domingo, 21 de setembro de 2008

Volun-turis-puta-que-pariu

Volta e meia, recebo um e-mail de uma menina desconhecida (a mim, calham-me meninas, mas já vi em Moçambique que isso não é obrigatório) que vai ter A experiência da sua vida.
Vai para um daqueles pontos de Moçambique especializados em intervenções de ONGs, fazer uns 2 meses de voluntariado e conhecer a desgraça, tutelada por uma instituição religiosa qualquer ou por uma daquelas organizações não lucrativas, excepto para quem está lá empregado em postos superiores.

Quando me contactam, é porque querem aproveitar a coisa para fazerem uma tese, normalmente de mestrado, acerca de um tema grandiloquente que por vezes não é relevante lá no sítio e para o qual não terão tempo de terreno (e terão excesso de enquadramento institucional) para o conseguirem abordar para além dos estereotipos estabelecidos.

Como até percebo que as moçoilas são bem intencionadas e até sei que 95% dos tais de católicos progressistas do marcelismo se descobriram como tal enquanto faziam inquéritos às condições nos bairros de barracas, sou sempre muito afável (as boas intenções tocam-me sempre, até ao momento em que começam a matar gente) e prestável.
Dou tantas dicas quanto possível e, se me falam de temas de mestrado, sugiro normalmente que usem como objecto de estudo a organização em que se vão integrar e as lógicas e dinâmicas do seu trabalho. Assim a modos que uma cena auto-reflexiva, estão a topar?
Mas, até hoje, sem sucesso.

Entretanto, também hoje, pela primeira vez comprei o semanário Sol, desde aquele nº1 que toda a gente comprou. A razão foi nobre: davam um DVD infantil que ficava por 2,5 Euros e trazia anexado um jornal à borla.
Vinha no pacote, também, uma revista de nome Gingko, assim tipo new-age-com-ar-de-ser-para-ricos que parece ter como público alvo os desgraçados como nós que queiram ser aspirantes a snobs e "possidónios" (julgo que ainda é esta a palavra utilizada pelos bimbos que já nasceram ricos).

A minha senhora folheou-a, engasgou-se, ficou azul à riscas e eu, depois de lhe dar uma palmadinha nas costas e um copo de água, fui ver o que é que estava na tão mortífera página.

Era então um artigo sobre "volunturismo", a forma de férias que se quer afirmar como in, já que (diz de caras no site simpaticamente fornecido, mas um pouco mais embrulhado na versão impressa), «ressorts de luxo e férias de papo para o ar estão fora de moda».

Mas o que é que havia aí para a gente se engasgar?
Pronto, está bem, esta da solidariedade se tornar uma «moda» de pessoal que se quer "bem" (e que a recusa em termos de impostos, saúde, educação ou dessa abusação do rendimento mínimo) é um bocado obscena.
Mas, que raio, até está bem no centro da tradição caritativa cristã. E eu, que andei 3 ou 4 anos a fazer de otário, dando cadeiras à borla na Universidade Eduardo Mondlane e grangeando com isso desrespeitos e inimizades, não tinha muito de que me rir.

Comecei então a ler o corpo do artigo, que começava com a história volunturística de uma menina cujo nome ocultarei para sua defesa futura, embora ela própria não o tenha feito.
E a primeira frase era: «Lembra-se de, em pequena, com cinco ou seis anos, brincar aos pobres.»

O seguimento até tinha piada, porque a cachopa andou a prestar uns serviços à conta de umas tais de Irmãs Escravas, nome que suscitava algumas expectativas de escandaleira sado-masoquista. Seguia-se a desilusão, pois é apenas uma cena de freiras cacimbadas.

Mas, voltando à vaca fria: A gente até se habitua a ver porcos a andar de bicicleta. Mas aquela primeira frase...
Brincar aos pobres? Vocês conhecem alguém que tenha «brincado aos pobres»?

Eh, pá! Façam lá as férias da moda.
Mas, de preferência, não se entusiasmem muito, para não deixarem as coisas pior do que as encontraram.

Voltem a brincar aos pobres, como aquela célebre Madre que não pôde abrir um hospital para sem-abrigos em Nova Iorque, porque se recusou a manter o obrigatório elevador do prédio, pouco consentâneo com a ética de sacrifício que se impunha a si, às suas seguidoras e aos doentes que lhes caíssem nas mãos.
Mas sejam um pouco mais discretas.
Curtam a parte de turismo e não gozem com as pessoas.

6 comentários:

samya disse...

Mas aqui é a ultima moda! Vão de turistas voluntarios na barracopolis mais fodida do fim do mundo, tiram um monte de fotos de meninos de barriga grande e pernas finas (porque se tem uma foto que todo mundo gosta é a foto da miséria) e depois voltam para ca, para nos contar o quanto foi importante as três semanas de curso de francês que deram para adolescentes semi analfabetos na propria lingua.
Um dia em classe tive ainda o prazer de escutar de uma italiana, recém vinda do Brasil onde foi para conhecer um acampamento sem-terra, que não entendia como eu sou uma pessoa tão orgulhosa se venho de uma miséria tão absurda, eu deveria, na opinião dela, ser um pouco mais humilde, ja que venho do "sul do mundo" (eu odeio esta expressão sem sentido com todas as forças do meu senhor, e sim, eu odeio, eu não sou uma pessoa boa, ou ODEIO!). Abraços e bom domingo.
P.S.:Te mandarei um email com a foto da minha banlieue e também para te falar sobre o lobolo e outros pagamentos.

samya disse...

Putz, nao era a força do meu senhor, era a força do meu ser, no comentario acima. Terceiro mundista, analfabeta e cega, to danada!

Anónimo disse...

Descolcado, mas apenas para conferir sera verdade que o slogan do PS ai em terrar lusas e "Forca da mudanca"?

(Paulo Granjo) disse...

Viva, Samya.

As modas, por aqui, costumam chegar um pouco mais tarde do à capital da Gáulia.
Mas esse pessoal que costuma(va) passar férias em "ressorts de luxo" (e, pelos vistos, brincar aos pobrezinhos durante a sua infância) costuma estar mais a par das novas tendências primavera/verão.

Entretanto, a coisa também já virou académica.
Na tasquinha de Maputo ao pé da casa onde morava apareceu a certa altura um grupo de voluntariosos moços e moças de uma universidade privada portuguesa (onde, ao contrário da maioria dos países "nortenhos", isso é sinónimo de menor qualidade) que por lá passaram Agosto a dar uma mão a vários planos, para os quais tinham menos qualificações que uns largos milhares de moçambicanos.
No entanto, como esses planos não são realmente destinados a mudar nada e como eles passavam os almoços a planificar idas a todos os destinos turísticos num raio de 700km, suponho que mal não terão feito.

Aliás, muitas das conversas que lhes ouvi dariam boas "Citações de Café".
Não as usei porque, como disse no post, dentro de alguns limites de decência sou tolerante com estas coisas.
Mas esses limites também são ultrapassados com muita facilidade.

Aguardo a sua foto (é para o Antropovistas?) e as suas reflexões lobolares.

(Paulo Granjo) disse...

Caro anónimo (que suponho moçambicano):

Confirmo, sim senhor (pondo, claro, as cedilhas em forca e em mudanca).
Mas a explicação que ia dar aqui vai passar a post, pois já ia bem comprida.

Já agora: em Moçambique, quem usou a frase? Tenho ideia que foi a Frelimo, na primeira campanha do actual Presidente da República, mas não tenho a creteza. Pode fazer o favor de confirmar?

João Feijó disse...

É pá! Isso merecia uma boa tese sobre essas teses e programas de turismo-voluntariado.

Enquanto ela não sai pode ser que vá divulgando aqui as tais "boas Citações de Café".

:)