quarta-feira, 23 de abril de 2008

Poder, Morte e Linchamentos - 4 e final

Tanto quanto sei, nunca a metáfora de «o povo saiu da garrafa» foi utilizada para designar linchamentos.
Seria de facto estranha a sua utilização popular, pois um linchamento – por muito que possa parecer um motivo de orgulho a quem o executa – tem uma carga negativa que desaconselha que dele se vanglorie para o exterior. Não obstante, sugiro, uma utilização dessa metáfora seria pertinente.

Isto porque, bem ou mal e independentemente do nosso julgamento moral e sentimentos acerca do assunto, os linchamentos são encarados como uma tomada nas próprias mãos do poder de controlo sobre a vida e a comunidade e, simultaneamente, como uma afirmação desse poder – perante as figuras que se considera ameaçarem-no, perante a comunidade e perante as autoridades externas a ela.
Neste caso, o poder que foi ilicitamente alienado, numa situação que cria uma submissão indevida e amorfa (colocando a comunidade «na garrafa»), é a capacidade de controlo sobre a tranquilidade, a ameaça, a incerteza, o futuro. Essa ausência de controlo – a ameaça e a incerteza, afinal – é projectada sobre a figura do criminoso, real ou suposto; é ele o ‘feiticeiro’ que, na ausência de ‘contra-feiticeiros’ reconhecidos como eficazes (policiais ou judiciais), “obriga” o grupo a assumir o ‘contra-feitiço’ que quebra a sua submissão.

Independentemente da metáfora da garrafa, o linchamento é assim, na sua vertente de performance de poder, uma afirmação, para o grupo e para o exterior, de que se tem esse poder que se considera não ter. É, ao mesmo tempo, uma tentativa de reivindicar e de assumir esse poder que, mais do que sobre os indivíduos socialmente ameaçadores e disruptores, se quer exercerr sobre o futuro colectivo.

A serem correctas estas pistas de leitura, o 5 de Fevereiro e os linchamentos são fenómenos isomorfos. Justifica-se então colocar, pelo menos como hipótese, que estejam relacionados entre si, ou sejam mesmo duas expressões de um mesmo desconforto social.

Encarando os linchamentos na sua vertente de discurso, afirmação e performance de poder, o que está em causa não é apenas (e talvez nem sobretudo) a pobreza, a criminalidade e uma imagem de inoperância policial e judicial.
Todos estes aspectos são importantes, tal como é fulcral a sensação de abandono social, ou a percepção de crescentes assimetrias socio-económicas e de indiferença, por parte dos que possuem e do poder político, para com a situação da esmagadora maioria de desfavorecidos.
Mas, seguindo as pistas complementares de leitura que sugiro, os linchamentos são também (por muito que tal nos custe enquanto observadores de um fenómeno chocante) uma assunção do domínio sobre as próprias vidas, uma reclamação da cidadania e do poder de decisão – ou, no mínimo, de ser tido em conta.

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