinamente feita desde o fim da guerra civil, 13 anos antes, pelo anterior Presidente da República.
Não era essa curva a 180º que se tornava necessário justificar, mas as mais-valias que iriam advir da substituição do presidente por uma figura à partida difícil de "vender": um político cuja imagem popular estava centrada no seu cargo de Ministro do Interior durante uma das épocas mais repressivas da história pós-independência.

Não será por acaso que (numa altura em que a Renamo não parecia ter ainda entrado num processo de suicídio colectivo ordenado pelo chefe), a Mudança anunciada era muito mais pôr "ordem na tasca", através do «combate ao espírito do deixa-andar», do que a visão do partido como motor de uma "revolução permanente", ligada ao «combate à pobreza absoluta».
Não só a «força da mudança» vinha de um "homem de combate", como vinha de um "homem de tomates" que iria pôr na ordem os interesses instalados, no seu próprio partido, que mantinham o país na desgraça.
Ou seja, aquilo que podia fazer os eleitores terem medo de Guebuza, e por isso afastarem-se dele, foi muito habilmente transformado na prova de que ele era o homem providencial, para aquilo que o país necessitava naquele momento.

É claro que estas coisas não resultam sempre, nem para sempre.
Duvido que o slogan agora adoptado por Sócrates não seja visto como ridículo, e já há largos tempos não se fala em Moçambique do «combate ao espírito do deixa-andar».
Mas talvez nem seja necessário.
Afinal, tudo indica que quer o PS quer a Frelimo vão voltar a ganhar, basicamente, por "falta de comparência" credível dos adversários directos.
(Ao fim e ao cabo, mais um paralelo, para além do discurso subliminar acerca de "tomates".)

Mas lá que é plágio, é.
Às tantas, ainda os publicitários que "venderam" à Frelimo o slogan de 2005 vão acabar por apresentar uma facturinha ao nosso primeiro.

2 comentários:

Anónimo disse...

Puxa vida, agora a metropole vem ao ultramar copiar, faltava essa, preparai-vos de repente o PM do PS por ai toca a gritar que tendes de acabar com o deixa andar, burocratismo e a pobreza absoluta.

(Paulo Granjo) disse...

O burocratismo e o deixa-andar já fizeram parte do discurso e das iniciativas, embora com nomes mais tecnocratas e menos machelianos, como um tal de "Simplex".

A pobreza absoluta é que não, porque para alguma esquerda (e não apenas no PS) os pobres cheiram mal dos pés - para além de que, como cantava o Zeca Afonso, que também revolucionou a música portuguesa a partir da sua experiência moçambicana, «estamos na Europa civilizada».